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P de Professor
Pablo Capistrano
Escritor e professor de filosofia do IFRN
Gilles Deleuze, em uma de suas últimas entrevistas para a TV, falou sobre sua vida como professor. Em um tom meio nostálgico, lembrou que começou a lecionar num tempo em que o professor de Filosofia era visto como “o louco da aldeia”. Um sujeito estranho, com ideias um pouco suspeitas, mas que deveria ser “tolerado” e deixado “meio à vontade” para exercitar suas excentricidades em sala de aula.
Eu me senti assim quando comecei a dar aula, quinze anos atrás. Como Filosofia “não caía no vestibular” e tinha a carga horária semanal reduzida ao mínimo necessário para não se diluir no obsequioso silêncio do nada, me sentia livre para ludibriar o livro didático e a pressão dos “conteúdos programáticos” e tentar, na medida do possível, exercer minha autonomia criativa.
Sabe, já disse isso outras vezes e continuarei a dizer, não troco minha profissão por nenhuma outra ocupação (talvez com a honrosa exceção da de escritor ou de balconista de loja de CDs – se isso ainda fosse viável). Não gosto de reproduzir o discurso de vitimização que às vezes toma conta da minha categoria, como uma longa lamuria de sofrimento e autopiedade.
Também não quero ser herói. Não entro em uma sala de aula para salvar a humanidade. Se, pra mim, ser professor é uma das mais significativas alegrias, não consigo mais ter (se é que tive alguma vez com sinceridade) a ilusão de que sou imprescindível e de que a civilização ruirá caso meu ofício desapareça.
Na minha opinião, nem toda educação é necessária. Existem modelos, formatos, perspectivas do que significa educar e muitas vezes essas perspectivas, esses formatos, esses modelos servem mais para manter o status quo de um sistema que já deu o que tinha que dar do que para ajudar a promover uma emancipação real e radical dos sujeitos.
Agora, uma coisa que eu aprendi nesses quinze anos de sala de aula: existe um campo aberto, no ofício do professor, para a inovação criativa. Às vezes é um campo estreito, limitado pelas demandas de um mercado que cada vez mais transforma a sala de aula em um cenário de reality show, com professores tentando alegrar a plateia agindo sobre a pressão de um paredão pedagógico que os ameaça sempre de eliminação. Às vezes, esse campo é limitado pelas exigências de uma tecnocracia que acostumou a pensar a educação a partir de metodologias estatísticas que nascem da economia política, com seus gráficos, suas tabelas, suas planilhas do Excel sempre cheias de números e quantificações. Tanto na escola pública quanto na privada (com sua suposta “pedagogia de excelência”, vendida como banana no mercado), o ofício de professor é sempre cercado por circunstâncias que limitam sua autonomia didática e que esgotam sua força vital e sua energia criativa.
Mesmo assim, há um espaço possível, na fresta desses sistemas de controle operacionalizados por mecanismos burocráticos e fundamentados em teorias pedagógicas diversas, para a sabotagem criativa do sujeito. É justamente onde o contato entre professor e aluno se firma, na dobra em que se cruzam as vidas de quem um dia foi chamado de “mestre” e dos seus alunos, com seu contexto, seus anseios, seus sonhos, suas esperanças pessoais e suas misérias particulares, que a possibilidade de uma educação que transforme e emancipe se manifesta.
Nos anos cinquenta do século passado, quando pensava sobre o colapso do espaço público nas sociedades industriais, Hannah Arendt nos ofereceu uma intuição muito importante para que pudéssemos compreender o papel do professor e entender a natureza da desconstrução de sua imagem na pedagogia moderna.
O professor era aquele que apresentava o mundo aos alunos. Aquele que funcionava como um elo entre a tradição da tribo e o futuro das gerações que viriam. Não se tratava de uma mera questão de conhecimento (os arautos da autoeducação que me perdoem, mas nenhum Google substituirá a relação entre um professor e um aluno). Essa apresentação era uma vivência que se situava no plano do mundo da vida, do Lebenswelt da filosofia alemã, da qual Hannah Arendt foi uma das mais intensas expressões.
Esse elo, que a civilização da técnica e as ideologias do capital tentam a todo custo romper, ainda se mantém, mesmo em ambientes precarizados e em circunstâncias desfavoráveis.
Nesse mês em que o povo do Rio de Janeiro se levantou para marchar ao lado dos professores e dos movimentos sociais; para mais uma vez fazer coro ao grito contra a violência policial, em favor de uma educação pública, social e de qualidade; eu lembro de Gilles Deleuze e de seu serrote.
Lembro do jovem professor de Filosofia em sua sala de aula; o “louco da aldeia” ensinando os alunos a extrair notas musicais de um serrote para que eles pudessem se aperceber das dobras, das curvas e das infinitas possibilidades que nascem de um movimento.
Eu penso em meu bisavô, professor Antônio Pedro Farias de Castro, lutando com seus livros e seu velho quadro-negro nos sertões do Cariri paraibano no final do século XIX. Penso na minha mãe, que abandonou a militância na OAB em troca da luta pela educação em um Brasil que não tem fim. Penso na minha sogra e seu sonho de formar uma escola em Felipe Camarão (um dos bairros mais carentes de Natal) para que as crianças daquele lugar pudessem ter educação em tempo integral. Penso em meus professores e meus colegas de profissão que, todos os dias, contemplam a possibilidade de fazer a diferença na vida de alguém.
Penso em meus alunos e nesse tecer silencioso do espírito, que enseja multidões e que leva o povo às ruas, em seus sonhos loucos de mudança e seu delírio santo de emancipação.
Penso nisso e não consigo, por mais que tente, deixar de ter esperança.
Publicado em 15/10/2013
Publicado em 15 de outubro de 2013
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