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O QUE É EDUCAÇÃO LITERÁRIA?

Cyana Leahy

PhD em Educação Literária (London University), professora na UFF, escritora, tradutora, coordenadora da CL Edições

Toda criança gosta de ouvir histórias antes de dormir. Há livros feitos para os bem pequenos, de grande apelo sensorial, provocando efeitos visuais, olfativos, táteis. Cada vez há mais títulos infantis e infantojuvenis no mercado, lançados por editoras especializadas nessa literatura. Ao se tornarem letradas, o presente habitual que crianças recebem é um livro, dado pela escola, pelos pais, parentes e amigos. A maioria das escolas comemora o coroamento do letramento com a ‘festa do livro’. Entretanto, à medida que essas crianças crescem, vão se afastando gradativamente do universo da leitura literária, quer por falta de exemplo em casa, quer porque outras leituras passam a predominar em sua vida como forma de lazer. A maioria tem total domínio dos recursos cibernéticos à sua disposição, fotografando a paisagem e enviando imediatamente para os amigos, via internet.

Muitos adolescentes se declaram amantes da poesia, pela qual procuram encontrar a expressão adequada para a identificação e a representação de suas emoções e sentimentos. O que então acontece na vida desses leitores potenciais, cujo ambiente principal de leitura é a escola? O que é feito do texto literário quando se torna objeto de estudo? Como é a relação dos estudantes com o livro mediado pelo espaço escolar? Quem é o aluno antes e depois de trabalhar com a arte literária e estudar literatura? Haverá alguma transformação relevante em sua visão do texto, de si, do mundo? Como fica sua relação com a palavra-arte depois que experimenta esse texto/tecido no espaço pedagógico da escola? Haverá uma associação entre leitura e prazer?

Proponho aqui examinar as relações com a palavra escrita sob os aspectos da leitura, da língua, da literatura atuantes nos diversos níveis de ensino. Penso que não adianta produzir receitas práticas sem a indispensável reflexão teórica que provoca a crítica continuada e que deveria ser primordial na formação dos docentes de língua e literatura nacionais. Sem oferecer fórmulas prontas e mágicas, vou fazendo minhas sugestões para uma educação literária mais coerente com aquilo que deve ser o papel da escola: educar. De preferência, com diálogo, responsabilidade e prazer.

Entendo que a educação pela palavra não comporta nem suporta um coro afinado. Assim, que a distância entre minha escrita e sua leitura seja pequena e agradável, leitor, embora eu conte antecipadamente com sua suspeição: a dissonância é importante, há que desafinar. Mas para isso é preciso ler mais, refletir mais, construir teoria como uma reflexão sobre a ação, para que a leitura crítica não se torne ato vazio. É algo profundamente trabalhoso, pois exige o máximo conhecimento possível da estrutura a se demolir.

Neste percurso está presente o ideal de uma escola prazerosa, uma escola de fruição, um espaço de dialogar, de questionar, de procurar respostas conjuntamente, onde ninguém é dono de um saber ou de uma ‘verdade’, a se construir em conjunto na união de saberes. Nesse tipo de escola, certamente ler é fundamental, e o texto tem garantido seu caráter facilitador do diálogo entre autor e leitor, entre leitor e leitor, dentro de um contexto social, cultural e político a favor de uma cidadania democrática, ativa, crítica e criativa.

Como professora da licenciatura em Letras, atuando na interseção entre estudos linguístico-literários e teorias pedagógicas, sempre procurei desacomodar meus alunos, futuros professores de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Eles deveriam se perceber sujeitos ativos e responsáveis na sala de aula, na faculdade, na sociedade em que vivemos, presentes na história escrita a cada dia, a nossa História, sem meramente repetir regras, normas e ‘segredos’ acadêmicos impostos de cima para baixo, inconstantes a cada nova reforma.

