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Nas trilhas do contemporâneo: Paulo Leminski

Luis Estrela de Matos

Ensaísta, poeta e professor universitário

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A poesia contemporânea brasileira passa bem, sim, obrigado. E esse estado de saúde se deve a alguns cuidados que ela vem tomando já há um tempinho. O seu organismo vem apresentando sinal de resistência e um esforço distraído, de presença diferenciadora, no cenário atual de tanta repetição, tanta cabana, tanto monstro e tantos coelhos e autoajudas. Verdade seja aqui registrada: o público leitor de poesia, se por um lado foi se tornando mais escasso ao longo do século XX, por outro vem se impondo de maneira singular e mais exigente. No caso brasileiro, que é o que nos interessa aqui, alguns tópicos precisam ser levemente apontados, como o grande divisor de águas que foi a experiência concretista dos anos 1950. Também a poesia marginal dos 70, juntamente com a irreverência tropicalista, a recessão econômica dos anos 80 e um universo de leitores bastante reduzido (seria necessário ainda falar de nossos índices de analfabetismo, inclusive nas megalópoles?) e acabaremos por chegar à maior das obviedades necessárias: poesia é para poucos, ou, como adverte a grande estudiosa e referência obrigatória da contemporaneidade poética, Heloísa Buarque de Holanda, em sua antologia antológica dos poetas dos anos 90, “o alijamento se traduz em escassos leitores, confinando, quase que fatalmente, o público leitor de poesia aos seus próprios poetas e simpatizantes”.

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Além do fator resistência eu utilizei, logo no começo deste texto, duas palavras, como se criassem uma expressão: esforço distraído. Quis fazer uma breve alusão ao título de um livro do poeta aqui abordado, o curitibano Paulo Leminski: Distraídos venceremos. E por que distração? Fora o argumento meio zen de Leminski, talvez uma das possíveis maneiras de escapar da armadilha que eu me inventei (poesia contemporânea) seja afirmar que a produção atual de certo segmento significativo de nossos poetas (com alto nível de consciência estético-cultural, é claro) não está mais interessada em colocar-se em termos de fronteiras fixas (detectar os inimigos, os modernistas, pós-modernistas e afins) nem em participar da velha ideia de fases a suplantar (a turma de 22, a geração de 45, os neoconcretos etc. etc.). Enfim, a já velha e desgastada ideia moderna do novo não vem funcionando mais como paradigma ou mesmo como forma de incômodo à consciência poético-criadora contemporânea. Os poetas jovens respiram liberdade e onde a experimentação ocorre (mais ou menos visível conforme o poeta), porém sem a obrigatoriedade, a camisa de força, do ‘make it new’ poundiano. Refaçamos: ‘make it new with pleasure’, diria eu. Fazer porque se gosta, fazer com prazer. Barthes em prática. O sabor do saber. Ou seja, o novo não mais como um objetivo neurotizante a ser perseguido a todo custo, inclusive porque as fronteiras entre as culturas alta, de massa e popular, principalmente pela midiatização da vida social, desintegraram-se de tal maneira que as velhas torres de marfim, mesmo as modernistas que sofrerem o mais ou menos inevitável processo de historicização (seria necessário falar da iconização da Alta Modernidade? O livro de Leyla Perrone-Moisés é obrigatório aqui) não mais alcançam a vertigem e a experiência da vida contemporânea das megalópoles. O alto repertório de Pignatari teria lugar hoje? Enfim, uma vida mestiça, um pensar fraturado, uma experiência radical do fragmento, uma escrita nômade e desterritorializada (Toni Negri, Deleuze), enfim, a ausência das grandes metanarrativas (Lyotard), tudo isso criou um novo cenário poético.

Embora esteja tentando alinhavar algumas ideias sobre o fazer poético contemporâneo (e arriscar falar do tempo atual é sempre perigoso), penso em Paulo Leminski como um dos prenúncios desse fazer, pois, além do exercício de liberdade formal que sua obra oferece, podemos visualizar o esforço bem-sucedido em pensar uma arte sem as velhas balizas dos malditos gêneros, fato esse que sempre demarcou os campos de nossa produção, mesmo após os radicalismos de alguns integrantes de 22. Sem querer cair no biografismo barato, mas apenas como exemplo, lembro-me de uma professora de Literatura (e eu estava já na faculdade) que me dizia que eu teria de escolher entre a poesia e a prosa, pois ela não conseguia identificar muito bem a minha escrita. Já outro professor, este poeta e de certa relevância cultural, afirmava que o meu caminho estava certo. Lembrando do velho Fernando Pessoa e de seu amigo Álvaro de Campos, fiquei confuso com essa dupla existência da verdade. Apenas não cortei a laranja. Por conseguinte, escolhi a proesia e até hoje padeço desse deleitável mal... Aliás, as fronteiras só existem para a geografia. Chega de mim.

