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Uma crônica
José Kuiava
Doutor em Educação pela Unicamp, professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Campus Cascavel
Hoje fui aposentado. O Estado me aposentou, impiedosamente. Pior: me proibiu de trabalhar, de hoje em diante, na universidade cuja concepção, gestação, nascimento, criação e crescimento compartilhei durante os últimos 35 anos. Só posso trabalhar na condição de “velho” – “sênior”, uma elegância fantasmagorizada – se a universidade me quiser. Assim, estou condenado para o resto da minha vida a ganhar salário do Estado sem trabalhar. Estou me sentindo mal. Um insulto. Uma deformação do ser humano. Uma ordem suprema da nação inapelavelmente fere os princípios e as leis do jogo na luta pela produção e reprodução da espécie humana. Alguém pode impedir o outro de trabalhar? Sinto que ninguém tem legitimidade para proibir alguém de trabalhar.
Certo dia eu li: “a aposentadoria é um pré-atestado de óbito”. Quem anotou isso foi o escritor mineiro Eduardo Frieiro. E pensou certo, ainda que muito doloroso. Isso me fez pensar em outra lei da Física, segundo a qual tudo o que não é usado se atrofia. Portanto... Calma! Certa vez, certo intelectual brasileiro (então chefe maior da nação) disse que os aposentados eram todos uns vagabundos – inclusive ele, e como! Em nível bem elevado.
Talvez o mais justo fosse pensar que os aposentados são uns inúteis, improdutivos, segundo os valores do mundo contemporâneo, é claro. Segundo ainda a ideologia dominante-hegemônica, a única coisa que produzem é um déficit nos orçamentos do Estado e enchem as salas, antessalas, corredores, UTIs dos hospitais do SUS. Reclamando de tudo e de todos, sempre. Com justiça. No mundo contemporâneo, sob o império da lógica consumista, os aposentados continuarão consumistas e atenderão ao mercado sob várias denominações: cliente, próximo da fila, paciente, doente, freguês, contribuinte, devedor, inadimplente, transgressor, usuário, sonegador, eleitor… Assim, por conta disso, estão na “melhor idade da vida”, proclamam muitos. Isso soa falso. É mentira. Nessas condições e circunstâncias, serei mais “um rosto na multidão”. Quer dizer, na confusão.
Dia 19 de fevereiro de 2014, às 3 horas da tarde, completei 70 anos. Isso segundo o registro na certidão de nascimento e segundo a contagem e a medição do tempo que os seres humanos inventaram em dias longínquos da história. Que invenção mais escabrosa. Ao inventar o tempo, os seres humanos inventaram os critérios para, primeiro, registrar as coisas no tempo: dias, semanas, meses, anos, décadas, séculos, milênios... Depois, inventaram os instrumentos para medir o tempo: os relógios para contar e medir os dias em segundos, minutos e horas. Uma invenção horrível. Atormentadora e atordoante. Agora, inventaram relógios eletrônicos, cronômetros e uma maquinaria eletrônica-planetária tão fascinante quanto devastadora para medir, limitar e controlar o tempo de tudo e de todos, o tempo todo. Por conta disso, fui aposentado. Sei que não é uma solução, mas nunca na vida usei relógio de espécie alguma – de bolso, de pulso, nem de ouro, nem de prata. Jamais seria capaz de ornamentar minha casa com relógios. Tenho medo do tique-taque, dos ponteiros e pêndulos de relógios. Até o som dos sinos das torres das igrejas me assusta e atormenta quando anuncia com sonoras badaladas as horas do dia ou a morte de algum cristão fiel à igreja.
E pensar que muitos passam o tempo todo brincando com as máquinas que medem e controlam o tempo. E outros tantos ganham dinheiro, muito dinheiro, fabricando e vendendo os instrumentos e as máquinas de medir e controlar o tempo – principalmente a velocidade do tempo quando andam e se locomovem.
Por conta dessa invenção maluca, neste momento estou possuído por duas certezas: a primeira, de que numa bela tarde, de céu azul e sol escaldante, eu nasci; a segunda, de que, no entardecer de um dia, já sob a luz dos últimos raios avermelhados do sol, vou morrer. No intervalo, entre o início e o fim, vou construindo a minha existência em meio à existência de muitos outros. Melhor, com muitos outros. Isso me faz lembrar do poeta maior, Pablo Neruda, quando proclamou sabiamente: “É fácil escrever: você começa com a letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca as ideias”. Simples assim.