Para agir diretamente no exercício da cidadania democrática, é preciso que todos nós nos vejamos como elementos importantes dentro e fora da escola. Seres responsáveis, competentes e ativos não entregam o ato pedagógico apenas aos livros didáticos, às formalidades burocráticas, reconhecendo sempre a própria importância, condição primeira de ensino e aprendizagem. Tudo é feito a partir do diálogo: sem ele não há aprendizado, sem as perguntas e respostas constantes e renovadas que devem ser a metodologia fundamental do processo de educar e educar-se.

Mas como ‘dar conta’ da matéria dentro desse processo dialógico, ensinando os conteúdos selecionados como ‘importantes’, sem ferir o compromisso político de mediar o encontro entre sujeitos sociais diferentes, sem estabelecer diferenças? Como trabalhar a valorização do leitor, como tornar visíveis, de maneira crítica e criativa, as invisibilidades e ausências do ensino de língua e literatura nacionais, cuja marca tem sido a quantificação, a memorização, a generalidade? Como eliminar a oposição forçada entre língua e literatura?

Relato a seguir uma experiência docente na licenciatura em Letras.

Primeiro dia de aulas. O horário previsto para a turma de Didática de Língua e Literatura nacionais é quarta-feira, das 18 às 22 horas. Quatro horas seguidas da mesma matéria, com a mesma professora (que sou eu), em apenas um encontro semanal. Tenho medo. Tento vencer meu medo me preparando da melhor maneira que sei, planejando um programa de leituras que expanda e aprofunde o universo de leitura crítica desses alunos. Em quase vinte e cinco anos de trabalho como professora, nunca me vi com uma mesma turma por quatro horas seguidas. O que irá acontecer? Irão bocejar, dormir nas carteiras desconfortáveis, desmaiar ou fixar os olhos baços em mim, paralisados de tédio?

Os alunos vão chegando aos poucos, durante a primeira hora. Suas justificativas, espantados com a minha valorização da pontualidade, são pouco consistentes. Na verdade, parece que estão acostumados a ser invisíveis. A chegar a qualquer hora, até mesmo a não comparecer, porque na faculdade, reza a lenda, professor não deve exigir frequência nem pontualidade, para não parecer escola primária. Afinal, alunos das ‘ciências humanas’ (serão as outras áreas desumanas?) costumam vir de classes sociais menos abastadas, trabalham, têm menos tempo para se dedicar aos estudos de sua formação profissional. Isso é real, eu sei. Mas, por outro lado, não exigir presença, pontualidade, leitura significa compactuar com o princípio de que ‘qualquer coisa serve’, de que o ‘mínimo’ deve ser garantido, como reza a lei. Para aluno cansado, o descanso; para aluno descansado, procurar não cansá-lo; afinal, eles não serão engenheiros, médicos, dentistas, mas apenas... professores.

Essa é a primeira lição do dia: se a proposta é construir conhecimentos ao vivo, lendo, debatendo, criando uma nova teoria a partir do lido, aliado à prática e à experiência de vida de cada um, não vai ser possível um ‘ensino a distância’ improvisado e inadequado. Há menos da metade da turma presente, pois ‘professor quase nenhum costuma dar matéria no primeiro dia’, muito menos exigindo assiduidade e pontualidade.

Juntos, lemos a ementa, o programa e a bibliografia do curso. Peço suas opiniões. Todos concordam passivamente com a proposta. Seu segundo espanto é o fato de que levo um número de textos para trabalharmos em classe. Mas já no primeiro dia?, me perguntam. Sim, do primeiro ao último dia teremos muito a ler, pensar, discutir, analisar, teorizar. Conversamos informalmente e começamos a nos conhecer.

