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Cidadania no Brasil: conquistas na teoria e desafios na prática

Juliana Maria Carvalho

Mestranda em Políticas Públicas e Formação Humana e professora da UERJ

De forma geral, parece que a população encontra certa dificuldade para chegar a um consenso sobre o conceito de cidadania. Teoricamente, o primeiro e mais difundido conceito é o que remete ao conjunto de direitos e deveres ao qual um indivíduo está sujeito em relação à sociedade em que vive. Esse conceito, mais usual e difundido, está ligado à noção de direitos que permitem ao indivíduo participar ativamente da vida e do governo de seu povo, intervir na direção dos negócios públicos do Estado, participando de modo direto ou indireto na formação do governo e na sua administração, seja ao votar (indireto), seja ao concorrer a um cargo público (direto). No entanto, dentro de uma democracia, a própria definição de direito pressupõe a contrapartida de deveres, uma vez que, em um convívio social, os direitos de um indivíduo são garantidos a partir do cumprimento dos deveres dos demais componentes da sociedade.

Entretanto, segundo o Art. 1º, inciso II da Constituição Federal de 1988, a cidadania é um dos princípios fundamentais da República, um dos pilares do Estado brasileiro e não está ligada apenas ao Estado e à sua administração. É assegurado ao indivíduo o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Entre os fundamentos do Estado, estão listados a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e o pluralismo político. Para a maior parte da população, pensar em cidadania e dignidade é pensar em valores como justiça e igualdade, na prevalência dos direitos humanos e em direitos fundamentais como educação, saúde, habitação, saneamento básico e paz.

O autor inglês Thomas H. Marshall tentou definir, em sua obra Cidadania, Classe Social e Status, lançada em 1950, um conceito amplo para cidadania. Para ele, a cidadania está dividida em três esferas que se distinguem e se complementam: a civil, a política e a social. Essas dimensões foram percebidas pelo autor ao analisar a história da Grã-Bretanha, em que os direitos civis, que garantem a liberdade individual e a igualdade perante os outros indivíduos, são conquistados no século XVII; os direitos políticos, que possibilitam a participação no Governo, de forma direta ou indireta, no século XVIII; e os direitos sociais, que oferecem a todos justiça e dignidade, a partir do século XIX.

No Brasil, porém, as primeiras políticas sociais não nasceram para garantir direitos fundamentais, dignidade ou a igualdade entre todos. Desde a abolição do trabalho escravo, o país tentava organizar-se economicamente segundo os princípios do laissez-faire clássico, a doutrina capitalista que antecedeu o liberalismo econômico e preconizava a liberdade absoluta de produção e comercialização de mercadorias. Isso acontecia basicamente nas cidades. Na área rural, porém, mesmo com a abolição, o que acontecia era uma mudança na forma de servidão. Para Wanderley Guilherme dos Santos, a ideia de cidadania no país se iniciou nos tempos do Império, mas somente começou a vingar após a Revolução de 1930, na Era Vargas, o primeiro momento em que realmente se desenvolveu uma política social. Uma intervenção do Estado no sentido de regulamentar as profissões e, a partir delas, oferecer benefícios seria bem aceita, já que o laissez-faire não se mostrava eficaz para garantir a “felicidade da maioria”, como queriam os utilitaristas clássicos.

Em um primeiro momento, foi criada uma espécie de cidadania regulada, na qual a associação entre cidadania e ocupação excluía do conjunto de cidadãos todos aqueles que tivessem ocupações não reguladas pela lei – como os trabalhadores da área rural, por exemplo. Aqueles que exerciam profissões não reconhecidas pelo Estado estavam categorizados como pré-cidadãos. Mais do que a própria certidão de nascimento, a carteira profissional, a regulamentação das profissões e o sindicato público eram os principais parâmetros para definir quem era ou não cidadão. Em um processo longo e contínuo de regulamentação de profissões, atrelar direitos a esse sistema de estratificação ocupacional é deixar à margem da sociedade milhares de pessoas, não apenas as desempregadas, mas todas aquelas cujas profissões ainda não estivessem reconhecidas pela lei. Ainda hoje, órgãos de classe das mais diferentes ocupações exercem pressão sobre o governo para que suas profissões sejam regulamentadas e, dessa forma, valorizadas socialmente – pensamento que, na sociedade brasileira, vem dessa época.

