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A presença do negro no pensamento social brasileiro

Fabíola Amaral Tomé de Souza

Especialista em História das Culturas Afro-Brasileiras e em Sociologia; professora da rede estadual do Rio de Janeiro; bolsista da Fundação Cecierj

Este artigo baseia-se em uma discussão bibliográfica sobre como a presença do negro na sociedade brasileira foi avaliada no pensamento social brasileiro. Tal literatura, de caráter histórico e socioantropológico, constitui objeto cujo foco principal é analisar linhas específicas do pensamento social brasileiro a respeito do negro na América portuguesa, não objetivando, entretanto, realizar uma história das ideias. O conhecimento da teoria social do início do século XX interessará apenas como um meio para captar o seu reflexo na realidade social e na nossa maneira de pensar e agir politicamente no Brasil de hoje, analisando de que forma a presença do negro na sociedade brasileira foi avaliada no pensamento social brasileiro e como a questão da passividade/ resistência foi abordada pelos autores selecionados.

Para tanto, vislumbra-se que, desde o séc. XIX, um heterogêneo conjunto de pesquisadores, equipados com material científico analítico, vem revisitando e vasculhando a história do negro na América portuguesa e produzindo uma quantidade respeitável de análises, pesquisas sob diversas perspectivas historiográficas e interpretações teóricas que têm contribuído para o conhecimento das relações sociais e raciais no Brasil, a vida do negro, sua mobilidade e sua resistência aos padrões culturais europeus.

Sobre o tema foi levantada uma gama de autores e livros relevantes. Tais obras foram selecionadas por apresentarem grande influência no conhecimento das ciências sociais no país, contribuindo fortemente para a discussão sobre o papel do negro na formação da América portuguesa, refletindo-se nos dias atuais.

Os autores selecionados são bastante representativos: Nina Rodrigues, de Os africanos no Brasil (De 1906, publicado em 1933); Arthur Ramos, de O negro brasileiro (1934); Gilberto Freyre, de Casa-grande e senzala (1933) e Darcy Ribeiro, de O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (1995), que elaboram nesses, e em outros estudos, esclarecimentos da história, descrição das épocas, explicações das raízes do negro na sociedade brasileira.

A presença do negro na sociedade brasileira foi avaliada no pensamento social brasileiro de diferentes formas no curso da história, assinalando, durante muito tempo, as análises etnocêntricas da Ciência. Sob o símbolo dessa categoria, fortemente incutida de conotações depreciativas, mas que tratam de fatos até então nunca abordados, elaboraram-se no Brasil alguns trabalhos considerados representativos dos estudos socioantropológicos, entre os quais se incluem principalmente os de Nina Rodrigues e de Arthur Ramos.

Não faltaram, porém, no Brasil, espíritos como o de Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, que, embora não inteiramente livres da obscuridade do conceito de raça, proclamaram a sua desconfiança com respeito ao mesmo e fizeram os primeiros esforços em prol da criação de um estudo socioantropológico nacional, assentados em critérios únicos de avaliação de nossas relações étnicas. Nesse sentido, é muito importante a contribuição destes que, antes do atual movimento antropológico, formularam indicações fundamentais para a compreensão do problema racial no Brasil.

Analisar essa literatura, tendo em vista compreender novos olhares e até mesmo evidenciar erros e prováveis acertos a respeito do negro brasileiro, servirá como meio de retratar o que há de positivo e problemático na sua condição na sociedade brasileira, onde há de se analisar o pensamento social brasileiro a respeito do negro na América portuguesa, discutir a abordagem dada ao tema pelos autores selecionados e identificar, nas obras destes, elementos de concordância e discordância.

Panorama dos estudos sobre o negro: a mestiçagem... um atraso

No Brasil, o pioneiro nos estudos sobre os negros foi o médico maranhense, que desenvolveu sua carreira na Bahia, Raimundo Nina Rodrigues. Para compreender sua obra, é necessário visualizar o período e o contexto intelectual europeu em que o autor está inserido.

No século XIX o olhar imperial fez uma releitura do mundo, construída com autoimagens e estereótipos ressaltando o saber ocidental. A partir dos estudos de Linneu, com o Sistema Nature de 1778, vários outros sistemas classificatórios ligados às teorias deterministas justificavam o discurso político-econômico da época, legitimando diversas práticas, como o tráfico negreiro, os genocídios na África e a violência colonial na América.

Com a exaltação da raça ariana como modelo de civilização, os cientistas são levados a buscar respostas para uma nova questão que emerge: o mestiçamento empobrece a raça branca? Evidentemente alguns autores, entre eles Nina Rodrigues, elencam soluções para esse fim. No Brasil do século XIX, o quadro racial possui um intricado e complexo sistema de relações entre as matrizes étnicas principais: os portugueses representantes da raça ariana, os índios e os negros. O determinismo biológico em terras brasileiras estará interligado ao determinismo ecológico proveniente das áreas abaixo da linha do Equador onde o clima é tórrido e inóspito às raças superiores.

Diante dessas realidades, emergem políticas de clareamento e teorias eugênicas para solução do problema brasileiro. Imbuído nessa gama de conhecimentos, Raimundo Nina Rodrigues, médico legista e professor da Universidade da Bahia, escreveu diversos artigos e livros sobre suas concepções. Dentre eles está Os africanos no Brasil, que apresenta um ensaio sistematizado sobre a raça negra e sua influência, tratando-a como o “problema do negro”. Mas essa obra não pôde ser finalizada pelo autor, que faleceu em Paris. Graças aos membros da chamada “escola Nina Rodrigues”, principalmente Oscar Freire e Homero Pires, que organizaram os cadernos e documentações, a obra pôde ser finalmente lançada em 1933.