Para começar, lemos textos (Lajolo; Zilberman e Silva; Martins) que questionam o significado de ‘ler’ e iniciamos o debate em pequenos grupos, para que todos sejam instigados a falar, participar, pensar. Aparentemente, não sentem sono. O cenário de nossa conversa é a situação da formação de professores de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira nas faculdades de Letras. Vários problemas surgem a partir da primeira leitura e discussão, começando pela fragmentação de postulados teóricos frequentemente estéreis, acríticos, dissociados entre si e alheios à realidade social e pedagógica. Falta leitura interdisciplinar dos próprios professores, extensiva a seus alunos, geralmente voltados para suas próprias áreas de pesquisa e especialização, de forma egoísta e egocêntrica, esquecendo-se do objetivo maior, a educação de futuros professores.

Os alunos inertes e passivos se revelam incomodados, reclamam da deficiência de um modelo acadêmico que favoreça a autonomia de pensamento, a busca de saber, a curiosidade, o questionamento genuíno de formas de ler, pensar e atuar. Será que alguém deixa de ver a clareza que os alunos têm das limitações? O tempo passa, a aula chega ao fim, às 22 horas. Há uma tarefa a ser cumprida por todos nós para o próximo encontro: a leitura crítica e competente de mais textos das mesmas autoras. Até que foi fácil e indolor, por enquanto.

Segundo encontro com a mesma turma. O planejamento das quatro horas de aula tem que ser muito criterioso para tal horário antipedagógico. Tenho ainda que competir com os bares da praça em frente ao campus, frequentados pelos alunos e aparentemente muito mais atraentes. Decido levar comigo, como material para análise a partir das reflexões teóricas da aula anterior, um livro escrito para crianças: Contos Infantis, de Júlia Lopes de Almeida e Adelina Lopes Vieira (1890), adotado como leitura, por ordem da Inspetoria de Educação, nas escolas primárias do Brasil durante cerca de cinco décadas.

Alguns alunos têm um olhar perdido. Não sabem do que estou falando, não estavam presentes na aula anterior, não perguntaram aos colegas se havia qualquer tarefa, como se não fosse problema deles, passarinhos indefesos no ninho, bicos abertos à espera do alimento que eu, gratuita e maternalmente, trarei. Esses licenciandos de Letras em menos de um ano estarão diplomados, oficialmente capacitados para atuar como profissionais de língua e literatura nacionais.

Pergunto quem fez a leitura, e apenas oito dos 28 alunos dizem sim. Explico novamente a proposta do curso; que nossas conversas serão informais mas profundas, sem a superficialidade da descrição pura e simples que tanto denunciamos. Explico que também para mim é trabalhoso ler/reler os textos, planejando ainda uma ação dinâmica que instigue a turma a pensar, a refletir criticamente sobre os conteúdos, a buscar respostas dentro de sua práxis. Insisto em dizer que não será possível alocar tempo para leituras em classe, especialmente em respeito e consideração aos colegas que cumpriram a tarefa; e gentil, mas firmemente, peço aos que não leram que se retirem da sala, que encontrem um canto para ler, só então devendo retornar à sala para participar da discussão.

Parece contraditório ter alunos de Letras que não gostam de ler. Vinte alunos saem da sala bastante frustrados e aborrecidos. Alguns reclamam em voz alta, acham meu ato autoritário e injusto. Afinal, eles não são os coitados do sistema, que trabalham duramente durante o dia e estudam à noite, de quem se exige pouco porque são carentes e estão cansados? Não estou sendo incoerente, após ter citado Paulo Freire, agindo arbitrária e autoritariamente? Será que toda oposição a nossos interesses egoístas será um ato arbitrário e autoritário?

Sim, sou inclemente. Explico aos mais revoltados que nada há de pessoal em meu gesto. Há apenas coerência entre o que digo e o que faço. Como trabalhar a produção conjunta do conhecimento, como tratar a todos como responsáveis pela ação naquele lugar, naquele momento, com a turma, se alguns não cumprem sua parte? A aula prossegue, com apenas oito alunos. Um pouco mais tarde, outros três retornam, após terem lido os textos. Os demais foram embora, em protesto.

