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Crônica de uma tragédia anunciada?
Luis Estrela de Matos
Professor universitário, escritor e jornalista
Tragédia.
Embora nos primórdios da civilização grega esse vocábulo estivesse associado a uma festa pagã em que homens, ou sátiros, vestidos de bode, celebrassem Dionísio (Baco, na cultura romana), a palavra foi ganhando outra densidade semântica e chegou à ideia de um drama pesado e denso, com a inevitabilidade de um fim bem triste. Aristóteles mais ou menos prescreveu isso em sua Poética, obra que inaugura os estudos literários no Ocidente. E as tragédias vieram ocorrendo, às vezes mais literárias e muitas vezes bem mais reais. Por exemplo, a destruição da América pelos espanhóis, ingleses e portugueses foi uma tragédia cujas consequências vivemos até hoje, inclusive em nosso dia a dia. Quem sabe se não nos acostumamos, desde nossa tenra infância histórica, ainda no comecinho da colonização, com esse vocábulo que tanto sofrimento nos causa. Canudos foi outra tragédia. E das maiores.
Num país onde tudo termina em pizza, não podemos reclamar de nos servirem tragédias como sobremesa. Podemos? Talvez. Se fôssemos um pouco mais atentos com a vida, com os ambientes coletivos (eventos em grandes praças, shows sem infraestrutura alguma, shoppings abarrotados e cinemas superlotados, carnavais de rua entupidos de gente por todos os lados etc.), o vocábulo tragédia não precisaria estar tão na crista da onda como está desde a madrugada daquele domingo.
Situação lastimável. A cidade de Santa Maria nunca mais será a mesma. A quantidade de mortos é realmente aterradora. Reconhecer cadáveres no meio de tanto sofrimento, tanto choro, tanto pesar, enfim, ter que cumprir o que manda a lei e o bom senso deve ser das experiências mais penosas pelas quais um ser humano pode passar.
Existem mortes e mortes. Inclusive porque o sentimento de revolta fica martelando dentro de cada familiar, cada amigo, cada namorada, enfim, a sensação de que as coisas poderiam ter sido diferentes. A pirotecnia em ambiente fechado (eu diria lacrado), como esse de Santa Maria, precisa ser terminantemente proibida. Uma casa de espetáculos precisa ter saídas de emergência visíveis e em número suficiente. E olha que se trata de uma cidade universitária. Imagine as outras casas noturnas pelos rincões abandonados de um Brasil sertanejo ou periférico... E os bailes funk? E os centenários casarões da Lapa antiga, no Rio de Janeiro, que têm três andares e realizam shows noturnos várias vezes durante o espaço de uma semana?
Existe vistoria neste país? Quanto custa fabricar um alvará por fora? A porta desses ambientes deve ser ampla. Porta? Mas tinha que ser portas. No plural. E as portas de emergência? E os seguranças, na hora de uma tragédia, deveriam se preocupar em salvar pessoas – e não impedi-las de se salvar por causa das malditas comandas.
As prefeituras e governos, de maneira geral, precisam estar mais atentos ao peso das palavras. Cuidado e respeito pelo cidadão são duas relembradas aos chefes de governos (municipais, estaduais ou mesmo federal). Cuidar de verdade de uma população que lhes dá votos para encabeçar a política brasileira. Uma tragédia é algo realmente por demais pesado. Inevitável? Fruto de um destino? Ou uma brincadeira dos deuses? Penso que não. Negligência, lucro, descaso, enfim, o modelo capitalista na versão terceiro-mundista, no que ele tem de pior. Melhor, na versão ibérica, no que ela tinha de pior. Ganância, ganância e ganância. Se Deus é brasileiro... Logo, não nos acontecerá nada de ruim. Não é assim? Apenas muita felicidade, alegria nos bares, festas e mais festas, imensos aglomerados de pessoas. Fla-Flu no domingo. Carnaval 2013 tá aí, gente! E tem Copa e tem Olimpíadas! Pessimismo?
Uma coisa eu sei: Normalmente o pessimismo tem a precaução como palavra de lei. Quase 250 pessoas... Na maioria, entre 16 e 20 anos! E morte por asfixia. A boate se chamava Kiss. Que ironia do destino. Que terror. Um vocábulo fez-se carne. Antes fosse apenas literatura.
05/02/2011
Publicado em 05 de fevereiro de 2013
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