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Biografemas difusos de Caio Fernando Abreu

Rodrigo da Costa Araujo

Professor de Literatura da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Macaé; doutorando em Letras (UFF)

Quando não se tem a voracidade de registrar o que se vê, vê-se mais e melhor, sem ânsia de guardar, mostrar ou contar o visto. Vê-se solitário e talvez inutilmente, para dentro, secretamente, pois ninguém poderá provar jamais que viu mesmo. Além do mais a memória filtra e enfeita as coisas.

Paisagens em Movimento. In: Pequenas Epifanias, p. 170.

Queria tanto poder usar a palavra voragem. Poder não, não quero poder nenhum, queria saber. Saber não, não quero saber nada, queria conseguir. Conseguir também não – sem esforço, é como eu queria. Queria sentir, tão dentro, tão fundo que quando ela, a palavra, viesse à tona, desviaria da razão e evitaria o intelecto para corromper o ar com seu som perverso. A-racional, abismal. Não me basta escrevê-la – que estou escrevendo agora e sou capaz de encher pilhas de papel repetindo voragem voragem voragem voragem voragem voragem voragem sete vezes ao infinito até perder o sentido e mais nada significar. [...] Eu quero sê-la, voragem.

No centro do furacão. In: Pequenas Epifanias, p. 52.

Caio Fernando Loureiro de Abreu nasceu em Santiago (antigo Santiago do Boqueirão), no Rio Grande do Sul, a 12 de setembro de 1948 e faleceu dia 25 de fevereiro de 1996, em Porto Alegre, vítima da aids.

Este ano, após dezoito anos de falecido, suas narrativas surgem com força e encanto. Dedicou-se a maior parte de sua escritura à narrativa curta, preferencialmente o conto, estreando como escritor com o livro O Inventário do irremediável em 1970. No entanto, em sua bibliografia constam obras de diferentes gêneros literários, como seus dois romances: o primeiro, Limite branco, também de 1970; e o segundo, Onde andará Dulce Veiga?, de 1990; o infantil As frangas, de 1988; e um livro de crônicas, publicado após sua morte, em 1996, denominado Pequenas epifanias.

As narrativas curtas são, porém, a preferência do escritor, que, desde Inventário do irremediável, publicou O ovo apunhalado, em 1975; Pedras de Calcutá, em 1977; e Os dragões não conhecem o paraíso, em 1988. Ainda no ano de 1988 surge a coletânea Mel & girassóis, reunindo diversos contos do autor já editados em outros livros. Em 1995, foi lançado Ovelhas Negras e, em 1996, após seu falecimento, Estranhos estrangeiros.

Seu livro mais conhecido é Morangos Mofados, publicado inúmeras vezes. Trata-se de um livro de contos que, entre mofos e morangos, passeiam suas obsessões por personagens quase sempre anônimas que vivem em grandes cidades e em direção a um palmo qualquer de luz. Ou de sombra.

Como seus personagens, Caio se sentia um estrangeiro eterno, irremediável, um estranho estrangeiro, sem paz fora da própria terra, incapaz de viver nela. Em quase todos os contos, o escritor aborda seus temas preferidos: o estranhamento, a solidão, a dor e o sentimento de marginalização. Seus personagens vão envelhecendo com ele: sempre jovens em Inventário do irremediável. Mergulhados no espaço contaminado da pós-modernidade sua narrativa representa seres degradados pelas drogas, paranoias, aids, esquizofrenia, desencanto, muita procura e muito desamparo.

A cidade é o cenário preferido dos seus personagens, que, embora tratem de narrativas em que a temática social predomina, esta é filtrada pela interioridade das figuras humanas, que reagem de várias maneiras aos fatos. Por isso a literatura de tema urbano tende a aprofundar a análise da vida interior das personagens.

Assim, sua narrativa pode ser classificada como psicológica, porque enfatiza o prisma intimista com que os eventos externos são percebidos; e estes deixam de ter sentido predominantemente social para se confundirem com problemas do inconsciente, produtos de traumas pessoais e de relações insatisfatórias na infância ou em determinado momento da vida.

A literatura de Caio incorpora ao espaço urbano novos significados, ampliando o repertório e o alcance da literatura, representando seres diversificados ou muitas vezes melancólicos.

Paralelamente ao trabalho de escritor, Caio trabalhou como jornalista e dirigiu algumas peças teatrais. Recebeu vários prêmios durante sua carreira.