Leio em voz alta, de maneira expressiva e teatral, o prólogo dos Contos Infantis, em que as autoras Júlia Lopes de Almeida e Adelina Lopes Vieira explicam a inclusão de ‘ilustrações’ e pequenos questionários ao fim de cada texto, para que seu livro se encaixasse na categoria de ‘material didático’. Os alunos imediatamente apontam as incoerências e paradoxos entre o que as autoras prometem, ‘histórias leves e singelas’, e os textos pesados, cheios de sentimento de culpa, com descrições de mortes e males físicos. Percebem que a criança do final do século passado era vista como ser selvagem naturalmente propenso para o mal, precisando ser domado pela escola e pela família. A proposta do livrinho é educar, formar ou, segundo um dos alunos, ‘engarrafar’ a criança.

O que mudou?, perguntam meus alunos. Será que algo mudou? Que textos temos hoje nas escolas? Que tratamento didático é dado aos textos lidos? O que se faz com a literatura? Quem lê, o que lê, como lê, por que lê, para que lê? Aos poucos vai ficando claro que estamos tratando de leitura, de língua e de literatura como meios essenciais de educar para a cidadania.

O cerco ao prazer inclui a literatura, a arte da palavra poderosa e abrangente. Assim, ler se reduz a um exercício investigativo, pretexto para treino gramatical raso e linear, apoiado em muletas pretensamente históricas. Sem uma fundamentação que contribua para o aprofundamento do pensamento autônomo e da apreciação pessoal sobre o texto lido, perde-se a competência de teorizar sobre o lido.

Terceiro dia de aula. Como eu esperava, a turma comparece em peso, todos tendo lido o livro do dia: O que é leitura, de Maria Helena Martins. Aguardam ansiosos que eu pergunte ‘quem leu’, para que possam me olhar de frente, tarefa cumprida, desafiando meu suposto sadismo em mandar sair da sala os ‘coitados’ que, por centenas de justificativas válidas, não teriam lido. Demonstro minha alegria por terem compreendido a importância de sua preparação responsável para o debate, para a discussão, para a reflexão.

E começamos a trabalhar com uma proposta um pouco diferente da semana anterior: tentar definir o problema, as questões, os objetivos, a metodologia, as conclusões, repensar o projeto que estaria por trás do texto, sem perguntas prontas. Dessa vez são os alunos que reviram o livro pelo avesso, em grupos de três pessoas, definindo o ‘problema’ de que trata o livro com coerência, consistência, capacidade de coesão e de síntese do lido, futuros pesquisadores autônomos.

A discussão flui com facilidade, a maioria domina o conteúdo do texto, muitos se cobram citações em respeito à veracidade autoral, trazem exemplos do cotidiano, aliam teoria à prática, pensamento à ação, re-constroem uma teoria da leitura significativa e própria.

Não disfarço o orgulho pelo belo trabalho que fazem. Um breve intervalo, e em seguida proponho uma síntese pedagógico-literária: trago nove textos literários de autores diferentes, a maioria desconhecida desses alunos quase-professores de português/literatura (autores como Hilda Hilst, Olga Savary, Renata Pallottini (poetas brasileiras contemporâneas), Mia Couto (moçambicano), Graciliano Ramos (seu relatório como governador das Alagoas), Manuel de Barros (autor brasileiro contemporâneo), Júlia Lopes de Almeida (escritora brasileira da 1a metade do século XX)). A tarefa agora é tentar aplicar a teoria sobre leitura aprendida nos textos lidos, planejando uma aula de leitura literária sobre um texto à sua escolha, selecionado nos livros distribuídos aos grupos de trabalho. Como planejar uma aula de leitura literária que respeite o leitor e sua trajetória de forma genuína e não impositiva, que instigue e valorize o prazer de ler? Um dos primeiros problemas diz respeito à pouca intimidade com o universo literário contemporâneo, e a consequente insegurança dos licenciandos quanto à leitura, à apreciação crítica, ao tratamento que deve ser dado a cada texto para que seja instrumento de um processo, antes que um produto final sobre o qual tudo já foi dito e decidido.

