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AULAS DE LITERATURA: INTERAÇÕES & LEITURAS

Rodrigo da Costa Araujo

Mestre em Ciência da Arte, Doutorando em Literatura Comparada (UFF)

Dada a constante circulação entre linguagens nas aulas de Literatura e a possibilidade de se estabelecerem entre elas laços às vezes aparentemente inusitados, propiciamos aqui um entrelaçamento de linguagens em aulas de Literatura, eclipsando as representações do país na música Brasil, de Cazuza. Se a construção do olhar presente reinterpreta os Brasis que vivemos, criando vários olhares precursores para textos atuais, parece pertinente olhar para as práticas de aulas de Literatura de forma intertextual, criativa e relacional. Por isso a ideia deste texto surgiu da necessidade de registrar e divulgar a experiência vivida no CIEP (Centro Integrado de Educação Pública) 393 Aroeira em Macaé, no Estado do Rio de Janeiro, em turmas de Literatura do Ensino Médio.

A música Brasil foi o mote para esse diálogo, para o qual foram convidadas outras vozes – as textualidades do Brasil representadas através de imagens e metáforas do mapa enquanto forma. Portanto, palavra, música e imagem são três recursos importantes na comunicação e, mais que isso, na constituição de sujeitos.

Afinal, uma educação que se limita à alfabetização unicamente da palavra escrita esquece a educação para a leitura da imagem, e, assim, dará conta apenas de uma parte de sua tarefa-desafio na sociedade pós-moderna, caracterizada pela multiplicidade de linguagens e pela influência dos meios de comunicação.

A música de Cazuza associa imagens narrativas de uma voz excluída remetendo o nosso olhar em direção ao mundo em que vivemos. Com essa música demos asas à imaginação e transpusemos as barreiras dos conteúdos clássicos de Literatura, muitas vezes estáticos, que tanto nos têm vetado o poder de criação, principalmente no espaço escolar.

O desafio e a audácia da música de Cazuza trouxeram como resposta o envolvimento e a participação dos alunos da 2ª série do Ensino Médio no trabalho pedagógico com a Literatura (e por que não leitura?). Mas só isso não bastava para completar a leitura de alunos que exigem mais, apesar de uma intenção em introduzir o Realismo no Brasil a partir da letra citada.

Tudo isso fez aparecer uma pluralidade de leituras após as discussões da letra que relata a situação de vida de um adolescente à margem da sociedade. O texto, então, ressignificado, passou a ser visto numa perspectiva básica e na esteira dos conceitos bakhtinianos de gêneros discursivos, em diálogo com outras concepções dos estudos da linguagem e do ensino de literatura que privilegiam o texto, sua constituição e materialidade.

Nesse caso, os termos, texto e discurso que a letra de música sugeriu podem ser entendidos como sinônimos e empregados indiferentemente para designar o eixo sintagmático das semióticas não linguísticas: um ritual, um quadro, uma imagem, um balé podem ser considerados como textos ou como discursos (GREIMAS, 1989, p. 460).

O texto, visto por esse ângulo da semiótica e dirigido ao ensino de linguagem, vamos dizer assim, aparece também nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, explorando a questão dos gêneros, que pode ser surpreendida em vários momentos na prática com textos. Essa concepção de linguagem e língua assumida pelos organizadores contribui para o enfoque da prática relatada.

O ato da fala pressupõe uma competência social de utilizar a língua de acordo com as expectativas em jogo. No ato interlocutivo, o contexto verbal relaciona-se com o extraverbal e vice-versa. “O caráter dialógico das linguagens impõe uma visão muito além do ato comunicativo superficial e imediato. Os significados embutidos em cada particularidade devem ser recuperados pelo estudo histórico, social e cultural dos símbolos que permeiam o cotidiano” (PCNEM, 1999: p. 126).

É a partir daí que aparecem os conceitos de gêneros discursivos nos PCNEM, calcados diretamente em Bakhtin, embora não haja referência no corpo do texto. Esse conceito aparece na obra Estética da Criação Verbal (2003), que entende o signo como material semiótico-ideológico e que tem na literatura um exemplo significativo. Na prática aqui relatada, entende-se o ensino de Literatura como os conceitos bakhtinianos que privilegiam a linguagem; por isso, recorre-se a ela sempre que necessário, principalmente em situação de ensino.

Esse trabalho com o texto, aqui utilizado como ilustração, tangencia uma proposição fundamental para a semiótica: “compreender o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz”, a clássica formulação da professora Diana Luz Pessoa de Barros (1990, p. 7).

A música de Cazuza ressurge, então, com mais força do ponto de vista dialético e dialógico de Bakhtin quando a palavra “cara” metaforiza a verdadeira identidade do país. Como num mosaico, os alunos, a partir da música de Cazuza, foram remontando outras músicas que ficaram no imaginário brasileiro e que, de alguma forma, foram representativas em determinados contextos. Em pesquisas intertextuais sobre o tema Brasil surgiram o Hino Nacional e Aquarela do Brasil, de Ari Barroso, como numa espécie de tentativa de conquista do espaço almejado por meio das múltiplas leituras de forma prazerosa que o texto poético permite.