Sua obra está pautada no paradigma da determinação biológica e cultural da superioridade ariana, evidenciando uma mentalidade racista, nacionalista e cientificista. Todavia, é preciso ressaltar sua contribuição, já que Nina Rodrigues foi o primeiro a escrever sobre a trajetória dos africanos em solo brasileiro, apresentando as características e a história das nações africanas que aqui desembarcaram para compor a mão de obra no início da colônia e, posteriormente, do Império brasileiro. Seu livro reúne informações e dados sobre os africanos e suas comunidades, coligindo e coletando registros e evidências escritas e orais, transformando sua obra em uma importante fonte de pesquisas para todos os estudiosos que almejam compreender a influência do negro na sociedade brasileira e as diferenças culturais entre as nações africanas.

Nina Rodrigues foi impregnado pela produção científica da época, que, segundo Lilia Moritz Schwarcz, em seu livro O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil: 1870-1930 (1993), retrata um período marcado pela entrada simultânea de variadas concepções europeias no Brasil, enfim, uma série de correntes teóricas que iriam influenciar profundamente os rumos do pensamento social brasileiro durante a Primeira República, “Esse debate, que amadurece em meados do século passado, remete, no entanto, a questões anteriores que exigem um breve retorno aos modelos de reflexão do Século das Luzes, sem o que esta caracterização ficaria incompleta” (SCHWARCZ, 1993, p. 43).

Rodrigues apresenta suas apreensões e previsões sobre o futuro deste país, alertando sobre o mestiçamento, pautado sempre em estudos biológicos. Na introdução do livro o autor narra suas previsões:

Ao brasileiro mais descuidado e imprevidente não pode deixar de impressionar a possibilidade de oposição futura, que já se deixa entrever, em ter uma nação branca, forte e poderosa, provavelmente de origem teutônica, que se está constituindo nos estados do Sul, donde o clima e a civilização eliminarão a raça negra ou a submeterão, de um lado; e, de outro lado, os estados do Norte, mestiços, vegetando na turbulência estéril de uma inteligência viva e pronta, mas associada à mais decidida inércia e indolência, ao desânimo e por vezes à subserviência, e, assim, ameaçados de se converterem em pasto submisso de todas as explorações de régulos e pequenos ditadores (RODRIGUES, 1976, p. 8-9).

Embasando esse discurso, Schwarcz afirma que, na segunda metade do século XVIII, os estudos acerca da influência do negro começa a ganhar rumos negativos, quando se passa a pensar os povos primitivos da América como física e culturalmente inferiores, tomando-se como comparação a civilização europeia. Assim apresenta-se a América portuguesa sob o símbolo da carência, em que “uma concepção ética e cultural estritamente etnocêntrica delineava-se” (SCHWARCZ, 1993, p. 46).

Rodrigues ainda reafirma seu intuito nacionalista e sua visão etnocêntrica: “É esta, para um brasileiro patriota, a evocação dolorosa do contraste maravilhoso entre a exuberante civilização canadense e norte-americana e o barbarismo guerrilheiro da América Central”. Em diversas passagens de sua obra, o autor revela sua visão não só etnocêntrica como eurocêntrica:

Os extraordinários progressos da civilização europeia entregaram aos brancos o domínio do mundo, as suas maravilhosas aplicações industriais suprimiram a distância e o tempo. Impossível conceder, pois, aos negros como em geral aos povos fracos e retardatários, lazeres e delongas para uma aquisição muito lenta e remota da sua emancipação social (RODRIGUES, 1976, p. 264).

Na mesma página, Rodrigues justifica sua posição apelando para seu espírito nacionalista:

O que importa ao Brasil determinar é o quanto de inferioridade lhe advém da dificuldade de civilizar-se por parte da população negra que possui e se de todo fica essa inferioridade compensada pelo mestiçamento, processo natural por que os negros se estão integrando no povo brasileiro, para a grande massa da sua população de cor.

Para o autor, como para outros estudiosos da América Latina, era importante compreender o quadro racial do país e a influência da mestiçagem para o futuro das nações americanas em consonância com as civilizações ditas adiantadas. Era necessário traçar estratégias para que os países pudessem alcançar essas civilizações mesmo carregando as chagas da mestiçagem.

Então o trabalho para mapear a trajetória do negro no Brasil possuía uma razão mais profunda. Através desse estudo, o autor queria fundamentar sua crença na diferença entre negros sudaneses e bantos, conferindo por exemplo, um capítulo aos haussás (negros islamizados), que pertenciam ao tronco dos sudaneses, que, segundo o autor, seriam mais evoluídos que os outros africanos. Sobre as diferenças entre os negros, Rodrigues cita: “Aqui introduziu o tráfico poucos negros dos mais adiantados e mais do que isso mestiços camitas convertidos ao islamismo e provenientes de Estados africanos bárbaros, sim, porém mais adiantados” (RODRIGUES, 1976, p. 268-269).

Rodrigues acreditava que diferenciar a capacidade civilizatória de cada grupo negro enviado ao Brasil auxiliaria no entendimento das origens e da influência da miscigenação: “Em torno desse fulcro – mestiçamento – gravita o desenvolvimento de nossa capacidade cultural, e no sangue negro havemos de buscar, como em fonte matriz, com algumas das nossas virtudes, muitos dos nossos defeitos” (RODRIGUES, 1976, p. 13).

Mas geralmente as contribuições africanas eram vistas de forma negativa ou primitiva seja em qualquer âmbito cultural; segundo o autor, só o mestiçamento poderia diluir as raças inferiores até que suas impressões e marcas se tornassem ínfimas.