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Voltando a Leminski, o nosso poeta meio zen, hoje revalorizado em termos nacionais, cito um trecho, na verdade uma carta a Régis Bonvicino, carta essa, diga-se de passagem, em que os anos 70 estavam presentes e ele sempre antenado com o futuro:

Acho que estamos depois da literatura
Não é preciso mais combatê-la
O que nós estamos fazendo já não é ela
A produção de signos
De bens simbólicos
De mensagens
Já ultrapassou a barreira cultural verbal
Em plena conquista de um espaço intersemiótico

A contemporaneidade está patente. Sua poética aí está. Além disso, metalinguagem. E o que surpreende não é essa percepção de que o verso e a prosa tradicionais não mais poderiam alimentar o fazer artístico atual. É claro, também, que algum diálogo poderia ser aqui lembrado. A angústia da influência (Bloom) tem o seu benéfico papel: Appolinaire, Joyce, Cummings, o Guimarães de Grande Sertão, o Euclides da Cunha que ele lera em tenra adolescência, os irmãos Campos. O diálogo das formas sempre existiu, e o já um pouco surrado conceito de intertextualidade comprova esse fato. O que talvez surpreenda ainda mais é que as amarras de uma tradição literária nacional ainda incomodassem um poeta pós-geração concretista. Mas a escrita leminskiana ultrapassava o limite da cultura circundante, e ele buscava um paideuma (Pound, Haroldo de Campos etc.) na inventividade de certos autores. Leminski dialoga com os artistas e realiza essa conversa com um humor muito característico, muito raro em nossa literatura. Talvez um certo Oswald de Andrade. Leminski foi um herdeiro feliz de uma espécie de privilégio histórico, só que por vias não muito oficiais. Segundo suas próprias palavras, ele já nascera concretista e, ainda jovem, percebeu que a poesia dos irmãos Campos e de Décio Pignatari era um verdadeiro divisor de águas na mais ou menos morna história da literatura brasileira. Até porque Sousândrade, um Kilkerry, ou mesmo um Oswald de Andrade cubista ou tupi-dadaísta antropófago não deixaram filhos e nunca agradaram à nossa inteligentzia de plantão. O próprio barroco, só para melhor elucidarmos o ponto aqui, e a recepção da obra de Gregório de Matos são um bom paradigma; andaram trancafiados numa perspectiva historicizante que não atentava para o recado que o Boca do Inferno teria lançado em nossa incipiente tradição poética. Haroldo de Campos, num pequeno e instigante livro (O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira) aborda o problema e compra uma boa briga com Antonio Candido.

E por falar em Oswald de Andrade (e me parece que é cada vez mais incontornável falarmos dele em nossa contemporaneidade poética), vale assinalar que a ousadia, inventividade semântica, o arrojo de uma proposta estética não padronizada de Paulo Leminski levam-no a um bom encontro com o autor de Memórias Sentimentais de João Miramar. Lembrando alguns trechos do Pau-Brasil de Oswald:

Senhor feudal
Se Pedro Segundo
vier aqui
com história
eu boto ele na cadeia

Fim e começo
A noite caiu com licença da ciência
se a noite não caísse
que seria dos lampiões?

Entre a paródia, as agulhas de um humor refinado, um certo paradoxismo e um tom abertamente iconoclasta, Oswald desmontou grande parte de nossa literatura, literatura séria demais, literatura como missão social (lembrando Flora Sussekind). Leminski dialoga, em meu entender, com a vertente do radicalismo e a inovação estética permanentes, coisa que Mário de Andrade reafirmou em sua famosíssima Conferência de 42 (sobre o movimento modernista) mas que ele, diga-se de passagem, não seguiu à risca. Os percalços e dissabores do caminhar errático ficaram para Oswald de Andrade, por sinal muito comentado e já celebrado, e talvez ainda não lido e estudado em toda a sua potencialidade criativa e desbravadora de novos parâmetros estéticos. Espero que a mesma sina não venha ocorrendo com o faixa-preta curitibano. Relembrando Nietzsche, alguns homens nascem póstumos. Estabelecendo algum contato com Oswald de Andrade, eu cito este dois pequenos poemas de Leminski:

saber é pouco
como é que a água do mar
entra dentro do coco?

