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Invisibilidade pública: que legado deixaremos às novas gerações uma vez que, em pleno século XXI, adotamos uma postura antissocial?
Tathiana de Almeida Ferreira
Pós-Graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional, graduada em Pedagogia (Univercidade)
O padeiro
Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento – mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante, lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto, não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que, obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido, conseguirão não sei bem o que do governo.
Está bem. Tomo meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. Enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento, ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:
– Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo?
– Então você não é ninguém?
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer e ouvir uma voz que vinha lá de dentro da casa perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não, senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina – e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como o pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!".
E assobiava pelas escadas.
Rio, maio, 1956.
Rubem Braga
Nesta crônica, Rubem Braga afirma ao padeiro que o seu trabalho tem suma importância e grande destaque na sociedade, assim como o dele, sendo jornalista. O “ser invisível” assumido pelo entregador de pães é uma condição estranha e equivocada imposta pelas relações sociais. Há diversas profissões extremamente importantes sendo desvalorizadas numa escala sócio-econômico-cultural.
A essa estranheza equivocada do papel que cada ser humano desempenha não sendo “visto” por pessoas da sociedade, que muitas vezes precisam constantemente do trabalho desses profissionais e não os fazem sentir-se gente em seu mais real significado, chama-se invisibilidade pública. Uma percepção humana totalmente condicionada à divisão social do trabalho, de modo a enfatizar somente a função desempenhada, e não o ser humano.
Esse tema foi abarcado numa tese de mestrado na qual Fernando Braga da Costa, psicólogo e mestrando da USP, resolveu “vestir a camisa” de gari e saiu em campo a fim de viver-sentir-refletir como é a vida dessas pessoas invisíveis à sociedade.
“Comprovei que, em geral, quem não está bem posicionado sob esse critério vira mera sombra social. Descobri que um simples ‘bom dia’, que nunca recebi como gari, pode significar um sopro de vida, um sinal da própria existência. Professores que me abraçavam nos corredores da USP passavam por mim, mas não me reconheciam por causa do uniforme. Às vezes, esbarravam no meu ombro e, sem ao menos pedir desculpas, seguiam me ignorando, como se tivessem encostado em um poste ou em um orelhão - contou Braga.”
Esse conflito cultural reforça, dentre tantos outros problemas, o que atualmente acontece, em pleno século XXI, com os profissionais que desempenham funções pouco reconhecidas socialmente, como faxineiros, padeiros, garis, vendedores ambulantes, profissionais que sobrevivem digna e honestamente, mas que são desvalorizados por outros que assumem funções consideradas mais importantes. Mantém-se, assim, o status quo, reforçando cada vez mais a política do capitalismo, a divisão social do trabalho e as desigualdades sociais imponentes num país subdesenvolvido sócio-econômico-culturalmente como o Brasil.
“Uma vez, um dos garis me convidou pra almoçar no bandejão central. Aí eu entrei no Instituto de Psicologia para pegar dinheiro, passei pelo andar térreo, subi escada, passei pelo segundo andar, passei na biblioteca, desci a escada, passei em frente ao centro acadêmico, passei em frente à lanchonete, tinha muita gente conhecida. Eu fiz todo esse trajeto e ninguém em absoluto me viu. Eu tive uma sensação muito ruim. O meu corpo tremia como se eu não o dominasse; era uma angústia, e a tampa da cabeça era como se ardesse, como se eu tivesse sido sugado. Fui almoçar, não senti o gosto da comida e voltei para o trabalho atordoado.”
O gari, no Brasil, é o profissional habilitado mediante concurso público cuja função é manter a higienização das vias públicas e essencial à saúde pública. Sua função é desempenhada com dedicação e sem nenhuma discriminação por parte desse profissional, visto que ele valoriza o seu trabalho e a conquista de seu espaço profissional na sociedade, desempenhando-o da melhor forma possível; uma vez que, por não ter tido acesso ao ensino regular no momento adequado, vê-se valorizado por conquistar, somente com o ensino primário, um importante lugar na sociedade. Em contrapartida, o fato de apresentar pouca escolaridade faz com que os “culturalmente bem letrados” enxerguem sua profissão como “algo dispensável”, de pouco valor, já que ele não causa tanto impacto social, como as profissões relacionadas à advocacia, à promotoria, à engenharia...
"O corpo é surrado, sugado, machucado, infestado: a única empresa do trabalhador vai falindo. Sua saúde entra em colapso, com complicações de todas as naturezas e magnitudes. (...) Um dia, a saúde falece, definitiva e precocemente. E a alma – humilhada, comprimida, aviltada, destroçada – permanece". Este e outros trechos igualmente contundentes mostram como é cruel o dia a dia e o destino de quem entra em contato com o mundo pelo contato direto com o lixo e o material desprezado pelo mundo, por todos nós. Como é ingrato ser gari. Varredor de rua. Lixeiro. Subalterno. Não qualificado.
