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Traços de cidadania: o papel da educação na formação do sujeito

Marcelo Gomes da Silva

Mestre em Educação (ProPEd/UERJ)

Tá vendo aquele colégio, moço?
Eu também trabalhei lá.
Lá eu quase me arrebento,
Pus a massa, fiz cimento,
Ajudei a rebocar.
Minha filha inocente
Vem pra mim toda contente:
‘Pai, vou me matricular’.
Mas me diz um cidadão:
‘Criança de pé no chão
Aqui não pode estudar’...

Cidadão, Zé Geraldo

O presente trabalho, apresentado no seminário “Educação, cidadania e exclusão” no Programa de Pós-graduação em Educação da UERJ, esboça uma breve discussão em torno da cidadania, privilegiando uma análise histórica. Buscou-se identificar primeiramente em que momento na história ocidental se deu a gênese da ideia de cidadania. Em seguida analisaram-se os momentos que supostamente foram identificados como de ocorrência de cidadania no Brasil, tendo como parâmetro o historiador José Murilo de Carvalho. Por fim, foram incluídos no debate momentos em que professores públicos atuaram de alguma forma, como cidadãos, na contribuição de um sistema educacional no Brasil.

Segundo o dicionário Aurélio, cidadão é o “indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado ou no desempenho dos seus deveres para com este”. Destacam-se no verbete os termos: direitos, deveres e Estado. Estaria a cidadania relacionada com o surgimento do Estado-nação? É o que aponta José Murilo de Carvalho (2002, p. 12):

Outro aspecto importante, derivado da natureza histórica da cidadania, é que ela se desenvolveu dentro do fenômeno, também histórico, a que chamamos de Estado-nação e que data da Revolução Francesa, de 1789. A luta pelos direitos, todos eles, sempre se deu dentro das fronteiras geográficas e políticas do Estado-nação. Era uma luta política nacional, e o cidadão que dela surgia era também nacional. Isso quer dizer que a construção da cidadania tem a ver com a relação das pessoas com o Estado e com a nação.

A cidadania tem sua gênese nas chamadas revoluções burguesas, respectivamente: a Revolução Inglesa, a Revolução Americana e a Revolução Francesa (Pinsky; Pinsky, 2008). Trata-se de um período de transformações e rupturas na sociedade ocidental, em que se constituíram valores e conquistas que contribuíram para a construção da cidadania.

O fim da Idade Média foi pautado por várias transformações, como a decadência da noção de predestinação, o avanço do cientificismo e a Reforma Protestante. A essência da sociedade feudal estava sendo posta abaixo – “a ciência se sobrepôs à fé”. Mas a imposição de um novo mundo não se deu somente pelas ideias. Junto às mudanças de perspectiva do homem em relação ao mundo se encontravam as condições econômicas para a chamada acumulação primitiva de capital. A Revolução Inglesa fez-se necessária, portanto, para consolidar esse processo de transição. Segundo Mondaine (apud Pinsky; Pinsky, 2008), a fim de que esses germes de dissolução do sistema feudal contaminassem todo o seu organismo a ponto de matá-lo, para que as forças modernizadoras do modo de produção capitalista desabrochassem por completo, livres de qualquer entrave, faltava algo a mais: era a revolução. Na experiência inglesa, portanto, só uma revolução política poderia abrir espaço para uma revolução industrial.

Leandro Karnal (apud Pinsky; Pinsky, 2008), ao tratar a Revolução Americana, considera a liberdade e a cidadania como construções. Essa construção se deu na “seleção” de fatos históricos, privilegiando uns em detrimento de outros, que para o autor constituíram um extraordinário processo de invenção de memória e de uma tradição de liberdade. Observa-se no texto de Karnal um fato semelhante ao texto de Marco Mondaine: ambos problematizam as “construções” históricas acerca das Revoluções Inglesa e Americana. Elegeu-se na Independência Norte-Americana um fato histórico (Mayflower Compact), para se criar uma ligação. Ou seja, escolheu-se aquele que seria o fato que melhor representaria os ideais propostos pelos envolvidos na Independência. Apesar das “construções”, a Revolução Americana trouxe inovações. A liberdade era fator de integração nacional e de invenção do novo Estado. A legislação dos EUA traz a marca de desconfiança do Estado e reforça a crença no indivíduo.