A ideia de relacionar a cidadania e a dignidade à profissão, porém, é bem mais antiga. Michel Foucault, no livro Segurança, território e população, cita um texto alemão do século XVII em que se verifica um conceito de “Estado de polícia” no qual exercer o controle seria fortalecer o Estado. Para o autor do texto encontrado, a arte de governar e de exercer a polícia são a mesma coisa. Nessa utopia se criariam quatro escritórios, denominados birôs. O primeiro teria por nome Birô de Polícia, e uma de suas atribuições seria garantir que as crianças aprendessem as letras e tudo que fosse necessário para prover a todas as funções do reino. Em decorrência disso, esse birô também deveria ocupar-se da profissão de cada um desses jovens:

Quer dizer que, terminada a formação, quando o rapaz fizer 25 anos deverá se apresentar ao Birô de Polícia. Lá, ele deverá dizer que tipo de ocupação quer ter na vida, seja ele rico ou não, queira ele enriquecer ou queira simplesmente deleitar-se. De todo modo, deve dizer o que quer fazer (...). Os que, por acaso, não quisessem se inscrever num dos itens não deveriam sequer ser tidos como cidadãos, mas deveriam ser considerados ‘rebotalho do povo, vadios e sem honra’ (Foucault, 2008, p. 430).

Com o estabelecimento da cidadania regulada pelas profissões, o Estado brasileiro voltou-se para a criação de um sistema previdenciário em que os direitos à saúde pública, à educação, ao saneamento, à nutrição e à habitação estariam atrelados também às categorias profissionais. Os benefícios concedidos foram vinculados às contribuições passadas, e o tratamento dado aos trabalhadores passou a ser diferenciado segundo sua categoria profissional. Quem ganhava mais contribuía mais e, assim, teria mais benefícios. Dessa forma, institucionalizou-se uma desigualdade no tratamento oferecido aos profissionais pelo instituto previdenciário, que, na prática, estabelecia diferentes níveis de cidadania, segundo a profissão. Aqueles que tivessem profissões mais valorizadas na esfera da produção contribuiriam mais e, com isso, receberiam melhores benefícios previdenciários e assistência médica.

Com essa estratificação da cidadania, o governo Vargas precisou criar um órgão que unificasse o sistema previdenciário e ao mesmo tempo uniformizasse os benefícios concedidos e serviços prestados para todas as categorias profissionais. Foi criado então o Instituto de Seguros Sociais, revogado logo no início do governo seguinte. Apesar dos aspectos negativos, houve um saldo positivo da política social da Era Vargas, na medida em que se favoreceu a organização da classe trabalhadora (ou de parcela dela) por meio da regulação do trabalho e do sindicalismo e de alguns mecanismos de proteção social.

Os anos seguintes não trouxeram grandes alterações. Continuava vigente a política compensatória ligada ao sistema previdenciário. Em 1960, foi promulgada a Lei Orgânica da Previdência Social, que não unificou os serviços, mas tornou-os mais uniformes; em 1963, foram criados o salário-família e o Estatuto do Trabalhador Rural, mais simbólico do que esclarecedor.

Essa “tradição” de cidadania regulada faz com haja, na história de nossa sociedade, a manutenção de um padrão de cidadania estratificada, fragmentada e categorizada, mesmo que surjam novas regras, procedimentos e atores sociais. Na verdade, o efeito é o mesmo do conceito vigente na Era Vargas. Essa política social impossibilita o estabelecimento de uma cidadania ampla nos moldes propostos por Marshall e favorece o aparecimento de uma grande massa de “pré-cidadãos”, pessoas que estão excluídas, à margem de uma minoria categorizada como cidadã devido à sua classificação profissional.

Após o golpe militar de 1964, o país viveu um período que pode ser classificado como “cidadania em recesso”. A principal característica desse período foi o não reconhecimento do direito dos cidadãos ou da capacidade de a sociedade governar-se. Dessa forma, a sociedade brasileira, que já havia acompanhado o nascimento e desenvolvimento de uma cidadania baseada mais em pequenos ganhos sociais do que no próprio reconhecimento de seus direitos civis, nesse período foi privada de direitos e já não possuía autonomia para exercer a própria cidadania.

Esse período fez crescer na população uma necessidade de criação e consolidação de um Estado de bem-estar no Brasil. Assim, somente com a Constituição de 1988 o conceito de cidadania se firmou como o conjunto de valores universais na plenitude proposta por Marshall. Apesar disso, persiste uma sociedade caracterizada pelo desnível entre os vários segmentos sociais e formada por cidadãos supostamente iguais. Essa sociedade pode ser definida pela presença de cidadãos que representam a elite, nas mãos de quem está a maior parte do capital e que ainda contam com o favor público; cidadãos de classes intermediárias, apesar de sofrerem o rigor da lei, devem contentar-se com o consolo de estar acima de uma enorme massa de não cidadãos, excluídos do direito à cidadania como descrito na Constituição.