Outra marca presente no livro Os Africanos no Brasil é a contribuição de estudiosos estrangeiros. São citados autores como Spix, Martius, Coronel Ellis, Morselli e Mandarin, entre outros. Suas obras e opiniões são apresentadas, discutidas ou então servem para enfatizar, justificar e legitimar a visão de Nina Rodrigues. Guerreiro Ramos, em seu artigo O problema do negro na sociologia brasileira, apresenta o seguinte comentário sobre essa influência: “A ciência, para Nina Rodrigues, foi uma questão de autoridade. Como escolástico, não discutia os fatos com fatos, mas com trechos de livros, estrangeiros sobretudo. O negro e o mestiço são inferiores porque... assim está escrito nos livros europeus” (RAMOS, G., 1981, p.12).

A condição de médico legista também influenciou suas conclusões, pois os estudos realizados a partir da Antropometria e Frenologia, os quais eram utilizados para determinar, por meio de estudos sobre o corpo humano, o caráter e características de personalidade, inclusive graus de criminalidade, estão presentes em várias passagens de sua obra. Schwarcz afirma que Nina Rodrigues sofreu forte influência na análise sobre a civilização brasileira, passando a analisar o ato da criminalidade por meio dos caracteres hereditários que iriam incidir na tendência ao crime por parte do indivíduo, após estudos com base na Antropologia Criminal,de Cesare Lombroso, professor universitário e criminologista italiano que se tornou mundialmente famoso por seus estudos e teorias no campo da caracterologia – a relação entre características físicas e mentais.

Os estudos antropológicos reforçaram as correntes biologizantes, segundo Lilia Moritz Schwarcz, estabelecendo etapas do desenvolvimento humano para categorizar as diferentes culturas. Sob uma visão estritamente etnocêntrica, a tecnologia e o progresso, usados como designadores de desenvolvimento em maior e menor grau, desconsideravam o contexto social em que as diferentes culturas estavam imersas. Como cita a autora:

Duas grandes vertentes aglutinavam os diferentes autores que na época enfrentaram o desafio de pensar a origem do homem. De um lado, a visão monogenista, dominante até meados do século XIX, congregou a maior parte dos pensadores que, conforme as escrituras bíblicas, acreditavam que a humanidade era una. (...)

Esse mesmo contexto propicia o surgimento de uma interpretação divergente. A partir de meados do século XIX, a hipótese poligenista transforma-se em uma alternativa plausível, em vista da crescente sofisticação das ciências biológicas e, sobretudo, a contestação ao dogma monogenista da Igreja (SCHWARCZ, 1993, p. 48).

Em suma, Nina Rodrigues acreditava fielmente que o atraso africano devia-se a causas biológicas, duvidando se realmente seria possível que os negros alcançassem o patamar evolutivo dos brancos, e o mestiçamento, visto de forma negativa no continente europeu, seria uma das saídas para o Brasil, em que a miscigenação foi determinante na formação social do país.

Os pensamentos de Nina Rodrigues não vão ser esquecidos após seu desenlace. Outros autores vão utilizar suas obras como referencial e serão seguidores de seus postulados sobre o negro brasileiro.

Seguindo a corrente de Nina Rodrigues, há o Alagoano da cidade de Pilar Arthur Ramos, que se dedicou à pesquisa antropológica a partir da sua formação médica, com especialização em Psiquiatria, o que se reflete em sua obra, dividida entre temática psicológica e antropológica.

Arthur Ramos auxiliou na publicação de obras de Nina Rodrigues após a morte prematura deste, e, unido a um grupo de pesquisadores, considerava-se membro de uma linha de pensamento fundada por Nina Rodrigues conhecida como “Escola Baiana” ou “Escola Nina Rodrigues”. Os membros dessa escola queriam resolver o mesmo problema do “mestre baiano”: identificar a influência do negro no Brasil. Esse fato demonstra que esses autores continuaram a ver de forma negativa, no âmbito etnográfico, a permanência do negro na civilização brasileira.

Na Bahia, ele realizou, como Nina Rodrigues, pesquisas de campo entre os candomblés; no Rio de Janeiro, foi convidado por Anísio Teixeira para instalar um serviço de higiene mental nas escolas da então capital do país, penetrando nos morros do Distrito Federal, interagindo com os moradores e percebendo analogias e divergências ressaltadas na obra O Negro Brasileiro, sob a ótica religiosa.

Relacionando as vidas de Nina Rodrigues e Arthur Ramos encontram-se alguns fatos em comum: os dois exerciam a medicina, alcançaram destaque no âmbito nacional e até internacional e morreram prematuramente. Porém a semelhança mais importante é que os dois, por influência de suas profissões, buscaram compreender o negro no campo social de acordo com suas especializações na área médica: Rodrigues, como legista, utilizava a antropometria e a craniometria; Ramos, como legista e psiquiatra, utilizava os conceitos da Psicanálise.

Assim, cada um observava o negro no campo social como um problema de saúde, demonstrando que as áreas das ciências no Brasil durante o início do século XX estavam muito interligadas. Arthur Ramos considerava Nina Rodrigues um mestre e um cientista exemplar, por isso este autor está presente na obra O negro brasileiro, em que Ramos tece elogios e reafirma suas ideias em postulados do “mestre baiano”:

Mas o estudioso dos nossos dias, seguindo a trilha aberta pelo inimitável mestre baiano, defrontar-se-á com duas tarefas de importância: a) continuar a colher materiais diretos de observação nos vários estados do Brasil, cotejando-os com os primitivos; b) reinterpretar esses materiais, com os métodos científicos de seu tempo (RAMOS, 2003, p. 29).

Arthur Ramos reconhece as limitações do trabalho de Nina Rodrigues quanto ao estudo restrito à Bahia e à presença das teorias etnocêntricas em sua obra, mas trata-as de forma suave como equívocos passíveis a todo “grande cientista”.

Aliás, o fato de Ramos ter ampliado os estudos sobre religiões afro dos terreiros de candomblé da Bahia para as macumbas no Rio de Janeiro foi um de seus grandes méritos. O autor descreve os rituais com detalhes, possibilitando o entendimento da religiosidade africana.