A Revolução Francesa, segundo Nilo Odália (apud Pinsky; Pinsky, 2008), foi fundadora dos direitos civis. O autor traça um retrospecto do Iluminismo e de todas as transformações ocorridas no pensamento e nas ações humanas a partir da razão, pautada no homem e não na religião como centro das discussões. Todas essas mudanças levaram à contestação do poder real. Traçou-se um corpo de leis pautado no Direito natural e na noção de felicidade coletiva, o que a Revolução Industrial traz como conceito de uma vida confortável.

Nilo Odália coloca uma diferença entre a Declaração dos Direitos do Homem, ocorrido na França, e a Declaração de Independência dos Estados Unidos. Para ele, a declaração francesa pretendia ser universal, ou seja, uma declaração dos direitos civis dos homens, de forma genérica, enquanto a Declaração de Independência dos EUA seria menos abrangente ao definir os direitos civis do cidadão.

Podem ser notadas semelhanças entre os três textos, que são semelhanças dos períodos históricos tratados. Uma delas é o contexto de transformações e efervescências por que passavam os três países onde ocorreram as revoluções. Outro ponto de semelhança é a influência de pensadores em mais de um dos países, como o caso de Locke, um inglês que deixou no “texto da Declaração de Independência dos EUA uma lembrança quase literal dos seus princípios básicos”, segundo Karnal. Apesar de terem ocorrido em momentos de grande fervilha social, econômica, política e intelectual, as revoluções burguesas são históricas, na expressão de Tocqueville, citado por Nilo Odália: “a revolução não foi simplesmente a obra de alguns homens do século XVIII, mas a culminância de um processo histórico”.

Incontestável que a influência das revoluções burguesas moldou a nossa sociedade atual – a ocidental, pelo menos –, do ponto de vista institucional e de valores, a noção de direitos e, com eles, a noção de cidadania.

Cidadania no Brasil

Se os direitos civis garantem a vida em sociedade, se os direitos políticos garantem a participação no governo da sociedade, os direitos sociais garantem a participação na riqueza coletiva. Eles incluem o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à aposentadoria. A garantia de sua vigência depende da existência de uma eficiente máquina administrativa do Poder Executivo. Em tese, eles podem existir sem os direitos civis e certamente sem os direitos políticos. Podem mesmo ser usados em substituição aos direitos políticos. Mas, na ausência de direitos civis e políticos, seu conteúdo e alcance tendem a ser arbitrários. Os direitos sociais permitem às sociedades politicamente organizadas reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo capitalismo e garantir um mínimo de bem-estar para todos. A ideia central em que se baseiam é a da justiça social. (Carvalho, 2002, p. 10).

José Murilo de Carvalho considera a existência de três direitos: o direito político, o civil e o social. Ao traçar um histórico da cidadania no Brasil, o autor enumera momentos em que ocorrera cidadania, ou seja, a efetivação de um dos três direitos. A visão do autor não é muito otimista em relação à cidadania do período de 1822 a 1930, pois, “do ponto de vista do progresso da cidadania, a única alteração importante que houve nesse período foi a abolição da escravidão, em 1888”. Carvalho considera que a abolição representou a incorporação dos ex-escravos aos direitos civis; portanto, a incorporação foi mais formal do que real (Carvalho, 2002, pág. 17).

A Independência do Brasil, em 1822, representou um acordo entre as elites portuguesa, inglesa e brasileira, representando, portanto, um avanço nos direitos políticos, e não nos direitos civis, já que não ocorreu um processo de luta com participação popular pela independência. O retrato do Brasil independente escancarava um quadro com mais de 85% da população de analfabetos “incapazes de ler um jornal, um decreto do governo, um alvará de justiça, uma postura municipal”.Nesse sentido, a relação entre cidadania e voto é falseada pela realidade prática de uma eleição, já que a maioria da população (90%) residia em áreas rurais, sob controle ou influência dos grandes proprietários. No quesito voto, o advento da República não trouxe grandes mudanças. A Constituição de 1891 manteve a exclusão dos analfabetos ao voto, além de não votarem mulheres, os mendigos, os soldados e os membros das ordens religiosas (Carvalho 2002).

