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Para ler, saborosamente, em diversas linguagens

Rodrigo da Costa Araujo

Professor de Literatura Infantojuvenil e Arte-Educação (Fafima), doutorando em Literatura Comparada (UFF)

Escutar, olhar, ler equivale finalmente a constituir-se. Na abertura ao esforço de significações que vem do outro, trabalhando, esburacando, amarrotando, recortando o texto, incorporando-o em nós, destruindo-o, contribuímos para erigir a paisagem de sentido que nos habita. O texto serve aqui de vetor, de suporte ou de pretexto à atualização de nosso próprio espaço mental. Confiamos às vezes alguns fragmentos de texto aos povos de signos que nos nomadizam dentro de nós. Essas insígnias, essas relíquias, esses fetiches ou esses oráculos nada têm a ver com as intenções do autor nem com a unidade semântica viva do texto, mas contribuem para criar, recriar, reatualizar o mundo de significações que somos.

Pierre Levy

Primeiras palavras: pensar a leitura

Nesta epígrafe, extremamente significativa, Pierre Levy propõe novas formas de ler e atualizar o texto e o processo de virtualização e a construção de novos sentidos. Para ele, ao mesmo tempo que rasgamos o texto pela leitura ou pela escuta, amarrotamos esse texto lido. Dobramo-lo sobre si mesmo. Tal trabalho da leitura, para ele, pressupõe o ato de rasgar, amarrotar, torcer, recosturar o texto para abrir um meio vivo no qual possa se desdobrar o sentido. O espaço do sentido, nesse processo, não preexiste à leitura e é ao percorrê-lo que o fabricamos ou o atualizamos. Ele afirma ainda que enquanto dobramos esse texto sobre si mesmo estabelecemos relações com outros textos, outros discursos, imagens, afetos, toda a imensa reserva flutuante de desejos e de signos que nos constitui. Quando isso acontece, segundo suas leituras, não é mais o sentido do texto que nos ocupa, mas a direção e a elaboração de nosso pensamento, a precisão de nossa imagem no mundo, a culminação de nossos projetos.

Fonte: http://www.partes.com.br/cultura/livros/leitorimersivo_arquivos/image004.jpg

Pensando assim, o texto não é mais amarrotado, dobrado sobre si mesmo, mas recortado, pulverizado, distribuído, avaliado segundo critérios de uma subjetividade que produz a si mesma. Todos esses processos de atualização, segundo o filósofo, remontam e reforçam o conceito de hipertexto e novas formas de conceber o leitor e a leitura. Esse processo construtivo do hipertexto, de modo geral, exige um leitor atento, possuidor de habilidades técnicas, capaz de ser coautor de uma obra, consciente das transformações que ajuda a construir e do poder da técnica que utiliza.

Para expandir o conceito de leitura

Aproximando dessas mesmas relações obra-autor-espectador, Lúcia Santaella, sabiamente, em Navegar no ciberespaço. Perfil do leitor imersivo, refere-se à abertura da obra e a três tipos de leituras, assim como às interações a partir das habilidades sensoriais, perceptivas e cognitivas que estão envolvidas nesse processo. Esses três tipos de leitura também, de algum modo, representam o modo de “abertura da obra de arte” na contemporaneidade, principalmente em poéticas interativas.


Ilustração do livro infantil Zubair e os Labirintos, de Roger Mello
Ilustração do livro infantil Zubair e os Labirintos, de Roger Mello

O primeiro tipo – o leitor contemplativo, o leitor meditativo da idade pré-industrial, o leitor da era do livro impresso e da imagem expositiva, fixa – é aquele que se concentra em uma atividade interior, labiríntica e pessoal. “Esse leitor não sofre, não é acossado pelas urgências do tempo” (Santaella, 2004, p. 24); trata-se apenas de um leitor que contempla e medita.

Inspirado nas obras de Walter Benjamin e Baudelaire, o segundo tipo – o leitor movente, fragmentário – representa o leitor do mundo em movimento, de misturas sígnicas; esse leitor, segundo a pesquisadora, é filho da Revolução Industrial e dos grandes centros urbanos. Um leitor de fragmentos e de sensações evanescentes e instáveis. As habilidades desse leitor são inquestionáveis, pois ele, além da capacidade de conviver com os diversos signos, também sabe administrar a velocidade e a intensidade com que as imagens circulam nesse universo.