Outro mérito de sua obra é que consegue desvencilhar-se da visão racial do século XIX e apresenta críticas a essa visão: “não endosso absolutamente, como várias vezes tenho repetido, os postulados de inferioridade do negro e da sua capacidade de civilização” (RAMOS, 2003, p. 31).

Mas agora atribui o atraso do negro a uma visão psicológica, justificada por processos mentais pueris:

Essas representações coletivas existem em qualquer tipo social atrasado em cultura. É uma consequência do pensamento mágico e pré-lógico, independente da questão antropológico-racial, porque podem surgir em outras condições e em qualquer grupo étnico. (...) Esses conceitos de “primitivo”, de “arcaico” são puramente psicológicos e nada têm que ver com a questão de inferioridade racial (RAMOS, 2003, p. 32).

O autor retira o problema do negro dos campos racial e médico-biológico, levando-o para o campo cultural, afirmando que a solução só seria alcançada pelo ato educacional:

,Assim, para a obra da educação e da cultura, é preciso conhecer essas modalidades do pensamento “primitivo” para corrigi-lo, elevando-o a etapas mais adiantadas, o que só será conseguido por uma revolução educacional que aja em profundidade, uma revolução “vertical” e “intersticial” que desça aos degraus remotos do inconsciente coletivo e solte as amarras pré-lógicas a que se acha acorrentado (RAMOS, 2003, p. 32).

Essa visão sobre o afro-brasileiro foi alcançada porque sua obra está alicerçada em duas linhas: a psicanálise de Freud e os estudos de Lévy-Bruhl sobre a mentalidade pré-lógica e a lei de participação. Para defender sua posição sobre o negro, Ramos inicialmente critica a teoria animista de Tylor, contemporâneo a Nina, que atribuía ao animismo a espinha dorsal das religiões africanas. Nessa visão, almas e espíritos dão vida a todas as coisas guiadas pelas mentes dos selvagens.

Os estudos de Lévy-Bruhl vêm se contrapor totalmente à teoria de Tylor, afirmando que o selvagem segue uma lógica própria regida por leis psicológicas que lhes são próprias. As formas de percepção do mundo na mente primitiva são marcadas pelos elementos emocionais e motores, diferentemente dos seres civilizados, que são marcados por fenômeno intelectual.

Sobre o conceito de lei de participação e do pensamento pré-lógico de Lévy-Bruhl, Ramos explica:

Segundo a lei de participação, na mentalidade primitiva os objetos, os seres, os fenômenos podem emitir forças, qualidades, ações míticas, sem por isso deixarem de ser o que são. A essa mentalidade, considerada do ponto de vista das ligações das representações, chama Lévy-Bruhl pré-lógica, que não deve ser subentendida como uma anterioridade no tempo, mas pelo fato de não se adstringir ela ao nosso pensamento, de se abster da contradição (RAMOS, 2003, p. 235).

E essa mentalidade pré-lógica persiste por muito tempo, permitindo que coexistam mesmo em sociedades adiantada, através do folclore, elementos pré-lógicos e elementos lógicos.

Para Arthur Ramos, a psicanálise de Freud complementa os estudos de Lévy-Bruhl: “Freud foi quem tentou, porém, o primeiro trabalho de conjunto sobre a mentalidade primitiva, interpretando, à luz da psicanálise, certas manifestações da vida e hábitos mentais do primitivo: o totemismo, o tabu, o animismo e a magia” (RAMOS, 2003, p. 237).

Também se utiliza dos conceitos como complexo de Édipo e o simbolismo fálico para explicar as relações mitológicas presentes na religiosidade africana entre os deuses e os seres humanos apresentadas durante os rituais. O autor explica, à luz da psicanálise de Freud, os ciclos de deuses africanos.

Nessas linhas e na herança de Nina Rodrigues, o pensamento de Arthur Ramos foi edificado e justificado. Como já foi dito, o autor seguia a “escola baiana” e procurava respostas para o papel do negro na sociedade brasileira.

Realmente, sua importância é reconhecida, mas pouco progresso fez para a valorização do papel do afro-brasileiro. Reafirmou uma visão de superioridade ariana, ainda que disfarçada nas suas explicações psicológicas, reforçando a concepção já existente da influência negra vista de forma nociva ou pejorativa.

Panorama dos estudos sobre o negro: a mestiçagem... um avanço

Após 1930, a presença do negro, ao contrário de ser vista como um atraso à sociedade brasileira, ganhou novo sentido, passando a ser analisada como avanço, além da tentativa de reparar erros cometidos por alguns autores do século XIX.

Nesse período, a sociedade brasileira, a classe artística e os intelectuais se valeram da ideologia de exaltação à brasilidade, positivando a mistura entre os povos que compuseram a formação desta “nação”, relacionando também as misturas culturais, artísticas e religiosas, eclodindo a partir dessa ideologia num discurso positivo sobre a presença do negro na sociedade, discurso esse que procura valorizá-lo como ser social, contrapondo ao eurocentrismo existente, substituindo as teorias racistas e etnocêntricas que analisavam o negro como atrasado e culpado pelo atraso nacional.

É interessante ressaltar, dessas interpretações sobre o negro, aquela que é um marco para o estudo do negro brasileiro e que serve de referência para diversos estudos sobre esse assunto: Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Vale destacar que “Casa-Grande” é usado para traduzir as relações entre proprietários e escravos no período colonial, e não como residência ou ambiente físico das grandes fazendas. O termo foi criado por Gilberto Freyre (1933). A designação para os espaços físicos era “moradas”, “casa de morada” ou “casas” (CASTRO, 2005, p. 56-60).