Ocupante do cargo mais raso, denominado "ajudante de serviços gerais", gari não é consultado sobre qual trabalho deve ser feito antes. Não escolhe suas ferramentas e delas não pode reclamar, mesmo que sejam inadequadas, perigosas, desgastadas – enfim, mesmo que nem ao menos pareçam projetadas para o corpo humano. O trabalho – sujo, insalubre, braçal, repetitivo, humilhante – é exercido sob hierarquia severa e autoritária.”
Um fato muito atípico e inusitado chamou minha atenção durante a apreciação do conteúdo que aqui exploro:
“Concurso público para a seleção de 1.400 garis para a cidade do Rio de Janeiro atraiu 45 candidatos com doutorado, 22 com mestrado, segundo a Comlurb – Companhia Municipal de Limpeza Urbana da Cidade do Rio de Janeiro. Para participar do concurso bastava ter a quarta série do Ensino Fundamental.”
Eis minha inquietação: o que diria a sociedade de ter um gari-mestre? O que mudaria em relação ao fenômeno da invisibilidade pública, mantendo-se a mesma profissão tendo mestres e doutores limpando as vias públicas? Há um viés que precisa ser salientado: a disparidade socioeconômica e a falta de perspectivas profissionais. Há uma via de mão dupla nesse percurso, infelizmente! Porém, voltando à invisibilidade pública, ressalto, a título de curiosidade e conhecimento, que a palavra gari tem sua origem e fundamentação históricas na Cidade Maravilhosa.
De acordo com a Comlurb, Aleixo Gary, francês de origem, inaugurava uma nova era na história da limpeza pública no Rio, apoiado principalmente em sua eficiência de trabalho.
“Em 1885, o governo resolve contratar, provisoriamente, Aleixo Gary para o serviço de limpeza das praias e remoção do lixo da cidade para a Ilha de Sapucaia, localizada no bairro chamado Caju. Aproveitando-se das circunstâncias, Gary tentou, com uma proposta, concentrar todo o conjunto de atividades da limpeza – logradouros, remoção do lixo das casas particulares, praias e transporte do lixo para Sapucaia – em suas mãos, isto é, monopolizar o setor. Mas sua proposta não teve sucesso, sendo recusada pelo governo. Gary, no entanto, se mantém como responsável pelo serviço de limpeza na cidade e remoção de lixo para Sapucaia até 1891, data do término do seu contrato. Nesse mesmo ano, Aleixo Gary se afasta da empresa, deixando seu parente, Luciano Gary. No ano seguinte, porém a empresa parece ter sido extinta, pois, em documento de 1892, o Ministério da Justiça se dirige ao Prefeito requisitando "o pagamento a Aleixo Gary e Cia. de 232.238 contos de réis, valor pelo qual o governo adquiriu o material de extinta empresa de limpeza".
Criou-se a Superintendência de Limpeza Pública e Particular da Cidade. Gary deixara sua marca na história da limpeza urbana do Rio de Janeiro. Tão marcante foi a atuação desse empresário que os funcionários encarregados da limpeza, os lixeiros, passaram a ser chamados de "garis".
Com o tempo, os serviços prestados por essa superintendência deixaram a desejar. Tais problemas se agravaram em 1897, quando a Prefeitura contratou outros serviços particulares, que não cumpriram seus contratos, o que fez a prefeitura, em 1899, retomar seus serviços de limpeza da cidade.
“Em 1904, a prefeitura comprou o terreno da Rua Major Ávila, nº 358, na Tijuca, onde se localiza a sede da Comlurb. Em 1906, o serviço de limpeza urbana dispunha de 1.084 animais, já insuficientes para a limpeza da cidade que produzia 560 toneladas de lixo. E assim, a título de experiência, foram adquiridos dois autocaminhões. Seria o início da passagem do uso animal para o uso mecânico na coleta.”
No início do século XX, Pereira Passos foi o primeiro prefeito a terminar o seu mandato, depois de anos e crises na prefeitura. Com isso, os técnico-especialistas fizeram vários estudos para viabilizar o destino final do lixo e não chegaram a uma conclusão. Na década de 1940, o processo mais utilizado foi ainda o “vazadouro no mar”, o lixo era despejado nos aterros do Amorim e do Retiro Saudoso.