Sua leitura integral de vários textos, segundo a maioria, estava sendo ali iniciada, com o máximo de prazer e fruição com que já haviam trabalhado um texto literário. Por que excluir esse tipo de leitura das salas de aula dos diversos níveis de escolaridade, em nome da ordem e do progresso, da produção, do medo social e político de mudar e mudar-se?

PCN, ENEM e a leitura na escola

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) trouxeram uma nova proposta pedagógica para as aulas de Português, aparentemente resultado de um fórum de discussões entre especialistas na área, mas nem sempre com discussão na universidade por se dirigirem ao Ensino Fundamental e ao Ensino Médio, dos quais a maioria dos docentes quer distância. Aqueles de nós que, por motivos variados, esbarraram nesses parâmetros não foram apanhados de surpresa quando se formalizou a extinção da disciplina Literatura dos programas escolares. Assustaram-nos os motivos políticos e filosóficos relativos à eliminação da disciplina, reduzindo o mercado de trabalho docente, como já havia sido feito em decretos semelhantes, nos anos 1980, com a eliminação da Sociologia e da Filosofia dos currículos oficiais.

Pouco se pôde fazer, restando essas lacunas, cujos efeitos político-sociais se sentem a longo prazo. Mas como podemos nos alienar tanto das políticas públicas, das esferas de decisão sem nos responsabilizarmos por tal fato? O que significou na prática a extinção da Literatura como disciplina escolar, mediando o ensinado e o aprendido? O que terá decretado sua falência? As licenciaturas de Letras formam professores de língua e literatura nacionais, mas isso não deveria ser responsabilidade exclusiva dos professores das disciplinas pedagógicas, das didáticas e práticas docentes, caracterizadas pela leitura submissa dos livros didáticos de literatura ou de apostilas condensadas. Mesmo assim, a maioria dos programas elaborados por coordenadores bem-intencionados falava em ‘despertar o aluno para o prazer da leitura’, ‘desenvolver práticas de leitura e interpretação’, ‘aumentar a sensibilidade e o gosto estético’, ‘contribuir para a cultura nacional e o desenvolvimento da cidadania’.

Na prática via-se a memorização acelerada, incongruente e banal voltada para a historicidade linear de fatos, destituída de prazer, com pouca leitura, limitada, em geral, aos excertos de textos literários pré-selecionados pelos autores dos livros didáticos, pequenos trechos carregados da marca elitista, patriarcal e excludente da seleção do cânone imposto aos estudantes (poucas mulheres, raros negros, nenhum representante legítimo das classes operárias dentre os autores eleitos como nossos clássicos).

Nossos estudos literários sempre tiveram por eixo a memorização das características de cada período, escola ou movimento, que ditavam a seleção dos excertos modelares; textos e/ou autores que não servissem de exemplo das tais características eram sumariamente descartados, sem priorizar a leitura como espaço de diálogo verdadeiro com a palavra-arte.

O que encontrávamos e encontramos nas escolas? O programa tradicional de Língua Portuguesa era pautado, até muito recentemente, por conteúdos fragmentados, prescritos em ordem predeterminada, com a presença eventual de textos servindo de pretexto para estudo gramatical, esvaziando sua leitura como obra de arte. Não é novidade lembrar das aulas em que o/a professor/a de Ensino Médio usava um poema ou trecho em prosa para leitura silenciosa, seguida de leitura oral, pedindo de modo frouxo a opinião amorfa e acrítica dos alunos (‘Qual a mensagem do texto? O que o autor quis dizer com isso?’) para em seguida mandar destacar os substantivos, adjetivos ou conjunções ou fazer a temida e inexpugnável análise sintática de um período.