Se partir do pressuposto que o voto é um grande símbolo de exercer a cidadania e os analfabetos naquele momento eram privados do voto, podemos inferir que uma “solução” seria instruir ou alfabetizar a população. Portanto, a educação representava um setor importante dentro da construção da cidadania. Porém, a primeira Constituição republicana apresentou retrocessos no que tange à educação ao retirar do Estado a obrigação de fornecer instrução primária (Cury, 2001).

A análise de Carvalho (2002) não restringe a cidadania ao voto. O autor aponta alguns movimentos que, para ele, são momentos importantes de participação popular e que de alguma maneira representam traços de cidadania. Considera entre eles o movimento abolicionista, as revoltas (Sabinada, Balaiada, Cabanagem, Canudos, Contestado) e o Tenentismo. Contudo, ocorreram outros momentos em que se pode perceber ou que podem ser eleitos como tendo traços de cidadania. Trataremos a seguir de alguns desses casos em que estão envolvidos especificamente os professores.

Contribuição dos professores

Urge, pois desenvolvê-la (a instrução), dotar as escolas de edifícios e de material apropriado, tornar suave a vida do professor e tirá-lo desse terreno de sacrifícios que patrioticamente vai palmilhando até ser conjurada a crise que entre nós tão fundamente golpeou a instrução. Unidos poderemos nos fazer ouvir, representando a legião que somos e fortalecidos na solidariedade de que se vai despertando os nossos reclamos poderão chegar a todas as esferas da vida nacional e assim poderemos atingir o nosso escapo, o belo objetivo de nosso santo e patriótico apostolado (Antônio Olyntho dos Santos Pires, presidente da União do Magistério Mineiro, associação criada em 21 de abril de 1906 com sede em Belo Horizonte. Trecho do discurso proferido na fundação. Jornal Minas Gerais, Belo Horizonte. Órgão Oficial do Estado. 23 e 24/05/1906).

Em 1906 fundou-se em Minas Gerais a primeira associação de professores do estado. A fundação de uma associação de professores pode ser entendida como um momento de reconhecimento do professorado como categoria e como peça importante no processo de formulação educacional, além de ser um fator na construção da cidadania. O discurso de fundação da União do Magistério Mineiro ilustra um pouco a intenção desse grupo:

Por mais intenso e perseverante que seja o esforço individual, a ação isolada não pode transpor os limites que a contingência humana traça a cada um de nós. Mas se esse esforço se une a outro esforço, e se outros a eles se juntam, estabelece-se a continuidade da ação – elemento necessário e imprescindível para o êxito, mormente em se tratando de interesse de instituições ou de classes, cuja vida se prolonga pelo tempo, muito mais dilatada do que a precária vida humana (jornal Minas Gerais, 23 e 24/05/1906, p. 4).

O reconhecimento dos professores como categoria se deu ao longo de um processo histórico em que diversos fatores atuaram para a sua culminância. Segundo Nóvoa (1995), o processo de profissionalização da docência foi ocorrendo num processo gradativo, gerado entre as relações estabelecidas entre o professor e o Estado. Historicamente, a última etapa desse processo ocorreu no momento em que os professores se conscientizaram como classe profissional, materializando-se na criação das primeiras associações de professores.

Levando em consideração as influências contextuais, quer dizer, as proximidades/afinidades com o que estava ocorrendo na época, no caso específico da União Mineira, a influência dos movimentos operários foram relevantes, como destaca o próprio discurso de fundação da União do Magistério Mineiro: “As uniões operárias, por exemplo, na América do Norte, libertaram os operários da tirania do capital, que na Europa tem gerado a miséria e produzido tantos outros frutos venenosos” (jornal Minas Gerais, 24 e 25/05/1906). A atuação dos professores não se deu somente após a sua organização em associações. A “intervenção” ou “contribuição” do professor para a construção e formulação de um “sistema educacional” e da cidadania no Brasil ocorreu desde o período imperial.

