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Análise de uma tragédia grega: Oréstia, de Ésquilo

Janaina Pires Garcia

Doutoranda em Educação pelo PPGE – UFRJ; professora de Sociologia no Ensino Médio

Oréstia é uma trilogia composta pelas peças Agamênon, Coéforas e Eumênides; foi encenada pela primeira vez em 458 a.C., sendo a vencedora do primeiro prêmio nas festas dionisíacas de Atenas.

A primeira parte, Agamênon, mostra a volta desse personagem da guerra de Troia, na qual saiu-se bem-sucedido após matar a sua própria filha, Ifigênia, em sacrifício aos deuses. A morte de Ifigênia não é bem recebida pela mãe, Clitemnestra, esposa de Agamênon, que quer vingar a morte da filha assassinando o próprio marido com a ajuda de seu amante, Egisto. Ainda em Agamênon temos a última previsão de Cassandra (dote recebido por Agamênon por ter vencido a guerra de Troia): “o chorar do pássaro”, no qual estaria prevendo a morte de Agamênon e a sua própria.

A segunda parte, Coéforas, narra a volta de Orestes, filho de Agamênon, orientado pelo deus Apolo, para vingar a morte do pai. Ele é ajudado por sua irmã, Electra, que era mantida como serviçal no sótão do castelo pela sua mãe, Clitemnestra. O amante dela também é morto por Orestes com a ajuda de Electra e do deus Apolo.

A terceira e última parte, Eumênides, traz a ira de Clitemnestra, já morta, materializada nas Fúrias, que são vistas somente por Orestes e responsáveis pela sua loucura. Narra também o julgamento do crime de Orestes: o assassinato da própria mãe, que será analisado pela deusa Atena.

Nesse sentido, Oréstia, como todas as outras tragédias gregas, é uma arte política, antes de ser poética. Ela traz à tona a questão da justiça: a deusa Atena proclama um tribunal para julgar o homicídio cometido por Orestes, e ficará instituído para sempre. No tribunal, segundo a narrativa, temos empate, isto é, metade dos votos é pela absolvição de Orestes e a outra metade pela sua condenação. Ele acaba sendo absolvido pelos deuses, como um “caminho do meio” aristotélico.

Notamos aqui algo muito importante: de que justiça estamos falando na Oréstia? Na justiça dos homens ou na justiça divina? A partir do momento em que a deusa Atena institui um tribunal para julgar tal crime, estamos diante da crise do Direito e das leis, da crise da passagem do antigo Direito (fazer justiça com as próprias mãos) para o novo direito. É a transição da legalidade da physis, da lei do mais forte, para o homus, a polis, para proteger os homens de algo exterior a eles. Estamos diante da instituição de uma democracia, e essa é toda a potência das tragédias gregas, principalmente da Oréstia.

A tragédia, além de ser uma arte política, é também uma arte retórica. Ao contrário da Poética, de Aristóteles, que afirma que algo é o que é, a tragédia trabalha com o verossímil, o que não é, mas poderia ser.

Esta dimensão retórica da tragédia está presente no “modo de ser trágico do herói” (Gazolla, 2001), no seu poder de argumentação. Poder esse de oratória que extrapola o herói trágico e perpassa todos os personagens trágicos, mesmo estes não sendo dotados de subjetividade, pois o poder de persuasão da fala é como o outro lado a ser exercido pelo homem comum, pela pólis. É a transição da palavra mágico-mitológica para a palavra-diálogo (Costa Lima, 1980). Segundo Gazolla,

O discurso persuasivo pesa sobre o dia a dia do polités. Esse é um novo modo de viver que o mito não pode recobrir, pois a possibilidade de persuadir abre o logos para uma dimensão antes desconhecida (2001, p. 80).

A vida política democrática é assentada na palavra argumentada, na palavra compartilhada, palavra esta retórica por excelência, que traz em si o embate.

Na Oréstia, observamos a importância de a vingança de sangue ser banida da cidade; logo, a importância da política pela não violência, mas sim pelo diálogo, pela retórica, pois não existe política sem discurso.

Outra função retórica importante a ser destacada na Oréstia é a função educativa, em ser um certo tipo de ensino para a multidão, já que nesse caso o discurso da ciência é eficaz somente para poucos, com o intuito de gerar a catarse, item ao qual voltarei depois.

Além do uso retórico como palavra política e função educativa, a função das metáforas é igualmente importante nas tragédias em geral, e, em particular, na Oréstia.