Freyre apresenta uma interpretação da formação do país, do modo como ocorreu a colonização e de como se concebeu a sociedade, e principalmente do negro, que surge como transformador dela, garantindo-lhe particularidades. O autor participou de um mundo acadêmico repleto de novas ideias que o influenciaram fortemente, contribuindo em sua linha de pensamento que assimila o negro como foco de suas análises e passa a valorizá-lo em sua obra. Freyre possuiu diversos professores que lhe deixaram marcas, inclusive o antropólogo Franz Boas, que, segundo Freyre “é a figura de mestre de que me ficou até hoje maior impressão” (FREYRE, 1992, pref. à 1ª ed., XLVII) e com quem aprendeu a diferença entre raça e cultura, como cita: “considerar fundamental diferença entre raça e cultura; a discriminar entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influências sociais, de herança cultural e de meio” (FREYRE,1992, pref. à 1ª ed. XLVII e XLVIII).

Considerando esse ponto, Casa-Grande & Senzala acaba com algumas idealizações das gerações anteriores a Freyre, que exaltavam o estudo sobre raça e se utilizavam das teorias raciais, principalmente o ‘darwinismo social’ – que Lilia Moritz Schwarcz explica em seu livro:

Denominada ‘darwinismo social’ ou ‘teoria das raças’, essa nova perspectiva via de forma pessimista a miscigenação, já que acreditava que “não se transmitiriam caracteres adquiridos”, nem mesmo por meio de um processo de evolução social. Ou seja, as raças constituiriam fenômenos finais, resultados imutáveis, sendo todo cruzamento, por princípio, entendido como erro. As decorrências lógicas desse tipo de postulado eram duas: enaltecer a existência de “tipos puros” – e portanto não sujeitos a processos de miscigenação – e compreender a mestiçagem como sinônimo de degeneração não só racial como social (SCHWARCZ, 1993, p. 58).

O ‘darwinismo social’, segundo os cientistas da época, legitimava o atraso brasileiro, principalmente em relação aos países em ascensão industrial e tecnológica. Freyre transforma-se em um dos mais respeitados intelectuais do Brasil, analisa a discussão sobre raça sob um novo aspecto, considera-a um produto que surge da comunhão entre meio e cultura, sem aderir às formas de racismo dominantes no meio intelectual brasileiro.

Discute intensivamente a mestiçagem, fazendo um estudo pormenorizado dos povos constituintes da sociedade brasileira e considerando diversos fatores que contribuíram com ela. O autor interpreta a junção das raças como algo a ser valorizado, partindo de um estudo que reconhece o colonizador como partidário da mistura das raças, visto que o português era alguém capaz de se adaptar e interagir com outras situações, ambientes e pessoas, era um ser híbrido, resultado da sua própria história anterior à vinda para a América, atentando à posição geográfica de Portugal, à grande fronteira da Europa, porta de entrada de diversos povos, inclusive os mouros que ali estiveram por muito tempo, ocasionando inúmeras misturas étnicas, culturais e raciais. Freyre descreve esse movimento ocorrido desde a Pré-história até a ocupação moura e que transformara a Península Ibérica em um berço de miscigenação. Como cita o próprio Freyre:

A singular predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado étnico, ou antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África. Nem intransigentemente de uma nem de outra, mas das duas. A influência africana fervendo sob a europeia e dando um acre requeime à vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro correndo por uma grande população brancarana, quando não predominando em regiões ainda hoje de gente escura; o da África, um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica, à disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando mas sem governar; governando antes a África (FREYRE, 1992, p. 5).

O autor, a partir dessa análise, constrói um raciocínio que vislumbra um convívio harmônico entre portugueses e índios, portugueses e africanos e entre africanos e indígenas, soando de certa forma artificial, uma harmonia aparente que se converte posteriormente no mito da democracia racial, ainda que haja conflitos e desigualdades, que tenta camuflar a subjugação do negro.

Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de um aproveitamento de valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado; no máximo de contemporização da cultura adventícia com a nativa, da do conquistador com a do conquistado (FREYRE, 1992, p. 91).

Freyre desconsidera o racismo, fugindo ao legado deixado por Nina Rodrigues. Acredita ser ele irrelevante ao português dominador, que estaria ocupando sua mente mais com questões de ordem econômica, política e religiosa do que com o tipo físico ou, como ele mesmo cita, preocupado com “cor de pele”. O autor ainda reduz as raças existentes sobrepondo no lugar uma população mestiça e una, sem atentar para as diferenças de cada um. Retrata o negro como um ser cordial e maleável, descaracterizando-o e não enfatizando a sua grande atividade intelectual e cultural. “O negro, o tipo do extrovertido. O tipo de homem fácil, plástico, adaptável” (FREYRE, 1992, p. 287).

Diferenciando-se de outros autores, Freyre afirmava que o que até então era tido como inferioridade, perversão do negro em relação ao branco, era consequência do meio em que estava inserido, particularmente a escravidão, que lhe impunha características indignas, contrapondo-se, novamente, à ideia de que tais adjetivos fossem consequência da raça como componente físico. O autor atribui aos negros vícios inerentes à sua condição de escravo, como cita: “Diz-se geralmente que a negra corrompeu a vida sexual da sociedade brasileira, iniciando precocemente no amor físico filhos-família. Mas essa corrupção não foi pela negra que se realizou, mas pela escrava” (FREYRE, 1992, p. 316).

É válido ressaltar que se atribui à escravidão brasileira particular diferença à escravidão dos povos antigos, por exemplo, em que havia também a violência física, contudo não havia pretensão exclusiva de obtenção de lucro e muito menos era permitida nem aceitável a inter-relação entre as culturas. Fundamentando tal questão, Roger Bastide elucida que “a escravidão moderna não é como a escravidão antiga, ela não se fundamenta, como a última, na integração do homem em uma família, mas na exploração econômica de uma raça por outra e no lucro” (BASTIDE, 1971, p. 93).