As reações como formas participativas

Aos 30 anos foi nomeado Presidente de Província do Rio de Janeiro, cargo que ocupou entre 1848 e 1853. Após deixar a Presidência desta província integrou o Gabinete Imperial de D. Pedro II, de 1853 a 1856, na qualidade de Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império (Fávero; Britto, 2002).

Em 1854 surgiu um fato importante para a história da educação: o Regulamento 1331-A, de 17 de fevereiro de 1854, formulado pelo então ministro e secretário de Estado dos Negócios do Império: Luiz Pedreira do Coutto Ferraz, o visconde do Bom Retiro. O decreto é importante, pois reflete um contexto mais amplo que se refere à construção do Estado e da nação naquela fase do Império. Foi nesse regulamento que se colocou pela primeira vez no Brasil a questão da ordenação sistêmica da função educacional. Segundo Rocha (2008),

o decreto Coutto Ferraz será a primeira que a estabelece plenamente, definindo em detalhes, ao longo de 11 artigos, no Título I e capítulo único, a incumbência de cada uma das funções. Trata-se de culminância de um processo que define o seu sentido pelo alargamento da função estatal na regulamentação de um setor de política pública. Podemos dizer que somente então se tem efetivamente uma política pública para a educação (Rocha, 2008).

A dimensão estatal do regulamento Coutto Ferraz é um fator importantíssimo, porém o que nos interessa é perceber a legislação como um corpus documental, o que significa enfocá-la em suas várias dimensões (Faria Filho, 1998). Ou seja, tirar da legislação aquilo que, na sua opinião, ela tem de mais fascinante: a sua dinamicidade. Essa perspectiva abriria mais uma possibilidade de inter-relacionar, no campo educativo, várias dimensões do fazer pedagógico, os quais, atravessados pela legislação, vão desde a política educacional até as práticas da sala de aula.

A análise aqui proposta, portanto, é incluir o professor no centro da questão. Como o professor “reagiu” ao regulamento? Como o decreto-lei foi recebido entre os professores? E quais pontos surtiram polêmica?

Em trabalho realizado com a documentação referente ao fundo Educação do Arquivo Nacional, percebemos que o regulamento Coutto Ferraz sofreu adaptações, algumas delas com fortes indícios de terem sido em parte causadas pela reação dos professores a pontos específicos (Silva, 2008).

O Art. 12 do regulamento Coutto Ferraz diz o seguinte:
Só podem exercer o magistério público os cidadãos brasileiros que provarem;
1º maioridade legal
2º moralidade
3º capacidade profissional.

O modo como será provada a capacidade profissional está inscrita no Art. 17: “A capacidade profissional prova-se em exame oral e por escrito, que terá lugar sob a presidência do inspetor geral e perante dois examinadores nomeados pelo governo”.

Porém, em sessão do Conselho Diretor, em 7 de junho de 1854 (Arquivo Nacional, série Educação), ocorreu uma “adaptação” ao regulamento em torno da capacidade profissional. O que se mostrava embutido de grande rigor e controle foi alterado pelo conselho diretor.

Na correspondência enviada ao ministro pelo inspetor geral interino, Manoel de Oliveira Fausto (idem), foi usado o termo “projetos adaptados pelo conselho diretor”.Há nos projetos adaptados a criação de duas situações de avaliação, diferentemente do que estava prescrito no Art. 17: se houver somente um pretendente à cadeira, basta o seu título de capacidade, sem novo exame para ser apresentado ao governo; porém, ao comparecer mais de um pretendente, haverá sobre a matéria da cadeira um trabalho escrito. No documento aparece o termo “assaz difícil”, referindo-se ao trabalho escrito.

No Art. 111 estava prevista a criação de disposições por parte do conselho diretor, ou seja, no texto do referido artigo do regulamento aparece subentendida a possibilidade ou a percepção da necessidade de futuras intervenções por parte do conselho diretor. O Art. 17, em seu texto, não visava a essa possibilidade; entretanto, as adaptações ocorreram. A hipótese é de que essa adaptação tenha ocorrido devido a reclamações dos professores em torno do exame de capacidade profissional, o que demonstra um fator de cidadania por parte dos profissionais. Os exames de capacidade profissional foram exigências criadas no decreto Coutto Ferraz, pois optou-se claramente pela formação em serviço, ao invés de formação em escola normal (Rocha, 2008).