Aos 70 anos, se o alfa é o início e o ômega o fim, já devo estar bem mais adiante da metade das letras do alfabeto. Quase no final. Porém devo continuar escrevendo. Quem sabe, embaralhando e misturando e depois organizando novamente as letras para dizer minhas paixões de viver, de ler, escrever, desenhar, pintar, ouvir música, viajar... Compor poemas sem ser poeta. Desenhar e pintar cenas e imagens do mundo sem ser artista.
Das paixões fazem parte a beleza das paisagens, a beleza encantadora das flores e das árvores, o silêncio dos vales coloridos, das montanhas esbranquiçadas e longínquas no horizonte, a aurora do amanhecer, o nascer do sol, as nuvens, o sol avermelhado do entardecer esfumaçado, o silêncio e a solidão das noites de luar. Mas, em meio às paixões de viver, de trabalhar, preciso dizer da minha indignação e angústia ao ver seres humanos, portanto, da minha espécie animal, dedicando-se, do início ao fim de suas vidas, com obstinação sem limites, para acumular posses. De bens materiais, querem ser proprietários os donos de terras sem fim, florestas, plantações, animais comestíveis sem conta, indústrias e fábricas, bancos, prédios e edifícios, carros, caminhões, aviões, trens, navios, mercados, supermercados, shoppings, igrejas, jornais, rádios, TVs, telefonias, computadores, naves espaciais, satélites e o céu. Dizem e proclamam que tudo isso produz e dá a felicidade de viver. Um simulacro de felicidade. Isso tudo me chateia e me entristece.
E me deprime por demais ouvir pregadores pedindo, seduzindo, assediando os fiéis para contribuições sem medida em nome do “Senhor Deus”! Assim, acumulam fortunas incomensuráveis sem pagar os tributos sociais justos, em patrimônios pessoais de que nenhum deus necessita, nem eles levarão esses pertences para o céu. Nem para a própria cova. Outros acumulam bens e riquezas explorando e à custa da força de trabalho alheio, de grandes massas de seres humanos. Uns e outros constroem sua felicidade à custa da infelicidade, do sofrimento e da dor dos outros. O que mais me chateia é ver milhões de corpos humanos se alimentando de restos de comida podre dos lixões. Que espécie de alteridade podemos vivenciar? Não existe o outro abstrato. Existem os outros – reais, materiais, biológicos e sociais. Pensar o outro no abstrato é tagarelar sobre o nascimento e a vida de um homem biológico abstrato. Com certeza, preciso pensar e escrever o mundo a “contrapelo”. Sempre gostei mais de semear dúvidas do que plantar certezas. Formular perguntas do que dar respostas. Uma busca permanente e inacabada.
Na condição de aposentado e proibido de trabalhar, sentirei falta mortal das salas de aula universitárias – esse espaço arquitetônico fascinante e assustador, divertido e entediante, maravilhoso e atordoante. Sentirei saudade das carteiras universitárias arquitetadas em círculo. Sentirei falta e muita saudade dos rostos joviais e esperançosos dos estudantes, dos corpos ora tímidos e avergonhados, ora sinceros e ousados, ora corajosos e seguros, ora cheios de dúvidas, incertezas e medos, mas sempre repletos de sonhos, sempre provocados e seduzidos pela liberdade de pensar e dizer o modo de ver a vida e o mundo.
Vou sentir falta e saudades dos colegas professores, do riso ridente de alguns abrindo cancelas e da seriedade obtusa de outros, prontos para atacar ou defender. Sentirei falta dos embates no fazer o cotidiano da universidade. Vou sentir saudades da gentileza dos colegas técnico-administrativos, das lutas compartilhadas na criação e construção da universidade. Vou sentir saudades dos prédios, dos jardins, da paisagem, da geografia da minha universidade.
Agora já me sinto descomprometido, não mais responsivo pelo fazer universitário. Ao mesmo tempo, estou tomado por um sentimento sincero e profundo – um desejo feito sonho – de ver uma universidade menos operacional, menos burocratizada e burocratizante. Gostaria que fosse inventada uma “pedagogia da imaginação” como imaginou Ítalo Calvino.
Enfim, gostaria de ver uma universidade livre, criativa, com espaço para a estética e a ética. Universidade mais democrática inventando uma democracia viva, substantiva, local, nacional e universal.
Esta é apenas uma crônica demasiadamente longa, inventada por mim, de mim e de outros, para mim e para outros. Antes do ponto final, relembro o que escreveu nosso genial poeta Manoel de Barros: “Tudo o que não invento é falso”. E o que inventou Ítalo Calvino: “prefiro a leveza dos pássaros à leveza das penas”.
Publicado em 25/03/2013
Publicado em 25 de março de 2014
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