A violência sofrida pelo negro é um tema recorrente na obra de Freyre, que demonstra seu grau e sua inerência ao sistema escravista, que muitas das vezes chegava a ultrapassar a senzala e chegava à casa-morada, onde o negro era o alvo principal da barbárie cometida pelos senhores ou senhoras. Como cita o autor: “Quanto à maior crueldade das senhoras que dos senhores no tratamento dos escravos é fato geralmente observado nas sociedades escravocratas” (FREYRE, 1992, p. 337), tanto por questões trabalhistas quanto nas questões sexuais, que o autor evidencia com maestria, violência essa última que provavelmente era a mais sofrida por escravos e escravas. “Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime” (FREYRE, 1992, p. 316).

Nos relatos de Freyre, pode-se observar a importância que o negro representou nas questões econômicas no Brasil, não só como simples mão de obra, mas como alguém que detinha conhecimento técnico e especializado em assuntos agrários:

Por todos esses traços de cultura material e moral revelaram-se os escravos negros, dos estoques mais adiantados, em condições de concorrer melhor que os índios à formação econômica e social do Brasil. Às vezes melhor que os portugueses (FREYRE, 1992, p. 286).

Além da força e do preparo físico, resultante da semelhança climática e geográfica entre a América e a África, gerando ao proprietário produção constante e rentabilidade assegurada.

Pode-se juntar, a essa superioridade técnica e de cultura dos negros, sua predisposição como que biológica e psíquica para a vida nos trópicos. Sua maior fertilidade nas regiões quentes. Sua energia sempre fresca e nova quando em contato com a floresta tropical (FREYRE, 1992, p. 286).

Outros ofícios e técnicas também foram aprendidos com os negros africanos, como o trabalho de metais e a criação de gado, além da culinária africana que trouxe características particulares e que foram inculcadas à culinária brasileira.

O autor também valoriza o escravo doméstico, afirmando ter ele sido uma das figuras centrais da casa-grande, possuindo as amas de leite um papel fundamental na formação, na criação de seus “filhos brancos”, como cita:

À figura boa da ama negra que, nos tempos patriarcais, criava o menino lhe dando de mamar, que lhe embalava a rede ou o berço, que lhe ensinava as primeiras palavras de português errado, o primeiro “padre-nosso”, a primeira “ave-maria”, o primeiro “votê!” ou “oxente”, que lhe dava na boca o primeiro pirão com carne e “molho ferrugem”, ela própria amolengando a comida – outros vultos de negros se sucediam na vida do brasileiro de outrora (FREYRE, 1992, p. 335 e 336).

Essa especificidade é característica do Brasil, onde senhoras-meninas tinham seus filhos sem condição e maturidade física e psicológica, muito menos experiência necessária à criação deles, confiando a essas negras toda uma criação, ocasionando uma transformação, positiva ou não, nos traços de personalidades dessas crianças, futuros senhores ou sinhás, elevando ainda mais a mistura cultural entre negros e brancos. Em relação a isso, Freyre diz:

Mas aceita, de modo geral, como deletéria a influência da escravidão doméstica sobre a moral e o caráter do brasileiro da casa-grande, devemos atender às circunstâncias especialíssimas que entre nós modificaram ou atenuaram os males do sistema. Desde logo salientamos a doçura nas relações de senhores com escravos domésticos, talvez maior no Brasil do que em qualquer outra parte da América (FREYRE, 1992, p. 352).

A essa questão doméstica, o autor reporta para elevação social de negros da senzala à casa-grande com o intuito manifesto de obter regalias, que nunca seriam adquiridas na senzala, transformando-se em pessoas da casa, as quais comiam, bebiam e vestiam do bom e do melhor, evidenciando a criação de laços afetivos entre esses escravos. Elucida também que tal promoção não era feita a esmo, e sim com plena observação do tipo físico, fatores de higiene e cristianização que os envolvia.

A casa-grande fazia subir da senzala para o serviço mais íntimo e delicado dos senhores uma série de indivíduos – amas de criar, mucamas, irmãos de criação dos meninos brancos. Indivíduos cujo lugar na família ficava sendo não o de escravos, mas o de pessoas de casa (FREYRE, 1992, p. 352).

A esse respeito, observam-se, na obra, negros que se branqueavam, ocorrendo uma aculturação indissociável desse convívio. O negro assimilava a cultura branca, aprendia a língua portuguesa, transmitida mais facilmente pela cristianização, sem passar despercebido pelo senhor de escravo que se beneficiava com tal fato.

Em Casa-Grande & Senzala, Freyre apresenta as misturas raciais e culturais ocorridas no Brasil e modificadoras de toda a história do país, relatando claramente que aconteceu dominação e subordinação, ratificando a desigualdade racial e étnica, porém entende que a mestiçagem foi a mola propulsora de uma sociedade específica que se forjava. Sua obra contribui para a valorização do negro, que fora tão atacado por autores anteriores a ele, divulgando sua relevante importância para a formação da sociedade brasileira e que configurou o modelo familiar, cultural, social e religioso existentes na atualidade.

Seguindo a linha de Gilberto Freyre, analisando o negro e sua presença na construção da sociedade brasileira de forma valorizada, Darcy Ribeiro considera o preconceito e a discriminação contra a etnia afro-brasileira como característica histórica de nossa sociedade. Em O povo brasileiro; a formação e o sentido do Brasil (1995) – obra que conta com uma sofisticação cada vez maior de ferramentas teóricas utilizadas na análise do negro africano, como a utilização de diversas obras representativas nesse campo –, Ribeiro faz uma reconstituição histórica das condições sociais do encontro entre o branco colonizador e as diversas etnias de negros africanos trazidos para o Brasil.

O autor aborda a questão da etnia e defende a tese da miscigenação como fator supremo da diversidade social que caracteriza o Brasil, como detentor de características que diferenciam a sociedade brasileira de qualquer outra. Conforme o autor, nessa corrente que se dá sob a regência dos portugueses que eram

matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas e formações sociais defasadas, se enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo original, num modelo original de estruturação societária. Original porque (...) surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais dela oriundos (RIBEIRO, 1995, p. 19).