Não foram poucas as pessoas que pediram dispensa das provas de capacidade. De uma lista datada 12/03/1855, foram treze pedidos, dos quais nove conseguiram dispensa e quatro foram negados. Nota-se que, após um ano da implementação do regulamento Coutto Ferraz, as discussões em torno das provas de capacidade continuavam. Da lista acima, a maioria conseguiu dispensa. A dispensa dos exames era concedida sob a justificativa, por parte do conselho, de que tem conhecimento sob o suplicante, ou seja, o conselho tinha conhecimento da capacidade do professor. Quando era negado o pedido de dispensa, o argumento era de que os documentos apresentados não colaboraram para o efetivo conhecimento do suplicante. Há de se levar em consideração o caráter geral da sociedade na aceitação e/ou negação dos pedidos de dispensa das provas de capacidade.

Além dessa lista, são encontrados, no Arquivo Nacional, vários pedidos de dispensa das provas de capacidade após o regulamento de 1854. Foram tantos os pedidos que a Inspetoria se viu na necessidade de expedir circulares exigindo o cumprimento do regulamento. Assim como o conselho diretor, outros cargos foram criados com o regulamento de 1854, seguindo uma hierarquia a partir do ministro: o inspetor, os delegados e o conselho. Entre as competências do inspetor estava a de presidir exames de capacidade para o magistério e conferir títulos de aprovação. Os cargos criados com o regulamento de 1854 cumpriram papel regularizador, cada qual com suas obrigações. No entanto, estabeleceram alternativas para contornar certas situações surgidas pela “resistência” encontrada a alguns pontos do regulamento.

Mesmo não havendo a participação direta dos professores nas formulações das leis em torno da instrução, estes, ao menos no que toca ao regulamento de 1854, “intervieram” pelo menos contestando certos pontos então estabelecidos, exercendo seus direitos e exigindo medidas do Estado, numa típica relação de cidadania.

As Circulares eram comunicados expedidos pela Inspetoria Geral da Instrução Pública, órgão criado no regulamento Coutto Ferraz, direcionado aos professores.

A insistência dos professores em não cumprir o regulamento, seja por desconhecimento, por discordância ou por outro motivo qualquer, fez surgir um diálogo oficial da Inspetoria para com os professores, na forma de Circulares.

Apesar de as circulares possuírem caráter de exigência do cumprimento do regulamento, como a que exigia um mapa nominal dos alunos matriculados na aula com declaração de sua frequência e aproveitamento (Arquivo Nacional, série Educação), os seus textos findavam com o reconhecimento da importância do papel do professor no processo de regulamentação da instrução. A colaboração do professor era imprescindível. Mesmo que o professor não participasse da elaboração do regulamento, sem a sua ajuda o regulamento não poderia efetivamente ser cumprido.

As circulares, no entanto, além de serem “exigências” ao cumprimento de “imposições” institucionais, também podem ser entendidas como um “diálogo”, implícito no modo como elas terminavam “o que comunico ao senhor professor, para o seu conhecimento” (Arquivo Nacional, série Educação). Não eram expedidas circulares somente emitindo exigências a serem cumpridas. Apesar do forte caráter controlador, alguns pontos ficavam a cargo dos professores, como o cálculo do seu pagamento. Quem repassava para a Inspetoria os dias trabalhados para receber pagamento eram os próprios professores.

O professorado cumpriu papel relevante na efetivação do regulamento de 1854. As circulares, ao serem dirigidas diretamente a eles, reconheciam, mesmo que implicitamente, que sem a contribuição dos professores não seria possível a efetivação do regulamento. Ao mesmo tempo, algumas tarefas delegadas aos professores pela Inspetoria podem ser entendidas explicitamente como um reconhecimento de que, sem a “aceitação” de qualquer lei ou regulamento por parte desse grupo, seria difícil uma regularização da instrução.