Podemos entender por metáfora uma “analogia condensada” (Perelman, 1999). Não devemos confundir metáfora com a analogia, visto que a analogia trabalha somente a relação entre termos, e se assemelha a uma proporção matemática, como uma similitude de estruturas, cuja fórmula mais recorrente seria A está para B assim como C está para D (Perelman, 1999). A analogia possui valor de prova ou argumento porque revela uma semelhança de estrutura. Nesse sentido, para Perelman (1999) trata-se não de uma relação de semelhança, mas sim de uma semelhança de relação.

A estrutura da metáfora, por sua vez, é mais complexa, pois se considera que entre a analogia e a metáfora há um vínculo de significação que resulta da fusão de um termo do foro (tema geral mais conhecido que lhe serve para estabelecer a estrutura) com um termo do tema (conjunto dos termos em que repousa a conclusão, a evidência). Assim, a maior força persuasiva das metáforas é obtida quando a fusão permite criar expressões que bastam a si próprias, como por exemplo: “mar de sangue” para designar uma guerra (Perelman, 1999).

As metáforas, para esse autor, podem ser despertas de duas maneiras: a partir da vinculação com alguma analogia nova (“ele lançou tanta luz sobre esse assunto quanto um palito de fósforos acesso no interior de um prédio que sofreu um blecaute”) ou a partir da associação com uma nova metáfora (“a situação atual não é um beco sem saída, é um cruzamento de amplas avenidas”).

Para sintetizar o pensamento de Perelman (1999), na metáfora transporta-se a significação própria de um nome para outra significação, que só lhe convém em virtude de uma comparação que existe na mente.

Em seus estudos sobre a linguagem, Paul Ricoeur (2005) se aprofundará particularmente quanto à metáfora, não a localizando mais como figura do discurso focada na palavra nem no sentido como instauração de uma nova pertinência semântica, mas à referência do enunciado metafórico como poder de redescrever a realidade.

A metáfora, para Ricoeur (2005), possui uma única estrutura, mas duas funções: uma função retórica e uma função poética. Essa estrutura única da metáfora adotada pela poética e pela retórica seria a “transferência para uma coisa do nome de outra, do gênero para a espécie ou da espécie para o gênero, da espécie de uma para o gênero de outra ou por analogia” (Ricoeur, 2005, p. 24).

Por conseguinte, a metáfora possui vários traços (Ricoeur, 2005); dentre os mais importantes e criticados serão destacados a seguir.

O primeiro traço é que a metáfora acontece apenas ao nome (Ricoeur, 2005, p. 24). Ela é confinada entre as figuras de palavras (tropos). Assim, em Aristóteles é impossível reconhecer a unidade de certo funcionamento que ignora a diferença entre palavra e discurso e opera em todos os níveis estratégicos da linguagem: palavras, frases, discursos, textos e estilos.

O segundo traço é que a metáfora é definida em termos de movimento (Ricoeur, 2005, p. 30). A epiphorá – processo que afeta o núcleo semântico não somente do nome e do verbo, mas de todas as entidades da linguagem portadoras de sentido, e que também designa a mudança de significação enquanto tal – de uma palavra é descrita como uma sorte de deslocamento de/para. Essa noção de deslocamento traz consigo uma informação e uma perplexidade. Observa-se a importância de conservação dessa extensão da teoria da metáfora para além da fronteira imposta pelo nome, tal como o autoriza a natureza indivisível da epífora.

O terceiro traço é a transposição de um nome que Aristóteles denomina estranho (allotrios), isto é, que designa outra coisa, que pertence a outra coisa (Ricoeur, 2005, p. 32). A ideia aristotélica de allotrios tende a aproximar três ideias distintas: a ideia de desvio em relação ao uso ordinário (quebra de uma classificação prévia), a ideia de empréstimo a um domínio de origem e a de substituição em relação a uma palavra comum ausente, mas disponível. Nota-se que, as coisas sendo em número ilimitado e as palavras e os discursos em número limitado, as mesmas palavras e os mesmos discursos terão necessariamente mais de uma significação, porém não há ainda a noção de sentido próprio e sentido figurado.

O quarto e último traço diz respeito à metáfora aparentada à figura da analogia, que faz referência à semelhança (Ricoeur, 2005, p. 37).

O que Ricoeur quer colocar em evidência com esses traços da metáfora é que ela surge em uma ordem já constituída por gêneros, por espécies e por regras de subordinação, coordenação, proporcionalidade ou igualdade de relações e que, dessa forma, a metáfora consiste em uma violação dessa ordem e desse jogo: reconhecer e transgredir a estrutura lógica da linguagem.