Enquanto o Hino Nacional reforça imagens do país com um texto carregado de adjetivos (na primeira parte, “plácidas”, “retumbante”, “heroico”, “fúlgidos”, “forte”, “idolatrada”, “formoso”, “risonho”, “límpido”, “intenso”, “vívido”, “belo”, “impávido”, “gigante” e outros; na segunda parte, “esplêndido”, “profundo”, “iluminado”, “risonhos”, “garrida”, “estrelado”, “verde-louro”, “eterno”), o poema de Ari Barroso faz saudações ao país, fala das origens do povo, dos hábitos, dos costumes, exalta o negro, retrata a mulata como pessoa vistosa, manhosa. Ressalta a fertilidade e a beleza de nossa terra.

O Brasil representado no Hino Nacional reforça a ideia de grandeza e exaltação à pátria. Tudo isso transfigurado desde o título até constantes e fortes presenças da adjetivação. Exaltando a pátria, o poema esmera-se em buscar a perfeição na forma. Para tanto, estrutura-se em sete pares de estrofes ora travando duplas, ora articulando quantidade de versos e de sílabas poéticas.

No poema, não surpreende a modalidade da linguagem culta, utilizando um registro destacadamente formal, o que se manifesta sobretudo na escolha de um léxico sofisticado. As figuras, apesar da oscilação possível dos seus significados, estão articuladas no interior e na estrutura do texto, formando uma rede de sentidos que montam imagens do país, seja da fauna, flora ou da História.

Os recursos linguísticos empregados nas duas letras possuem capacidade de emocionar e sugerir a história de um povo marcado pela afetividade e pelo samba, por meio de um discurso poético e referencial.

Pelo dialogismo, segundo Bakhtin, em Aquarela do Brasil ainda pode ser percebida uma alusão ao famoso poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, e por trás das “cortinas do passado”, a história do negro no país é relembrada como desconstrução, como forte polifonia textual e discursiva.

O ritmo de Ari Barroso apresenta uma sucessão de movimentos que estruturam o jogo textual em tensão e distensão, com o objetivo de caracterizar a afetividade e o sentimento do povo brasileiro. A tensão é a frase do relaxamento, da distensão. Só existe ritmo quando sentimos a distensão como descarga de um complexo emocional.

Isso pode ser percebido na capacidade expressiva do texto, que faz uso do registro coloquial e que se tonifica nas sílabas tônicas dos vocábulos “inzoneiro”, “bamboleiro” e “merencória”, formando no interior da palavra um jogo de tensão e distensão, alongando-se, assim, a primeira sílaba com o intuito de enfatizar o conteúdo lexical.

Os recursos do assíndeto (“Abre a cortina..., Tira a mãe..., bota o rei...”) na construção de Aquarela do Brasil reforçam a impressão de velocidade que toma as palavras, retratando efeitos estilísticos em pinceladas rápidas de cenários do Brasil.

Talvez venha por isso a visão alegre ou otimista de uma época que a letra de Ari Barroso retratou e tornou popular a música brasileira não erudita fora do país. Os recursos fonoestilísticos empregados pelo autor enaltecem o país por sufixos que relembram o vocábulo brasileiro (eiro) como: “coqueiro”, “pandeiro”, “bamboleiro”, “trigueiro” e “inzoneiro”.

As vogais nasais estão presentes em várias palavras da música, com o objetivo de acentuar o ritmo do samba, o som do batuque: “tam tam tam...”, “cantar”, “gingar”, “congo”, “congado”, “merencória”, “canção”, “salões”, “arrastando”, “bamboleiro”, “murmurantes”, “pandeiro” etc. Por outro lado, a música-base que instigou essa aula traz a ironia como figura de linguagem preferida para caracterizar a corrupção e o poder econômico de um país que esconde sua identidade.

Essa era uma época chamada de “desbunde”, da qual os jovens adeptos da contracultura no final da década de sessenta fizeram parte. Exportada para boa parte do mundo, a contracultura virou moda no Brasil do início dos anos setenta, época em que os autores desse tipo de canção estavam começando sua carreira.

É assim que, saltando da esfera restrita da verborragia pessoal, estilo depoimento exaltado, os versos de Brasil acabam se dirigindo a uma geração ameaçada pelo imobilismo e pelo sintoma de uma época desesperançada.

Cazuza, em seu eu-lírico, denuncia um país desigual; a voz de um sujeito faz-se ouvir a partir de posições desvalorizadas e ignoradas; ela ecoa a partir das margens da cultura e, com destemor, perturba o centro, ou seja, as imagens do Brasil propostas pelo Hino Nacional e pela música de Ari Barroso. Uma outra política passa a acontecer, uma política que se faz no plural, já que era – e é – protagonizada por vários grupos que se reconhecem e se organizam, coletivamente, em torno de identidades culturais de gênero, de raça, de sexualidade, de etnia.