vida e morte
amor e dúvida
dor e sorte

quem for louco
que volte

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Além de poeta marginal, Leminski foi tradutor conceituado de Beckett, James Joyce, Mishima, Alfred Jarry e John Fante, entre outros. Foi publicitário, participante de revistas alternativas dos anos 70, escreveu artigos para a Folha, Veja etc. Caetano, Gil, A Cor do Som, Moraes Moreira, Arnaldo Antunes e Itamar Assunção gravaram letras de Leminski. Também namorou um gênero todo próprio de ensaios biográficos (Cristo, Trotsky, Bashô e Cruz e Souza). Além disso, vale citar a sua antológica obra Catatau, narrativa sui generis que conta a história de uma viagem do filósofo René Descartes (Renato Cartesius) na expedição de Maurício de Nassau rumo à Nova Holanda (Pernambuco), onde o filósofo acaba fazendo uma viagem através de ervas não muito ortodoxas. Estabelece-se um confronto entre civilizações opostas (bárbaros x europeus) e a loucura de Cartesius vai tomando dimensões maiores, tudo isso numa linguagem fortemente experimental, como nunca havia sido realizada em toda a nossa literatura. O eurocentrismo cartesiano vai cedendo e se perdendo, junto ao excesso barroco de nosso cenário tropical. Cartesius repara na preguiça e começa literalmente a viajar. Melhor aqui é pedir a voz a Leminski:

Narciso contempla narciso, no olho mesmo da água. Perdido em si, só para aí se dirige. Reflete e fica a vastidão, vidro de pé perante vidro, espelho ante espelho, nada a nada, ninguém olhando-se no vácuo. Pensamento é espelho diante do deserto de vidro da Extensão. Esta lente me veda vendo, me vela, me desvenda, me venda, me revela. Ver é uma fábula – é para não ver que estou vendo. Agora estou vendo onde fui parar. Eu vejo longe. Pensamento me deu um susto, nó górdio na cabeça, que fome! Uma arara habilita-se a todos os escândalos sem ser Artiszewski. Jazo sob o galho onde o bicho preguiça está. Eis a presença de ilustre representante da fauna local, cujo talento em não fazer nada chega a ser proverbial, abrilhanta a mediocridade vigente. Requer uma eternidade para ir dez palmos, esta alimária, imune ao espaço, vive no tempo.

Essa preguiça é por demais conhecida para acrescentarmos comentários aqui. Novamente me lembro de Oswald e sua fome antropofágica. Tupy or not tupy, that’s the question. Pena que certa tradição intelectual associou essa fase oswaldiana ao momento do poema-piada ou mesmo de sua maneira clown de ser. Tivesse essa mesma tradição entendido de fato o que Pessoa quis dizer ao afirmar que o poeta é um fingidor, talvez todos esses problemas que nos acompanham há décadas tivessem sido mais bem equacionados e não precisaríamos do atraso dos romances regionalistas nem da famosa geração de 45. Mas isso são outras histórias.

Volto a Leminski e gostaria de fechar este pequeno texto dizendo que se trata de um poeta com uma consciência semiótica muito desenvolvida. Concisão, informação e invenção são palavras de ordem na poética leminskiana. Sua produção deve se entendida como artefatos, bricolage, desestabilização da linguagem, desierarquização de repertórios. Nesse sentido, não é difícil percebê-lo como poeta contemporâneo. Saber dos livros e cultura pop convivem em Leminski sem problema algum. Como disse anteriormente, aos doze anos lia seu primeiro romance, Os Sertões. Também andou pelo Mosteiro de São Bento quando jovem. Mas na hora de misturar os discursos não usou luvas de pelica. O comum do mundo do consumo dialogando com uma estratégica guerra semântica, em que os conceitos de neologismo e barbarismos linguísticos não têm mais lugar. Leminski incorporou todo o seu viver à linguagem, sendo que esta não era capturável e cadastrável em códigos universitários.

Para terminar e tentando gerar curiosidade no futuro leitor de Leminski, lembro aqui um poema em que vida e escrita se misturam nessa Voz que é o tecido do próprio texto:

O pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau e pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhodaputa
de fazer chover
em nosso piquenique

Publicado em 05/03/2013

Publicado em 05 de março de 2013

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