Nesse período, os garis ganharam os primeiros uniformes oficiais da prefeitura. Em 1940, a Diretoria Geral de Limpeza Pública e Particular sofreu algumas alterações, tornando-se o Departamento de Limpeza Urbana, subordinado à Secretaria de Obras.
“Uma medida inovadora do DLU foi o uso dos caminhões coletores compactadores, até hoje utilizados, e a introdução do hábito de embalar o lixo em sacos por parte da população. Ligado à mudança de hábitos e de consumo, um maior número de automóveis aparece nas ruas, criando um novo problema para a limpeza das calçadas e sarjetas, devido ao uso indiscriminado destas para estacionamento. Problema, aliás, que permanece até os dias atuais.”
Em 1975, houve a fusão entre o Estado da Guanabara e o antigo Estado do Rio de Janeiro. Tal união transformou a cidade do Rio de Janeiro em município e capital do estado. Depois de certas transformações dentro do DLU, a Comlurb é agora a empresa oficial da Prefeitura do Rio de Janeiro.
Em 1996, 100 anos após o surgimento da empresa Aleixo Gary e 20 anos depois da criação da Comlurb, observou-se que o serviço de limpeza continuou sendo um dos mais importantes para a opinião pública.
Atualmente, a evolução tecnológica contribui com a modernização dos serviços prestados pela Comlurb. Equipamentos sofisticados, como o caminhão e a coleta semiautomatizada, já fazem parte do cotidiano dos profissionais da limpeza. Do tonel em que os escravos carregavam o lixo, dos acondicionamentos improvisados, do uso dos sacos plásticos, passando pelos latões, a contemporaneidade atrelada aos avanços tecnológicos proporcionou à sociedade brasileira contêineres de plástico usados atualmente na Europa.
Nos dias atuais, as lagoas são tratadas com barcos de alta tecnologia. Produzimos, na cidade, 8.300 toneladas de lixo por dia. É nesse momento que a figura do gari, de uniforme laranja e vassoura na mão, se evidencia e se torna imprescindível, fundamental ao bem-estar da população do Rio de Janeiro.
Um grande destaque da atualidade é o gari Sorriso, figura imponente que se destaca no Carnaval brasileiro graças à sua simpatia e leveza. A vassoura, seu instrumento de trabalho, faz desse profissional o reflexo de que, quando há prazer na escolha de uma profissão, o trabalho se apresenta da maneira mais digna e prazerosa possível.
Ainda que os avanços tecnológicos estejam a todo o momento superando nossas expectativas nas áreas da Educação, Saúde e Limpeza Urbana, em especial, a invisibilidade pública continua presente no cotidiano social brasileiro.
No mundo real do pesquisador Braga,
“Eu choro. É muito triste, porque, a partir do instante em que você está inserido nessa condição psicossocial, não se esquece jamais. Acredito que essa experiência me deixou curado da minha doença burguesa. (...) Mudei. Nunca deixo de cumprimentar um trabalhador. Faço questão de o trabalhador saber que eu sei que ele existe. Ser ignorado é uma das piores sensações que existem na vida.”
Que tipos de legado e sociedade deixaremos para as novas gerações, se ainda repetimos os erros, os paradigmas do passado? Em que momento posso me colocar à frente do outro como melhor? Que pessoas queremos formar, se não oferecemos subsídios para tal formação e ainda contribuímos com a exclusão social em nosso país?
E o governo brasileiro: quando se fará presente diante de tantos problemas sociais que contribuem demasiadamente com a alteração da rotina cultural de milhares de cidadãos que se dedicam à construção de um mundo melhor e que, por sua vez, não tem retorno governamental, abrindo mão de muitos sonhos em detrimento de políticas públicas ineficientes?
Fala-se muito em deixar um planeta melhor para as novas gerações, mas não seria primordial deixar pessoas melhores para o planeta? Repensar a vida, a prática, os valores, as atitudes, as posturas adotadas e coibir o preconceito seria essencial para as futuras gerações perceberem e valorizarem o ser humano como gente, profissional e, principalmente, como um ser humano, de fato.
Referências
Comlurb: uma revolução na limpeza urbana. Disponível em: www.comlurb.rio.rj.gov.br. Acesso em 10/05/2012.
COSTA, Fernando B. da. Invisibilidade Pública. Tese de mestrado. USP. Disponível em: www.pedrodaveiga.blogspot.com.br/02/invisibilidade-publica. Acesso em 16/05/2012.
BRAGA, Rubem. O padeiro. Disponível em: www.portaldoprofessor.mec.gov.br-textosparaaula/opadeiro. Acesso em 23/05/2012.
Publicado em 26 de fevereiro de 2013
Publicado em 26 de fevereiro de 2013
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