O centro, materializado pela cultura e pela existência do homem branco ocidental, heterossexual e de classe média, passa a ser desafiado e contestado mediante representações e discursos do excluído na música de Cazuza. Portanto, muito mais do que um sujeito, o que passa a ser questionado é toda uma noção de cultura, ciência, arte, ética, estética, educação que, associada a essa identidade, vem usufruindo, ao longo dos tempos, de modo praticamente inabalável, a posição privilegiada em torno da qual tudo o mais gravita.

Esse ambiente de transformações aceleradas e plurais que hoje vivemos parece ter se intensificado desde a década de 1960, possibilitado por um conjunto de condições e levado a efeito por uma série de grupos sociais tradicionalmente submetidos e silenciados.

Os apontamentos dessa aula estabelecem uma estreita articulação entre os movimentos sociais dos anos 60 e o Pós-Modernismo enquanto movimento estético-cultural que surgia com força na época, como afirmou Linda Hutcheon: “subitamente, as diferenças de gênero e raciais estavam sobre a mesa de discussão” e, “uma vez que isso aconteceu, a ‘diferença’ tornou-se foco do pensamento – desde novas questões de escolhas sexuais e história pós-colonial até questões mais familiares, tais como religião e classe” (1988, p. 90).

A anáfora e a repetição do vocábulo “não” na letra da música reforçam a revolta e a ironia em relação aos dirigentes do país, anunciando uma visão crítica do contexto social: “Não me convidaram”... “Não me ofereceram”... “Não me elegeram”... “Não me sortearam a garota do Fantástico”... “Não me subornaram”. A música-matriz reverbera, nessas repetições, um Brasil que exclui, que enfatiza um discurso vazio (fala-se muito e nada se faz) ou um sentimento de revolta, no sentido de formatar as pessoas a sempre dizerem “sim”.

Assim, acreditamos que, com essas reflexões entre Literatura e música, seja possível instigar leituras prazerosas e menos opressivas, uma aula em que o texto remete à linguagem e que estrutura o mundo em nosso interior. Uma reflexão que entende a leitura como trabalho de linguagem, porque “ler é encontrar sentidos, e encontrar sentidos é nomeá-los; mas esses sentidos nomeados são levados em direção a outros nomes; os nomes mutuamente se atraem, unem-se, e seu agrupamento quer também ser nomeado: nomeio, re-nomeio: assim passa o texto: é uma nomeação em devenir, uma aproximação incansável, um trabalho metonímico” (BARTHES, 1992, p. 44-45).

Nessa prática intersemiótica em aulas de Literatura/ leitura, é possível pensar em algo que ultrapassa o verbal do texto, indica que este pode ser flexível o bastante para, mediante os nexos nele implícitos, transformar-se em novo texto, que por sua vez será absorvido e transformado em novíssimo texto, como num caleidoscópio textual.

Essa intersemioticidade dos meios de massa faz pensar que as aulas de linguagens podem envolver música, texto e imagem, resultando em experiências sensório-perceptivas ricas para o receptor. É nesse sentido que Santaella afirma:

há vários modos de ler, há vários tipos de leitores que são plasmados de acordo com as reações e habilidades que desenvolvem diante dos estímulos semióticos que recebem. Ler livros configura um tipo de leitor bastante diferente daquele que lê linguagens híbridas, tecidas no pacto entre imagens e textos (2004, p. 174).

Por considerar a leitura como prática semiótica, foi proposto aos alunos, após discussão das músicas apresentadas aqui, uma representação do Brasil não verbal de cada um, uma espécie de reforço intersemiótico articulado aos princípios de polifonia textual bakhtinianos.

Imagens apresentadas como intertextualidades

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Figuras 1 e 2. Folha em branco apenas com o contorno do Brasil e imagem proposta por Ziraldo, sugerindo uma gota de sangue espalhada.

Imagens produzidas pelos alunos

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Figuras 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10: Imagens criadas pelos alunos do CIEP 393 Aroeira.

Referências

ARAUJO, R. C. O texto não verbal nas aulas de Língua Portuguesa. Apostila para capacitação de Professores. mimeo. FAFIMA – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé -2004.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BARROS, D. L. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2000.

______; FIORIN, J. L.(orgs.) Dialogismo, polifonia e intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: EdUSP, 2003.

BARTHES, R. S/Z. Trad. Lea Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

______. Aula. Trad. e posfácio de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2004.

BRAIT, B. (org.) Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.

BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, 1999.

GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Cultrix, s.d.

HUTCHEON, L. Poética do Pós-Modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

LÉVY, P. O que é virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.

ROJO, R. (org.) A prática de linguagem em sala de aula. Praticando os PCN. São Paulo: EDUC; Campinas: Mercado das Letras, 2000.

SANTAELLA, L. Navegar no espaço. O perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulo: Paulus, 2004.

Tributo A Cazuza. 1999. CD. Som Livre. MPB.

Publicado em 12 de março de 2013

Publicado em 12 de março de 2013

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