Texto, leitura e interpretação, nesse modelo, são meras preliminares ao ato principal, que é a extração de informação gramatical; não se volta ao texto para aplicar a análise gramatical à interpretação literária, nem se cultiva o hábito da investigação. As próprias regras dos PCN prescrevem a utilização do texto como campo de estudo da língua, enfraquecendo o aspecto artístico (ético-estético) da literatura, como proposta alternativa, quando, na verdade, o cerne da questão deveria ser a leitura competente a ser construída dentro da escola, desenvolvendo a competência interpretativa por meio dos recursos linguístico-literários de que dispomos. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais, a Língua Portuguesa abrange um documento de 106 páginas, enquanto a discussão sobre texto literário ocupa uma página (entre as 26 e 27). A propósito, o professor Evanildo Bechara, em entrevista ao Jornal do Brasil (16 de julho de 2002), lamenta o fato de os PCN tratarem apenas do texto, esquecendo a língua e a cultura. Penso que esse não será de fato o problema central, pois pensar no texto apenas como conjunto de palavras, quer se trate de excerto literário ou de recorte de jornal, é aligeirar esse constructo.

O problema é que analisar textos de forma crítica, profunda e reflexiva requer um olhar transdisciplinar para a palavra-arte, para a palavra-comunicação, para a palavra-cultura, para a sociedade em que vivemos. O maior problema dos PCN, para os profissionais de língua e literatura nacionais, é a não identificação da literatura como arte da palavra (As páginas 45 a 65 dos PCN – Ensino Médio, parte II (Linguagens, Códigos e suas Tecnologias), tratam de Conhecimentos de Língua Portuguesa, Conhecimentos de Arte, dentre outros conhecimentos, sem haver espaço para a educação literária numa ou noutra área de conhecimentos. A literatura está diluída, amorfa, aparecendo como pano de fundo dos estudos da língua).

Até recentemente, ano após ano os mesmos conteúdos gramaticais iam e voltavam, em rodízio, com estudantes cada vez menos confiantes no domínio da gramática da sua língua: a morfossintaxe da língua portuguesa parece dificuldade quase intransponível, mesmo sendo ensinada ao longo de sua permanência na escola. Ouve-se nas salas de aula que alunos pioram a cada ano, que o nível está cada vez mais baixo, que o analfabetismo funcional é a tônica, especialmente nas escolas da rede pública; que brasileiros não leem, não escrevem, não pensam. Será que nós, professores, preparamos aulas criativas e propensas ao diálogo com nossos alunos, instigando-os a solucionar problemas? Até que ponto lemos, analisamos, debatemos ideias, textos, regras e normas com nossos alunos?

Proponho tratarmos o texto como campo de pesquisa a ser lido, analisado e discutido para definir um problema-chave, criando estratégias e diferentes modos de analisar o que é relevante para a compreensão, num movimento de vaivém de construção e reconstrução de teorias de leitura, de conhecimento linguístico (palavra de comunicação) e literário (palavra de expressão/arte). Aspectos gramaticais podem e devem ser tratados de forma que sua análise efetivamente contribua para a melhor compreensão do texto, para o desfazimento dos nós interpretativos que impedem a leitura verdadeira, atingindo níveis mais profundos do pensamento.

Em vez de estudar tempos verbais compostos ou complementos nominais retirados de um texto apresentado como leitura, e rapidamente descartado como tal, por que não partir do estranhamento causado pelos neologismos de Guimarães Rosa? De Mia Couto e Manuel de Barros, estudando a etimologia desses termos, analisando sua formação e derivação, tentando depreender sentidos e reconstruir processos de construção e criação literária? Como não usufruir a delicadeza de uma Carolina Maria de Jesus, com sua crítica política e social considerável, como boa leitora que sempre foi, mesmo carregando os graves defeitos de ser mulher, negra, pobre, mãe solteira, catadora de papel no lixo e favelada?