A flexibilidade desse segundo leitor, segundo a autora, abriu caminho ao tipo de leitor mais recente – o imersivo; isto é, ele prepara a sensibilidade perceptiva para o surgimento do leitor que navega “entre nós e conexões alineares pelas arquiteturas líquidas dos espaços virtuais” (Santaella, 2004, p. 11). No terceiro tipo – o leitor imersivo, virtual –, Santaella apresenta o leitor que emerge nos espaços incorpóreos e fluidos da virtualidade, em um roteiro multilinear entre “nós”, multissequencial, hipersubjetivo, como um grande caleidoscópio tridimensional, em que as transformações sensoriais, perceptivas e conjuntivas inauguram novas sensibilidades corporais, físicas e mentais. O leitor virtual ou imersivo, segundo Santaella, surge da multiplicidade de imagens sígnicas e de ambientes virtuais de comunicação imediata. Esse novo leitor nasce inserido nos grandes centros urbanos e é acostumado desde cedo com a linguagem efêmera e provido de uma sensibilidade perceptiva-cognitiva quase instantânea. Ele, segundo Santaella e de acordo com essas características, é inserido no ambiente hipermídia, coloca em ação mecanismos ou mesmo habilidades de leitura muito distintas das empregadas pelo leitor do texto impresso. Por outro lado, elas se distinguem, ainda, daquelas que são empregadas pelo leitor de imagens ou espectador de cinema ou televisão. Essas habilidades de leitura multimídia acentuam-se mais ainda, quando a hipermídia migra do suporte CR-ROM para circular nas potencialidades infinitas do ciberespaço.

Esse tipo de leitor, segundo Santaella (2004, p. 33):

é obrigatoriamente mais livre, na medida em que, sem a liberdade de escolha entre nexos e sem a iniciativa de busca de direções e rotas, a leitura imersiva não se realiza. [...] [Trata-se de] um leitor em estado de prontidão, conectando-se entre nós e nexos, num roteiro multilinear, multissequencial e labiríntico que ele próprio ajudou a construir ao interagir com os nós entre palavras, imagens documentação, músicas, vídeo etc.

Abertura do hipertexto: A interminável Chapeuzinho, de Angela Lago
Abertura do hipertexto: A interminável Chapeuzinho, de Angela Lago
Fonte: http://www.angela-lago.com.br.

Com a proliferação crescente das redes de telecomunicação, especialmente da internet, surge outro conceito de leitor, que possui novas formas de percepção e cognição nos atuais suportes e estruturas híbridas e alineares do texto escrito.

Site de de Angela Lago
Site de Angela Lago

Leituras e linguagens, enfim

Apesar dessas classificações, segundo a pesquisadora, não é possível ver diferenças entre os três tipos de leitores citados, porém há habilidades que os diferem. Seu livro – Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo –, nesse caso, consistiu exatamente em conhecer ou mapear o leitor imersivo, suas transformações sensórias, perceptivas, cognitivas e, consequentemente, sua maneira de sentir as transformações. Portanto, mapeando esses tipos de leitores e culminando no leitor imersivo e atrelados à literatura infantil, percebemos que tanto cada um deles quanto o trabalho significativo com a linguagem apontam mudanças cognitivas emergentes como instrumentos importantes na formação desse leitor crítico e múltiplo, proficiente na leitura oral, contemplativa, movente e imersiva.

O hibridismo de gêneros é a pedra de toque dessa nova estética da leitura pós-moderna, que nasce como produto do amadurecimento da leitura como cultura, como antropofagia das artes. A originalidade é buscada pelo conhecimento, experiência e assimilação de todas as variedades do pensamento moderno, incorporando à leitura, seja ela literária ou não, procedimentos e técnicas de outras linguagens artísticas. Por meio dessa multiplicidade de aspectos e modos de encarar a leitura como intersecções e entrecruzamentos é possível traçar algum roteiro para entender a cultura e os redimensionamentos da leitura. O hibridismo dessas diversas formas de pensar a leitura dá a profundidade crítica e lúdica, além de atrair todo tipo de leitor para a subversiva lição de ler o mundo com olhos mais críticos.

Referências

COSCARELLI, Carla Viana (Org.). Novas tecnologias, novos textos, novas formas de pensar. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

LAGO, Angela. O interminável Chapeuzinho. Disponível em: www.angela-lago.com.br. Acesso em 08/01/2013.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Das tábuas da lei à tela do computador. A leitura em seus discursos. São Paulo: Ática, 2009.

MARTINS, Aracy Alves (Org.). Livros & Telas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.

LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.

MELLO, Roger. Zubair e os labirintos. São Paulo: Cia. das Letrinhas, 2007.

SANTAELLA, Lúcia. Navegar no ciberespaço. O perfil do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004.

SANTAELLA, Lúcia. Leitura de imagens. São Paulo: Melhoramentos, 2012.

YUNES, Eliana (Org.). Pensar a leitura: complexidade. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola. 2002.

Publicado em 19 de fevereiro de 2013

Publicado em 19 de fevereiro de 2013

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