Manifestos: intervenções diretas

Como vimos, o Regulamento 1331-A, de 17 de fevereiro de 1854, desencadeou diversas reações, a que se seguiram adaptações, e concomitantemente produziram-se algumas circulares por parte da Inspetoria Geral destinadas aos professores. No nosso entendimento as circulares representaram um canal de diálogo entre os professores e o Estado. Daniel Cavalcanti Albuquerque Lemos (2005) trabalhou com as cartas e abaixo-assinados de autoria de professores no século XIX (1869-1888) encontrados no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ). Para ele, essa documentação representa um diálogo entre professores, com suas reivindicações, e o Estado Imperial.

É relevante a proposta de considerar o professor como agente ativo e atuante no processo de construção de um sistema educacional e perceber momentos de reconhecimento, por parte do Estado, do papel e da importância do professor, pois, segundo Lemos (2005),

os abaixo-assinados, ao darem visibilidade aos interesses de moradores, pais, e no caso estudado, dos professores e professoras, demonstram que a escolarização não se configura exclusivamente como um projeto imposto pelo Estado, motivo que faz os professores e professoras pressionar os dirigentes do Estado Imperial no sentido da extensão da rede escolar, seja criando novas escolas primárias públicas, masculinas e femininas, seja subvencionando a iniciativa de caráter privado para que tal expansão fosse viabilizada e agindo como sujeitos de direitos no que se refere às questões educacionais, permitem que os mesmos possam ser percebidos não como simples reprodutores das normas que lhes são impostas. Nesse sentido, reconhecer a participação desses agentes impõe admitir um duplo movimento: enquanto as normas agem sobre eles, procurando conformar e controlar praticas determinadas, bem como, nas suas reações, nas quais discutem as regras que lhes são impostas, propondo alterações e revogações, ou seja, reinventando a própria norma, conforme o caso.

Até o momento, foram vistas atuações “indiretas” dos professores, seja em forma de “negação” ou “reação” a um regulamento ou na forma de abaixo-assinados, cartas etc. Mas a atuação dos professores também se deu de forma direta e ainda no século XIX, como demonstra Lemos (2004) em seu trabalho sobre o Manifesto de professores públicos primários da Corte. Datado de 28 de julho de 1871, esse manifesto declara a situação da sociedade imperial e aponta a educação como possibilidade de mudar o estado das coisas:

analiso a prática dos manifestos entendendo-os como importantes monumentos, peças emblemáticas para a compreensão da participação organizada de professores nos rumos da educação, seja tratando a educação como coisa pública, objeto de interesse coletivo, seja demarcando posições, clamando pela responsabilidade do Estado diante das questões manifestadas.

Além do reconhecimento do papel da educação por parte dos professores, o manifesto de 1871 explicita o reconhecimento dos próprios professores como agentes atuantes no campo da educação. Segundo Lemos, o manifesto possuía o formato de um pequeno livro de 21 páginas, sendo composto por quatro cartas assinadas por três professores públicos – Candido Matheus de Faria Pardal, João José Moreira e Manoel José Pereira Frazão –, que as assinam em “nome da classe”. Portanto, se em Minas Gerais a associação União do Magistério Mineiro, fundada em 1906, simboliza um marco do reconhecimento dos professores como categoria, no município da Corte, já em 1871, esse reconhecimento é implícito na forma que os três professores citados assinam o manifesto: “em nome da classe”.

A organização dos professores em associações é perpassada pela ideia de se fazer melhor representar. No caso da associação mineira, além de se melhor representar, existia a intenção de melhoria no próprio “sistema” educacional, ideia explicitada no artigo 2° do estatuto da associação.

O professorado como agente transformador

Muitos problemas se colocavam ao horizonte educacional. Mas dois deles necessariamente precisavam ser enfrentados. Nos dizeres de Estevam de Oliveira, inspetor escolar,

quem diz resolver o problema do ensino primário, ou antes, e muito mais propriamente, aliás, quem diz lançar os fundamentos de racional organização, para seu ulterior desenvolvimento coordenado, implica necessariamente, como ideias primárias concebidas a priori:

  1. fundação de escola
  2. formação do professorado (Oliveira, 1902, p. 3).