Sua escrita antiepifânica (termo de Olga de Sá em estudos sobre a narrativa de Clarice Lispector) revela o ser pelo seu avesso e procura atingir o leitor. O polo epifânico, segundo Olga de Sá, pode também constituir-se pelas epifanias do feio, da náusea, as antiepifanias ou epifanias irônicas e corrosivas que revelam o ser pelo seu avesso. Trata-se de um texto rápido, pictórico-fotográfico, sintético, que se quer icônico e cinematográfico, em que o encadeamento se processa como num jogo de cenas e em contínuos questionamentos. Um questionamento fragmentário sobre a linguagem, a conduta humana, a transcendência das coisas, os problemas existenciais, éticos e estéticos que nos envolvem na tarefa de viver.

Esse processo híbrido de linguagens, com pastiches da linguagem cinematográfica, presente na narrativa de Caio Fernando Abreu vem se intensificando na literatura contemporânea, calcado agora não mais na simples reprodução, mas na proliferação da imagem eletrônica e só possível de se efetivar pela simbiose entre o mercado e os meios de comunicação de massa.

Sua escritura se fabrica pela montagem narrativa em partes, quebrada, deixando lacunas ao leitor, cortes na sequência do texto, seguida de uma trama de referências.

Tudo faz lembrar O jardim das delícias, uma forma de montar textualmente o que Barthes apontou como a encenação de um aparecimento-desaparecimento ou uma escritura repetida a todo transe, ou, ao contrário, se for inesperada, suculenta por sua novidade.

A leitura de seus contos proporciona o enigmático, o silêncio percebido como trágico, e o cinema ganha representações nos imaginários dos personagens e na linguagem entrecortada, como a narrativa cinematográfica. Apesar dos diálogos, tudo caminha para a grande ausência do silêncio – como algo que deveria ser dito e ficou perdido, escondido na trama verbal.

Enfim, no reino de Eros a narrativa finissecular de Caio, como no filme A morte em Veneza, baseado na obra homônima de Thomas Mann, testemunha e recupera a sensibilidade, assim como a angústia diante de um mundo que não atende às suas necessidades existenciais, atirando o homem de seu tempo à marginalidade e à transgressão.

No Orkut, as quatro comunidades sobre o autor somam milhares de membros – todos hipnotizados pelos labirintos narrativos da escritura pós-moderna de Caio Fernando Abreu.

Talvez seja o magnetismo narrativo movido pela mágica e pelo silêncio que seduz o leitor sensível na tentativa de encontrar o espinho que atravessa a carne do texto, tudo num cuidado muito especial na pista escorregadia da linguagem.

Referências

ARAUJO, Rodrigo da C. Caio Fernando Abreu: encenações de uma escrita vampiresca. Comunicação; ABRALIC. Associação Brasileira de Literatura Comparada; UERJ. Rio de Janeiro, 2006.

______. Caio Fernando Abreu em cartas: paixão e arte de escre(vi)ver. In: Texto e leituras. estudos empíricos de língua e literatura. Rio de Janeiro: Publit, 2007.

AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas: Papirus, 2003.

Caio Fernando Abreu - cartas. Org. Ítalo Moriconi. Rio de Janeiro. Aeroplano, 2002.

Caio 3D: O essencial da década de 1970. Rio de Janeiro: Agir, 2005a.

Caio 3D: O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b.

Caio 3D: O essencial da década de 1990. Rio de Janeiro: Agir, 2006.

De Caio Fernando Abreu

Triângulo das Águas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

Os dragões não conhecem o paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 1988a.

Mel & girassóis. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988b.

Onde andará Dulce Veiga? Um romance B. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

O Ovo Apunhalado. São Paulo: Siciliano, 1992.

Limite Branco. São Paulo: Siciliano, 1994.

Inventário do irremediável. Porto Alegre: Sulina, 1995a.

Morangos Mofados. São Paulo: Companhia das Letras, 1995b.

Ovelhas Negras. Porto Alegre: Sulina, 1995c.

Pedras de Calcutá. São Paulo: Companhia das Letras, 1996a.

Estranhos estrangeiros e pela noite. São Paulo: Companhia das Letras, 1996b.

Pequenas epifanias. Porto Alegre: Sulina, 1996c.

Publicado em 15/04/2014

Publicado em 15 de abril de 2014

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