Também original, segundo o autor, porque se vê assim, diferente de todos os povos existentes, com uma estrutura social nova, que abre uma forma única de organização socioeconômica, forjada num tipo renovado de escravismo. Novo, inclusive, como cita na mesma página, “pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove todos os brasileiros”.

Ribeiro, na análise dessa nova sociedade, adentra a análise do negro, integrado ao Brasil, em sua condição de povo, acentuando a mestiçagem, fazendo considerações sobre a hibridez portuguesa, que, ao chegar ao Brasil para explorar o máximo das riquezas da terra e contando com a falta de mulheres nas expedições, o predispõe à primeira miscigenação, a de portugueses e indígenas, e que posteriormente essa miscigenação se intensificaria com a chegada dos africanos. “Compostos originalmente de mamelucos ou brasilíndios, gerados pela mestiçagem de europeus com índios, logo se desdobraram pela presença precoce e cada vez mais maciça de escravos africanos” (RIBEIRO, 1995, p. 96).

Essa mistura entre os povos que aqui chegaram era proveniente, entre outros fatores, da ruptura familiar, étnica e cultural ocorrida com a vinda para a América portuguesa, constatando que desde o início da colonização o meio geográfico foi determinante aos povos que chegaram ao país, provocando modificações nos costumes trazidos da terra de origem, tendo o negro vivenciado tal situação, além de ter que se adaptar a tal fato. Diz o autor: “encontrando já constituída aquela protocélula luso-tupi, tiveram de nela aprender a viver, plantando e cozinhando os alimentos da terra” (RIBEIRO, 1995, p. 114). O negro, como analisa Ribeiro, que chegou na condição de escravo, teve ainda a consequência da separação das famílias e a grande mistura de grupos étnicos, que acontecia desde o embarque nos navios negreiros, em que já se encontravam normalmente negros das mais variadas etnias juntos, em uma mesma viagem.

Encontrando-se dispersos na terra nova, ao lado de outros escravos, seus iguais na cor e na condição servil, mas diferentes na língua, na identificação tribal e frequentemente hostis pelos referidos conflitos de origem, os negros foram compelidos a incorporar-se passivamente no universo cultural da nova sociedade (RIBEIRO, 1995, p. 115).

Essa separação era ainda mais acentuada no momento da compra dos escravos, resultante mais da preocupação do senhor de escravo em manter e ou aumentar sua produtividade do que manter unidos membros familiares ou grupos étnicos, “e à política de evitar a concentração de escravos oriundos de uma mesma etnia, nas mesmas propriedades, e até nos mesmos navios negreiros” (RIBEIRO, 1995, p. 115). Portanto, dificilmente era possível que os afins permanecessem juntos em uma mesma fazenda; contudo há controvérsia, visto que a necessidade de uma grande quantidade de mão de obra escrava nas plantações tornava provável que houvesse um reagrupamento dos negros segundo seus grupos de origem. Como analisa Bastide:

A escravidão não somente separa como une o que separa. Ela uniu as civilizações africanas que vimos arrancadas de suas infraestruturas, mutiladas por essa separação, transformadas de civilizações comunitárias em ‘subculturas’ de classe (BASTIDE, 1971, p. 98).

Ribeiro apresenta o negro como um elemento adaptável à sua nova vida, apreendendo uma nova cultura, uma nova língua e uma nova religião, evidenciando que a política de mistura de grupos étnicos contribuiu para a substituição da cultura africana por uma nova cultura, que ainda se constituiria ao longo dos anos. Os negros, porém, já eram conscientes da sua condição. Como cita: “vão se aculturando nos modos brasileiros de ser e de fazer, tal como eles eram representados no universo cultural simplificado dos engenhos e das minas” (RIBEIRO, 1995, p. 116). O negro, nessa forma adaptável, transita de “boçal” a “ladino”; devido às compreensões realizadas da nova cultura, passa também a ser transmissor dessa nova cultura, difundindo a língua dominante, o trabalho na lavoura, regras e valores da nova terra aos africanos novos. Como retrata o autor, demonstrando a importância do negro na formação da sociedade brasileira, “Seria, por excelência, o agente de europeização que difundiria a língua do colonizador e que ensinaria aos escravos recém-chegados as técnicas de trabalho, as normas e valores próprios da subcultura a que se via incorporado” (RIBEIRO, 1995, p. 116).

Tais fatos revelam a facilidade encontrada nas misturas étnicas vivenciadas no Brasil, derivada da hibridez portuguesa e da plasticidade negra, a união e origem de um novo povo, uma classe mestiça se faz oportuna, transformando posteriormente o Brasil em uma sociedade única, como referido acima.

Admite-se que o argumento da miscigenação, como receita de uma política nacional visando à unificação étnica e cultural, traz uma ideologia do branqueamento (que via na miscigenação a possibilidade de eliminação dos negros após gerações), teoria utilizada no final do século XIX que foi analisada por Schwarcz como um ideal usado como alternativa de superar o “problema do negro” e favorecer as primeiras políticas de introdução dos imigrantes europeus. Analisa ainda que esse comportamento estava pautado nas fortes raízes do passado escravista, expressas muitas vezes no “coronelismo”, como fruto de uma economia monocultura necessitada de mão de obra em defesa dos lucros e até mesmo da defesa do próprio sistema escravista, além da ideologia de superioridade de uma etnia sobre a outra.