Sob esse viés, Ricoeur (2005) trará três hipóteses para repensarmos a metáfora na contemporaneidade.

A primeira é considerar em toda metáfora não somente a palavra ou o nome único cujo sentido é deslocado, mas o par de relações entre as quais a transposição opera (Ricoeur, 2005). Por esse prisma, toda metáfora é um erro calculado, um desvio. O que nos resta para pensar é a relação entre o avesso e o direito do fenômeno. A metáfora é um fenômeno discursivo, pertence ao universo do discurso e da obra.

A segunda é considerar a transgressão categorial como desvio em relação a uma ordem lógica já constituída, como desordem na classificação (Ricoeur, 2005). Essa transgressão interessa porque produz sentido: daí a metáfora não ser apenas ornamento, pois ela porta uma informação na medida em que re-descreve a realidade.

A terceira é considerar a metáfora não como desordem ou desvio de um padrão anteriormente reconhecido e constituído, e sim uma ordem que nasce da mesma maneira que muda (Ricoeur, 2005). A própria ordem procederia da constituição metafórica dos campos semânticos a partir dos quais há gêneros e espécies.

Em suma, essa transição da semântica à hermenêutica elaborada por Ricoeur (2005) encontra sua justificação mais fundamental na conexão em todo discurso entre o sentido, que é sua organização interna, e a referência, que é seu poder de referir-se a uma realidade fora da linguagem. A metáfora apresenta-se, então, como uma estratégia de discurso que, ao preservar e desenvolver a potência criadora da linguagem, preserva e desenvolve o poder heurístico desdobrado pela ficção. A metáfora é o processo retórico pelo qual o discurso libera o poder que algumas ficções têm de redescrever a realidade: metaforizar não se aprende, é dom que vem da percepção das semelhanças. A metáfora que transgride a ordem categorial é também a que a gera.

Nesse sentido, foi possível notar a diferença entre o conceito de metáfora para Perelman (1999) e para Ricoeur (2005), observando que o último consegue trazer uma dimensão diferenciada para essa figura de linguagem: a sua potencialidade poética.

Assim, podemos entender a metáfora como uma figura de sentido, empregando termos com um significado que não lhe é habitual, pois ela desempenha um papel lexical, enriquecendo o sentido das palavras, não acrescentando novas palavras ao léxico (Reboul, 2004).

Já dizia Aristóteles que a metáfora deveria ser clara, nova e agradável (Reboul, 2004), como se estivéssemos alegres em desvendar um enigma presente nas palavras.

Tal enigma se faz presente em várias passagens de Oréstia, expandindo os seus significados habituais e trazendo à tona toda a sua potencialidade poética.

Por exemplo, na passagem em que Clitemnestra, na primeira peça, Agamênon (p. 10), diz: “desejo que do seio maternal da noite desponte cheio de venturas este dia”, não se está aqui querendo transferir o significado de uma coisa para outra ou trazer algo desconhecido para o conhecimento geral; simplesmente vemos aqui uma operação poética, de expansão de significado das palavras.

Ou, na passagem da peça Coéforas (p. 18), quando Electra diz: “nossa mãe transformou meu coração num lobo insaciável”, querendo demonstrar, por uma linguagem poética, toda a ira da filha de Clitemnestra de sua sede por vingança, e, quiçá, de justiça.

São muitas as metáforas presentes na Oréstia, mas todas elas possuem essa dimensão demonstrada por Ricoeur (2005), de que o sentido metafórico é suscitado pelo fracasso da interpretação literal do enunciado, pois, com uma interpretação literal, o sentido se destrói a si mesmo. Essa autodestruição de sentido é o inverso de uma inovação de sentido, pois tal inovação só é possível de ser obtida pela “torção”, ou melhor, pela transgressão das palavras. A interpretação metafórica, ao fazer surgir uma nova pertinência semântica sobre as ruínas do sentido, constitui a “metáfora viva” (Ricoeur, 2005).

Essa metáfora viva está presente na Oréstia, quando saímos do plano da descrição e representação da realidade para a organizarmos de outro modo, que se torna manifesto numa maneira de ser das coisas graças à inovação semântica trazida à linguagem. A obra poética é como um todo que projeta um mundo que se constitui pelo universo metafórico.

A tragédia, além de ser um drama retórico, é também uma narrativa (Ricoeur, 2012) que traz consigo a questão da mímesis, não como representação ou imitação do real, mas como algo criativo.

Ricoeur (2012) divide o mundo humano em três tipos de mímesis: mímesis I, mímesis II e mímesis III.