É nos bairros populares, onde mora essa grande massa e onde o Estado não se faz presente, que se observa uma forma de vida bem distante dos conceitos de cidadania já expostos. É principalmente nas comunidades que se observam um clima social e uma cultura que atraem os rapazes jovens para atividades ilegais ou criminalizadas socialmente, como o tráfico de drogas. O grande número de jovens envolvidos com essas atividades está ligado a um assustador número de mortes em conflitos ou com o uso de drogas. Essa possibilidade de morrer a qualquer momento faz com que esses jovens tenham outra noção de vida e de tempo, se acostumem com a violência e passem a ter atitudes que não representam a maior parte dos valores preconizados pela sociedade. Isso gera um ciclo que persiste e pode ser visto em várias gerações de famílias nas comunidades:

  1. O Estado não investe em políticas sociais que garantam os direitos civis básicos;
  2. Sem educação e sem emprego, os jovens vislumbram no tráfico ou em outras atividades ilegais a oportunidade de sobreviver ou melhorar de vida;
  3. O Estado, agora sim, se faz presente para reprimir aqueles jovens que ele nunca reconheceu como cidadãos – pois não pertencem a nenhuma daquelas categorias profissionais –, prendendo-os ou assassinando-os;
  4. O tráfico precisa recrutar novos jovens para substituir os que estão presos ou foram mortos.

Para Loïc Wacquant, a mesma situação ocorre nos Estados Unidos, onde o governo oferece tantas modalidades de garantias e auxílios tanto às empresas quanto às classes médias e altas que isso chegou a comprometer os gastos nacionais com os direitos fundamentais para a maioria da população, inclusive comida para os pobres e crianças. Para o autor, esse Estado é liberal e não intervencionista no que diz respeito ao mercado, mas possui também vocação disciplinar, que se mostra principalmente na relação com a população pobre e de etnias diferentes do branco europeu:

esse Estado-centauro, guiado por uma cabeça liberal, montada num corpo autoritário, aplica a doutrina do laissez-faire et laissez-passer a montante, em relação às desigualdades sociais, aos mecanismos que as geram (o livre jogo do capital, desrespeito do direito do trabalho e desregulamentação do emprego, retração ou remoção das proteções coletivas), mas mostra-se brutalmente paternalista e punitivo a jusante, quando se trata de administrar suas consequências no nível cotidiano (Wacquant, 2007, p. 88-89).

Esse tipo de “Estado Liberal”, cujas práticas são para beneficiar os mais ricos e controlar a revolta dos mais pobres, gera o estímulo de reações que estigmatizam as classes populares, promovendo imagens negativas de seus bairros, que passam a ser retratados (principalmente pelos veículos de comunicação) como fontes do mal. As imagens apresentadas em televisão e mídia impressa reforçam práticas discriminatórias da sociedade em relação às comunidades que se tornam alvo de discursos estigmatizantes. Os moradores desses bairros incorporam esses discursos e passam a ter um comportamento orientado pela vontade de sair do seu local de origem e ascender de classe social. Isso gera angústia e um sentimento muito distante do ideal de bem-estar alcançado quando se usufrui de uma cidadania plena.

O que ocorre, então, na prática, é que temos alguns “níveis de cidadania”, não só no Brasil como nos países onde vigora o liberalismo econômico. No Brasil, ser cidadão ainda está atrelado ao conceito de cidadania estratificada da Era Vargas. Quanto mais bem remunerada e colocada for a profissão, mas prestígio ela terá, e, em decorrência disso, melhor status social terá o cidadão que a praticar. Esse conceito também se aplica a atividades que nem são consideradas profissões, apenas basta que sejam bem remuneradas. Em contrapartida, o indivíduo que não possui profissão ou possui uma profissão mal remunerada sofre, na prática, a perseguição e o controle punitivo do governo, que não se faz presente para garantir o Estado de bem-estar descrito na constituição para todos, mas que vale apenas para uma minoria abastada. Conceitualmente, temos uma linda descrição dos direitos dos cidadãos na Constituição brasileira, o que foi uma conquista, depois de alguns governos autoritários e repressores. Mas precisamos que essa definição seja garantida, na prática, para todos os cidadãos, de qualquer classe social.

Bibliografia

FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

MARSHALL, Thomas H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

SANTOS, W. G. Do laissez-faire repressivo à cidadania em recesso; A política social autoritária e a cidadania emergente. In: Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1987.

WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos (a onda punitiva). Rio de Janeiro: Revan, 2007.

Publicado em 22 de outubro de 2013

Publicado em 22 de outubro de 2013

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