Algumas perguntas merecem nosso cuidado e atenção. Parece muito complexo inverter a relação do texto com a gramática, porque a maioria dos professores não está ‘equipada’ para ‘pesquisar’ o texto, já que os cursos de Letras formam docentes de língua e literatura nacionais sobre grandes lacunas, sobre a fragmentação intrínseca dos componentes curriculares, sobre a dispersão intelectual que favorece tradições acadêmicas estáticas.

Se nos falta a segurança de leitura, análise e interpretação adquirida pela maior intimidade com as teorias literárias, por que não diversificar e aprofundar as possibilidades crítico-teóricas de leitura para além da tradição fenomenológica? Por que nossos licenciandos não desenvolvem novos olhares, novos enfoques de leitura literária, que não a busca frustrante de um contato extrassensorial com a mensagem do autor? O que sabem eles das teorias críticas que privilegiam o texto/discurso ou o leitor? Ao invés de memorizar períodos históricos ou de concentrar todas as atenções sobre os mesmos autores privilegiados pelo cânone – e pelo conforto de neles sermos especialistas – não seríamos e teríamos melhores professores se nos puséssemos a trabalhar de modo dialógico as diferentes possibilidades teóricas de ler a arte literária? O que parece mais relevante para a autonomia dos docentes que educamos: o mergulho em um homem e sua obra ou o questionamento das variadas formas de olhar e ver a arte da palavra?

Termina o semestre. A teoria e a prática pedagógica em língua e literatura nacionais consistiram mais uma vez em questionar o processo de educar pela leitura, literatura e língua do Brasil lendo, discutindo, refletindo, cotejando propostas teóricas com nossas experiências escolares e universitárias, propondo novos caminhos. Tratamos de leitura como um processo de construção permanente, espaço de aprendizado e de identidade, apoiando nossos debates em vários autores, com os quais concordamos (ou não) parcial ou integralmente.

Embora surjam problemas na discussão, muitas vezes desviando os rumos da leitura, procuramos examinar questões da língua nacional tendo por foco principal o problema da gramática normativa, pouco permeável à realidade comunicativa dos falantes brasileiros. Ironicamente, essas questões discutidas discretamente na formação universitária dos licenciandos – e geralmente ignoradas na maioria dos espaços escolares – são objeto de avaliação na maioria dos exames vestibulares para ingresso à universidade brasileira.

Fechando a conversa

A maioria dos licenciandos de Letras desconhece as diferenças de enfoques entre os estudos tradicionais centrados no autor e no texto, pouco sabem da teoria da recepção, de seu desdobramento na teoria do efeito, valorizando a ação de leitura e a presença do/a leitor/a. Estuda-se Linguística na graduação, mas usam-se os princípios inquestionáveis da gramática normativa para ensinar – e aprender – os fatos da língua. No mínimo desperdiça-se tempo precioso para todos, educadores e educandos, nas faculdades e nas escolas.

É no espaço restrito das disciplinas pedagógicas específicas que se discutem os desvios; ou seja, as licenciaturas questionam a gramática, reúnem os fragmentos de conhecimentos sobre língua e literatura, adaptando esse ‘tecido’ a uma realidade escolar, exercitando o olhar sobre os paradoxos, as contradições e os limites, e tentando atuar sobre as possibilidades. O tempo é curto para dar sentido teórico a uma formação picotada, tentando produzir uma trama bem urdida desses fios soltos. Às vezes conseguimos, outras vezes, não. Mas sempre há mudanças:

Com apenas uma aula por semana, tínhamos no semestre oito livros para ler, além dos PCN de Língua Portuguesa e de livros surgidos por conta da curiosidade, como o Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. Além dessas leituras, preparávamos semanalmente (para avaliação) planos de aulas e textos sobre as questões tópicas das leituras efetuadas.

O resultado foi percebido rapidamente até mesmo em outras disciplinas. Tivemos oportunidade de discutir a educação, técnicas de aprendizagem, com um embasamento teórico que antes não tínhamos. Tivemos a dimensão do fracasso do ensino de nossa língua materna e discutimos possibilidades de fazer nossa parte num processo urgente de mudança.