No mesmo relatório apresentado ao Sr. Dr. secretário do Interior do Estado de Minas Gerais, o inspetor Estevam de Oliveira ilustrou as deficiências e aponta os desafios a serem enfrentados: “sem escolas convenientemente organizadas não se terá instrução primária integral, e que, sem professores preparados, não haverá escolas, não haverá educação intelectual possível” (Oliveira, 1902, p. 76, grifo nosso).

O professor, na visão do próprio inspetor, é parte primordial no processo de formulação de um “sistema” educacional. Como inspetor escolar, portanto, um agente institucional, sua fala também simboliza o reconhecimento “oficial” da importância do papel do professor.

Houve esse reconhecimento por parte de órgãos institucionais e o mesmo ocorreu entre os professores. Os estatutos da Associação União do Magistério Mineiro indicam a preocupação dos professores para além do professorado.

O estatuto da União foi publicado no jornal Minas Gerais no dia 21 de junho de 1906, contendo 35 artigos. São claras as intenções da associação no artigo 2º, que trata de seus fins:

I – Promover por todos os meios ao seu alcance o engrandecimento do ensino, de modo que ele se torne poderoso fator do progresso moral, intelectual e material do Estado.

II – Prestar a seus associados todo o apoio e auxílio em qualquer emergência.

III – Pugnar o mais possível para que o ensino tenha um cunho prático, a fim de que os futuros cidadãos, ao deixarem os bancos escolares, se achem convenientemente preparados pra a luta da vida (jornal Minas Gerais, 21/06/1906).

O artigo que trata da finalidade da associação se refere especificamente ao professor somente no item dois. Portanto, para além do professorado, a associação visa ao melhoramento do ensino e opina até mesmo sobre as práticas pedagógicas, como o item três deixa claro.

Estabelecer um projeto educacional que atendesse ao ideário republicano e ao mesmo tempo implicasse melhoras significativas ao ensino foi um desafio que pautou as discussões no início do século XX.

A frequência com que aparecem notícias sobre educação no jornal Minas Gerais, órgão oficial do Estado, ilustra a densidade da situação. Mas mudanças ocorridas apenas em esferas institucionais não resolveriam a questão. O professor assume, então, papel fundamental.

Os desafios impostos não poderiam ser vencidos sem a ajuda do professorado. E essa ajuda aparece em momento importante – o do reconhecimento pelos próprios professores em categoria organizada, ideia ratificada na fundação da associação União do Magistério Mineiro.

Considerações finais

Um olhar pela história mostra que a cidadania no Brasil ainda está em construção. O caminho para uma sociedade em que os indivíduos possam exercer seus direitos e, ao mesmo tempo, ter consciência de seus deveres é um processo histórico e longo. A educação cumpre um papel de relevância em todo esse processo. É importante o resgate de certos valores tecidos no âmbito das grandes revoluções; ao mesmo tempo, é preciso que se constitua uma luta diária, em esferas locais, tal qual fizeram diversos professores, como demonstrado neste trabalho, pois só assim construiremos uma sociedade em que os cidadãos exerçam com liberdade seus direitos.

Referências

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LEMOS, Daniel Cavalcanti Albuquerque. Manifestantes na Educação do Século XIX: o manifesto de julho de 1871. 27ª Reunião Anual da Anped, 2004, Caxambu-MG. Sociedade, Democracia e Educação: Qual Universidade?, 2004, v. 1.

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OLIVEIRA, Estevam. Reforma do ensino publico primário e normal em Minas. Relatório apresentado ao secretário do Interior. Belo Horizonte. Imprensa Oficial do Estado de Minas, 3 de agosto de 1902.

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ROCHA, Marlos B. M. da. O decreto Coutto Ferraz num contexto de transformação da res-pública. Comunicação coordenada do V Congresso Brasileiro de História da Educação. Aracaju, nov. 2008.

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Publicado em 5 de fevereiro de 2013

Publicado em 05 de fevereiro de 2013

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