No sentido da miscigenação, Ribeiro afirma ser o mestiço, então, uma nova etnia com características singulares em relação ao negro, ao índio e ao branco. De acordo com o autor, essa nova etnia surge justamente da necessidade de se diferenciar:

O brasilíndio, como o afro-brasileiro, existiam numa terra de ninguém, etnicamente falando, e é a partir dessa carência essencial, para livrar-se da ninguendade de não índios, não europeus e não negros, que eles se veem forçados a criar a sua própria identidade étnica: a brasileira (RIBEIRO, 1995, p. 131).

Entendendo que o africano de origem dificilmente se misturava, permanecendo nas suas origens, dificultando a construção de qualquer laço cultural com essa gente nova que agora mantinha contato, Ribeiro enaltece que os aqui nascidos, puros ou não, apresentariam uma maleabilidade cultural maior, assim como a busca por uma identidade.

Sobrevivendo a todas as provações, no trânsito de negro boçal a negro ladino, ao aprender a língua nova, os novos ofícios e novos hábitos, aquele negro ser fazia profundamente, porém não reduzia jamais seu próprio ser à simples qualidade de negro na raça e de escravizado. Seu filho, crioulo, nascido na terra nova, racialmente puro ou mestiçado, este sim, sabendo-se não africano como os negros boçais que via chegando, nem branco nem índio, se sentia desafiado a sair da ninguendade, construindo sua identidade. Seria assim, segundo o autor, também ele, um protobrasileiro por carência (RIBEIRO, 1995, p. 131).

Pela obra de Darcy Ribeiro pode-se observar que de uma constante vontade de elaboração de sua própria imagem e consciência de um ser étnico-cultural novo é que surge, pouco a pouco, e ganha corpo o negro brasileiro.

O negro foi avaliado e analisado desde o período das grandes navegações, quando ocorreram as “descobertas” de vários povos, na tentativa de encontrar suas origens. Essas análises perduraram durante o século XIX até o surgimento do Iluminismo, que despertou a liberdade de pensamento e incentivou descobertas científicas no campo biológico e social.

A partir de influências iluministas e positivistas, os intelectuais do século XIX inauguraram os estudos sistematizados a respeito da origem dos povos africanos e ameríndios, assim como as teses sobre suas supostas inferioridades em relação ao branco, surgindo nesse momento as teorias raciais, que transitam entre as ciências biológicas e sociais.

Esses estudos foram analisados nas obras de Nina Rodrigues e Arthur Ramos, que comungam interpretações sobre o conceito de raça, principalmente a partir de estudos e teorias biológicas para legitimar a superioridade branca em relação aos negros. Tal análise seguiu uma linha classificatória, utilizando uma escala cultural, objetivando explicar o que eles consideravam um atraso brasileiro. Tais autores ainda analisaram a resistência negra, percorrendo desde a resistência física à cultural, interpretando-a como algo esperado de povos ainda em estágio de evolução. Analisaram também a passividade como o expoente máximo da mestiçagem, refletindo na teoria do branqueamento.

A Etnografia concentrou a maior parte dos estudos socioantropológicos da época, sendo considerada pela sua importância para as análises das nações de todo mundo principalmente dos países do América que possuíam, desde sua formação, a influência marcante dos indígenas e dos africanos.

Opondo-se a esse pensamento e buscando incessantemente uma identidade nacional, proveniente da mudança ideológica após a Semana de Arte Moderna de 1922, ocorre a partir de então a desvalorização das teorias raciais, concomitante com a valorização do negro, supostamente rejeitando o preconceito e o racismo, disseminando a ideia de um convívio harmônico entre brancos e negros. Sob essa égide, as obras de Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro conferem um avanço nos estudos sobre o negro, caracterizando-o como ser social e transformador da sociedade brasileira. Observa-se nessa análise que ambos apresentam uma interpretação de que o negro foi passivo em relação à dominação, avaliando essa passividade de forma diferenciada e influente para a formação da sociedade brasileira, favorecendo a mestiçagem, que garantiu particularidades ao brasileiro.

Pela leitura das obras selecionadas obtivemos a oportunidade de conhecer mais especificamente quatro autores que foram essenciais para a formação do pensamento socioantropológico brasileiro. No início, com Nina Rodrigues, em que os conceitos sociológicos ainda eram importados, e depois com Gilberto Freyre, que inicia a formatação de uma ciência social independente do circuito europeu.

Também conseguimos delinear o pensamento dos autores, identificando semelhanças entre eles, refletindo e relacionando Nina Rodrigues a Arthur Ramos e Gilberto Freyre a Darcy Ribeiro, listando suas semelhanças e divergências.

Percebemos que o assunto abordado é complexo, pois trabalhamos com um número determinado de autores, tendo consciência de que outros estudiosos também apresentam o tema e discorrem opiniões semelhantes ou divergentes dos autores selecionados, mas os objetivos foram alcançados e os questionamentos levantados no início deste trabalho foram respondidos.

A influência africana na cultura brasileira foi determinante para a formação do povo brasileiro, e sua forma de resistir ao processo total de aculturação sofrido desde o início da escravidão permitiu que sobrevivências culturais perdurassem até os dias atuais, mesmo que sua essência africana tenha se perdido em parte. Atualmente vemos terreiros de candomblé e de umbanda, a festa do boi e as comunidades quilombolas, reconhecendo-as não só como formas de resistência negra mas também como traços de uma cultura brasileira formada com a inserção e fusão de elementos culturais anteriores e permanentes.

Percebemos na atualidade que os mais de trezentos anos de escravidão em um país que tem pouco mais de quinhentos anos deixaram marcas que estão presentes ainda no cotidiano sob a forma do preconceito ou da desvalorização da presença africana.

Sabemos que a própria história diz que a mudança da mentalidade na sociedade ocorre de forma mais lenta e gradual, mas através deste trabalho pudemos contribuir para uma reflexão mais profunda sobre o papel da matriz africana para o que chamamos hoje de povo brasileiro.

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Publicado em 26 de fevereiro de 2013

Publicado em 26 de fevereiro de 2013

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