Adoro uma imagem do Fiorin que diz que, assim como o tecido não é um emaranhado aleatório de fios, mas sim o resultado de um trabalho árduo de escolha e composição, o texto não é um aglomerado de palavras, mas sim um trabalho minucioso de composição das mesmas. Assim me parece a educação, na qual os fios/palavras são os professores e alunos num trabalho árduo, prazeroso e incessante de construção do conhecimento (M. Ignês Cortes, 3 de setembro de 2002).

Tive a oportunidade de começar a dar aulas de Português para turmas de Ensino Fundamental desde o início deste ano letivo, antes de começar as aulas este semestre na Faculdade – e então ainda não conhecia essa proposta que nos foi apresentada. Quando começamos a Didática Específica e iniciamos as leituras dos PCN e depois com a complementação dos textos de Mário Perini, Rodolfo Ilari, Magda Soares, Celso Luft, Cyana Leahy-Dios, Maria Helena Martins e outros, passei a levar essa proposta para minha sala de aula. O resultado foi surpreendente; não só os alunos passaram a gostar das aulas como também eu consegui dar uma aula de verdade. Trocamos as regras gramaticais feitas para frases prontas e passamos ao que realmente interessa: leitura, interpretação, análise, discussão, debates, críticas de textos que variam desde clássicos até letras e músicas funk.

Por ter estudado, durante toda a minha vida, uma gramática descontextualizada, resulta um pouco complicada essa mudança. Por exemplo: se o professor deve usar a gramática só para melhor entender um texto, como fazer se o aluno não souber ainda essa gramática? Como o aluno usaria a análise sintática para desatar o nó do texto, se ele não sabe o que é sujeito e predicado? Volta-se ao método tradicional? Estas e outras perguntas com certeza terão as respostas com a continuidade dos estudos, das pesquisas, dos erros e dos acertos ao longo de uma (espero) brilhante carreira de professor (Reinaldo Galvão, 3 de setembro de 2002).

Sem nenhuma dúvida foi a disciplina que mais contribuiu para meu crescimento profissional. Pelas leituras solicitadas pude desenvolver o meu olhar crítico de uma maneira bastante positiva. (...) Todas as leituras propostas foram fundamentais para o crescimento de todos nós. Seria muito bom se todos os futuros professores tivessem a mesma oportunidade, para adquirir e desenvolver essa visão crítica que ao longo do semestre consegui desenvolver. Claro que estou ciente de que agora, mais do que nunca, terei que me empenhar mais e mais para atingir meu objetivo, que é continuar estudando (Luciane Azevedo, 3 de setembro de 2002).

Esses e outros depoimentos de licenciandos, ao fim do semestre em que cursam Didática, trazem embutidas descobertas, dúvidas, ansiedades e inquietações. O que fazer daqui para a frente? Como recuperar a esperança e matar a sede de outros alunos? Por que não pôr em prática a proposta de ler e ver, desenvolvendo capacidades de observação, análise, síntese, transferência e aplicação dos conhecimentos?

Exercícios de leitura, análise e interpretação de textos não podem tentar se ‘comunicar’ com o/a autor/a, a maioria já falecida. Sem preciosismos estruturalistas nem malabarismos impressionistas, pusemos em prática as reflexões despertadas pela discussão insubmissa de autores contemporâneos que discutem leitura, língua, literatura.

Fica aqui o convite para que você, leitor/a, embarque conosco nesse passeio.

Referências

Marisa Lajolo. Do mundo da leitura para a leitura do mundo.

Regina Zilberman & Ezequiel Silva. Leituras Interdisciplinares na Escola.

Maria Helena Martins. O que é leitura?

Publicado em 19 de fevereiro de 2013

Publicado em 19 de fevereiro de 2013

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