Podemos entender por mímesis I que

imitar ou representar a ação é, em primeiro lugar, pré-compreender o que é o agir humano: sua semântica, sua simbólica, sua temporalidade. É nessa pré-compreensão, comum ao poeta e ao leitor, que se delineia a construção da intriga e, com ela, a mimética textual e literária (Ricoeur, 2012, p. 112).

A mímesis I seria a nossa própria vida, pois a pré-compreensão do mundo que nos cerca só pode ser compartilhada pela linguagem: quando narramos alguma coisa, esta sempre antecede ao narrado; logo, nosso mundo se estrutura pela narrativa.

A mímesis II, por sua vez, tem função de mediação (Ricoeur, 2012, p. 113). É a tessitura da intriga, isto é, o tempo presente figurado de outra maneira. É, igualmente, uma atividade criativa, porque é uma síntese que transforma os episódios em unidade temporal: a intriga coloca em ordem os episódios a serem seguidos, dando-lhes uma unidade narrativa para compreender a história. A narrativa é a própria mediação.

E, por último, a mímesis III, que

marca a intersecção entre o mundo do texto e o mundo do ouvinte ou do leitor. A intersecção, portanto, entre o mundo configurado pelo poema e o mundo no qual a ação efetiva se desdobra e desdobra sua temporalidade específica (Ricoeur, 2012, p. 123).

Poderíamos entender a mímesis III como uma reconfiguração, isto é, o ponto de chegada da narrativa, o encontro da narrativa com o público, por exemplo, com a tragédia: quais interpretações serão geradas no público do texto Oréstia? No caso, seria a catarse, gerar um aprendizado por meio do sofrimento vivido pelo herói trágico, despertar temor e piedade nos ouvintes e receptores da obra, mobilizando o seu pathos.

Todavia, qual a relação da mímesis com a narrativa? Aristóteles, na Poética, por mais que falasse de categorias temporais, não privilegiava a questão do tempo. A tragédia, para este último, era uma representação da ação nobre, ação esta que era a alma da tragédia, a intriga sendo a representação dessa ação. A mímesis, para Aristóteles, operaria como produtora de algo, isto é, o agenciamento dos fatos que compõem a intriga. A questão que se coloca é que a única instrução que Aristóteles nos dá é de construir o mythos (intriga), logo, o agenciamento dos fatos, como o “o quê” da mímesis.

Dessa forma, podemos notar que Aristóteles (2011) não demonstrava interesse pela construção do tempo implicada na intriga, mas, de acordo com Ricoeur (2012), a atividade mimética em si mesma é a imitação criativa da experiência temporal vivida por meio da intriga.

Encenar a Oréstia é encenar uma tragédia que representa a passagem da tirania ao governo democrático, é encenar o mal – escândalo da razão e o tempo –, enigma da razão (Ricoeur, 2012). Este mal é demonstrado na Oréstia com uma função educativa: a função catártica da tragédia. A catarse é uma purificação, ou melhor, uma depuração; consiste, portanto, na transformação em prazer do sofrimento inerente a essas emoções. Mas essa alquimia subjetiva também é construída na obra pela atividade mimética (Ricoeur, 2012, p.90).

Tal processo catártico produzido pela tragédia teria intenção de não banalizar o mal, porque o mal não se deixa compreender racionalmente; ele simplesmente acontece, é um evento.

A tragédia, nesse sentido, opera como mediadora entre o mal e o mundo para que esse mal não seja banalizado.

Para Ricoeur (2012), essa relação de não banalização do mal, presente nas artes de forma geral, seria uma saída para a aporia trágica, uma forma de falar da tragédia da existência humana, reafirmando o valor da palavra, ou melhor, da linguagem, para lembrarmos que o mal existe, para lembrarmos que estamos entre o escândalo e o enigma.


Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. A Poética. São Paulo: Edipro, 2011.

COSTA LIMA, Luiz. Mímesis e modernidade – formas das sombras. Rio de Janeiro: Graal, 1980.

ÉSQUILO. Agamênon. Disponível em: www.oficinadeteatro.com.

__________. Coéforas. Disponível em: www.oficinadeteatro.com.

__________. Eumênides. Disponível em: www.oficinadeteatro.com.

GAZOLLA, Rachel. Para não ler ingenuamente uma tragédia grega: ensaio sobre aspectos do trágico. São Paulo: Loyola, 2001.

PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação – A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1999.


REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Loyola, 2005.

__________. Tempo e narrativa. Vol. I. A intriga e a narrativa histórica. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

Publicado em 26 de fevereiro de 2013.

Publicado em 26 de fevereiro de 2013

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