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A “matematização da natureza”

Marcos André Reis de Amorim

Coordenador do curso de Atualização em Filosofia da Diretoria de Extensão da Fundação Cecierj

Matemática: introduzir o refinamento e o rigor da matemática em todas as ciências, até onde seja possível, não na crença de que por essa via conheceremos as coisas, mas para assim constatar nossa relação humana com as coisas.

Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, livro III, § 246

Como acontece com toda visão de mundo, as sociedades criam uma forma de ver a realidade (ou pelo menos a sua realidade) e esse ponto de vista acaba por parecer inato, e não uma invenção cultural, diante de nosso hábito em ver as coisas daquela maneira. Quero dizer que isso também aconteceu (e acontece) com a presença da matemática em nossas vidas. Ela está por toda parte: no comércio, na música, nas pesquisas de opinião, nas ciências de um modo geral. Mas, se agirmos como antropólogos, perceberemos que somos herdeiros da produção cultural de nossos antepassados, ou seja, a Matemática não é extraída da natureza, mas sim uma intervenção humana sobre ela. Por isso o título deste texto: a matematização da natureza. Mas como foi que isso começou, e mais: que visão de mundo está embutida nessa forma de ver a vida?

I

Vamos começar pela inventividade sem precedentes daquela que se tornou a matriz do modo de pensar ocidental: a Grécia Antiga. Os gregos não inventaram a Matemática, mas criaram uma matemática grega – bastante associada à Geometria, basta lembrar do teorema de Pitágoras e de Euclides que dá nome à Geometria Plana, além de Platão, que deu à mathematiká (do grego máthēma: ciência, conhecimento, aprendizagem; mathēmatikós: aquele que aprecia o conhecimento) um lugar especial em sua filosofia.

Desde a crença, descrita pelo poeta Hesíodo (século VII a.C.) em sua Teogonia (a origem dos deuses), de que Zeus vence seus irmãos, representantes do caos e da desordem, e impõe a ordem ao mundo, está presente na cultura grega essa tendência – que na Filosofia vai ser dessacralizada, como se fosse natural a existência de um mundo equilibrado, organizado, ordeiro. A Astronomia grega se diferencia da de outras civilizações por desenvolver uma representação do cosmos por meio de esquemas geométricos que mecanicamente regem o funcionamento de tudo. Para o pré-socrático Anaximandro, nosso planeta ocupa o centro do universo e essa localização mantém a Terra equilibrada sem ser necessário nada que a sustente (Vernant, p. 170-186). Geometricamente, ocuparia um espaço no universo de tal forma que sua posição em relação aos outros astros a mantém suspensa e equilibrada, assim como os outros planetas.

Essa representação do espaço é simultaneamente aplicada na esfera política e social quando a democracia prega a igualdade entre os cidadãos: o círculo geométrico tornou-se um símbolo da igualdade que se buscava. É como se disséssemos “a distância do centro à borda (o raio) é igual para todos”. A ágora (praça onde ocorrem as decisões políticas) foi criada no centro da cidade, de forma que todos os cidadãos possam se reunir para decidir os rumos da sociedade.

A presença da Matemática na cultura grega aparece por toda parte, como o dito de Pitágoras: “todas as coisas são números”, ou ainda a sua utilização na música (quem não sabe fração não entende o valor do tempo das figuras musicais); a filosofia do grande Platão, que considerava o estudo da Matemática como uma das mais importantes tarefas humanas, diante da proximidade do discurso matemático com a idéia de perfeição, afinal o que seria mais perfeito que um quadrado ou um círculo? E sua Astronomia, descrita em sua obra Timeu, remete à “perfeição geométrica” da qual o universo é feito (Platão, 31b-c e 32a-b).

II

Viajando no tempo, chegamos até a fundação da Física moderna, nos séculos XVI e XVII; ali vamos encontrar a Matemática como elemento primordial nos estudos de Astronomia que romperam com a visão medieval geocêntrica. O pai da Física moderna, o italiano Galileu Galilei (1564-1642), soube somar a observação, a experimentação e os cálculos matemáticos para abordar os fenômenos da natureza. Sua metodologia pressupõe traduzir a natureza por meio da linguagem matemática na medida em que se poderia calcular a regularidade com que ocorrem as transformações no mundo físico. Obviamente há um princípio aí subentendido de que a natureza funcionaria como se fosse um relógio, passível de ser quantificável, visão que continuou a fazer sucesso, vide seu colega inglês Isaac Newton (1642-1727), que em seus estudos manteve essa visão “matematizada” do mundo. Quando Galileu escreveu Discursos e demonstrações matemáticas sobre duas novas ciências (1638), e Newton seu Principia – Princípios matemáticos de Filosofia Natural (1687) fundam a Mecânica clássica, que só no século XX vai encontrar adversário, com a Teoria da Relatividade de Einstein e a Mecânica quântica, o que não quer dizer que a Matemática tenha perdido status como parceira da Física e da ciência em geral.

Além dos “pais” da Física moderna, reforça a visão mecanicista da natureza o filósofo francês René Descartes (1596-1650), conhecido pelo cogito “penso, logo existo”, mas também por ter fundado a Geometria Analítica, ao somar a álgebra a esse contexto. Descartes pretendia trazer o espírito da Matemática, sua exatidão e precisão, para o campo da Filosofia, que para ele se encontrava de certa forma “perdida” em controvérsias e discussões sem-fim acerca da verdade das coisas, sem chegar a uma conclusão.

III

O século XX conheceu uma série de inovações científicas (para resumir, a Teoria da Relatividade e a Mecânica Quântica), que expôs um universo muito mais arredio à exatidão pretendida pela Física clássica. Por tabela, fez a Matemática repensar seu papel para dar conta de um caráter mais caótico do que se imaginava em relação ao funcionamento da natureza. O Prêmio Nobel de Química Ilya Prigogine, que atualmente tem se encontrado no campo da Filosofia da Ciência, afirma em seu livro As leis do caos que o conceito de “lei da natureza” deve ser substituído pela noção de “evento”, e a visão calcada em verdades absolutas, que outrora imperava na ciência, seja aberta para a de “probabilidades”, deixando aí um importante papel da Matemática com seus cálculos a serviço da Estatística na tentativa de compreender a instabilidade presente na natureza.

IV

Esperamos ter aberto aqui o início de uma reflexão sobre o papel da Matemática na formação de nossa visão de mundo, que muito se deve à Filosofia e talvez mais ainda ao desenvolvimento da ciência, notadamente das chamadas ciências da natureza, mas não percamos de vista um ponto crucial: até onde não estamos “matematizando” o universo de que fazemos parte?

Referências bibliográficas

CORNFORD, F.M. Principium Sapientiae. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1981.

KOYRÉ, A. Do mundo fechado ao universo infinito. Trad. Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986.

PLATÃO, Timeu. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Edufpa, 1975.

PRIGOGINE, I. As leis do caos. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Ed. Unesp, 2002.

VERNANT, J.-P. Mito e pensamento entre os gregos. Trad. Haiganuch Sarian. São Paulo: DIFEL/USP, 1973.

Publicado em 3 de dezembro de 2013

Publicado em 03 de dezembro de 2013

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