Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

A alimentação como direito

Cândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

O anúncio da inflação de março, em alta, veio com a informação de que os preços dos alimentos novamente pesaram mais. Quem vai ao mercado atrás de alimentos sabe disso muito bem. Na verdade, se a gente considerasse a inflação específica dos preços dos alimentos ela seria muito maior que o tal índice médio. Sem dúvida, a inflação de alimentos é um pesadelo muito grande para todo mundo, mas especialmente para quem tem o salário mínimo como referência de sua renda doméstica. R$ 1,00 a mais aqui, R$ 1,70 acolá, R$ 2,30 lá e assim vai, tudo isso vira uma conta que dá como resultado real a redução da quantidade e da qualidade de alimentos na sacola de compras.

Mas a fome em casa não é gerida pelo tal mercado. As necessidades e desejos de comer se inscrevem na própria qualidade de vida que a gente leva. O alimento é central, pois sem ele nem há vida. Mas não é só isso. Alimentar-se tem tanto uma incontornável determinação fisiológica natural – a necessidade de consumo diário de calorias, proteínas e tudo o mais – como uma profunda dimensão cultural e civilizatória. Alimento é convivência em família, é celebração e festa, é identidade cultural. Pensemos na feijoada aqui no Rio, no vatapá na Bahia, no pato ao tucupi no Pará, a polenta com frango dos italianos no Sul, no churrasco gaúcho – meio hegemônico na questão de carnes entre nós. São alguns dos exemplos mais claros de comidas associadas a verdadeiras culturas e identidades que resultam na vibrante diversidade de nosso povo. O direito ao alimento envolve tudo isso e é parte dos direitos fundamentais de nossa Constituição. Soberania e segurança alimentar são bandeiras cidadãs (no Brasil e mundo afora) que clamam por políticas públicas para assegurar o direito de todas e todos ao alimento adequado à vida e à própria cultura.

Só que o mercado não se organiza em torno a direitos nem se limita pelos direitos. O mercado e os preços são uma grande invenção humana para realizar as trocas de produtos e serviços. Afinal, na medida em que as sociedades se complexificam e aumenta a divisão do trabalho não dá para funcionar sem troca. A moeda como expressão e medida do valor e as trocas são indispensáveis. Nunca é demais lembrar que foi nas praças públicas que surgiram os mercados e aí também surgiu a própria democracia. O problema é que os mercados se autonomizaram da democracia, se tornaram livres e... escravizaram as pessoas e a própria democracia. Até a fome está subjugada pelo mercado. Isso é aceitável?

Pelos preceitos dos oráculos da economia, para enfrentar a alta de preços de alimentos o jeito é ajustar a fome aos preços e ao mercado. Buscar alimentos mais baratos, trocar de alimentos se necessário for, reduzir o consumo. Enfim, segundo a economia, não dá para controlar o mercado. É mesmo? E como ficam os direitos fundamentais de cidadania? Eles também dependem do mercado? Não é mercado demais e democracia de menos?

O problema é que o direito cidadão à soberania e à segurança alimentar não se limita aos preços. Eles, os preços no mercado, não mostram outras qualidades fundamentais que o produto – o alimento, no caso – carrega e não são evidentes. Alguém sabe quanto agrotóxico – veneno que pode fazer mal e matar – está num simples pé de alface? No feijão? No tomate e no pimentão? No arroz de cada dia? Naquele franguinho gostoso? Na margarina e no óleo de soja? O agronegócio, o modelo empresarial de produção de nossos alimentos, de quase todos eles, tem o uso intensivo de agrotóxicos como condição. Somos o país de maior consumo de agrotóxicos por hectare do mundo. Sem falar que alguns agrotóxicos usados aqui já são proibidos há muito tempo onde se leva a sério a questão de saúde associada ao alimento. Não procure nos rótulos das embalagens algum indício do veneno usado, pois não existe!

Além dos venenos escondidos naquela beleza de folhas, grãos e carnes, temos ainda a questão dos alimentos transgênicos. Hoje, os transgênicos já ocupam lugar de destaque na composição de nosso prato, em casa e no restaurante. Você sabia? Comecemos por reconhecer que, no mínimo, existe controvérsias científicas já provadas de que os transgênicos não são um alimento seguro. Um cientista francês, contestado pelas grandes multinacionais dos grãos, provou por a+b que ratos, comendo milho transgênico por mais dos tais quatro meses de teste aceito por órgãos reguladores, morrem de câncer: simplesmente todos, enquanto os alimentados de outra forma continuam vivos. E aí? Não somos ratos, evidentemente! Vamos ter que testar o risco em humanos e só então exigir mais precaução na liberação de produtos transgênicos? O princípio da precaução faz parte dos acordos da Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU de 1992, realizada no Rio, a Eco-92. Bem, acordos sim, mas negócios e livre mercado à parte.

No Brasil adotamos quase por completo a liberação dos transgênicos. O caso mais complicado é de milho e soja, de que somos grandes produtores e exportadores e são essenciais à teia alimentar de hoje em dia no nosso prato. No Brasil se adota parcialmente o T, de transgênico, em alguns produtos. Bem pequeninho no rótulo, mas está lá. Quem vê? Bem, está na maior parte das embalagens de óleo de soja e de milho. Os que têm T são mais baratos – olha aí o tal mercado. Mas margarina é feita de soja, exatamente pelas mesmas grandes corporações de agronegócio do óleo de soja. Alguém viu o T no rótulo das margarinas?

Mas o problema não acaba aí. Frango come ração com soja e milho – muito provavelmente transgênicos. A vaca, do leite, manteiga e queijo, também come ração. O porco, hoje tão baratinho, é um transgênico completo, pelo que come. Seus derivados, gostosos como a linguiça, o bacon, o salame e aqueles maravilhosos complementos da feijoada, todos têm alta dose de transgênicos. Onde está o tal T pequeninho, difícil de ver? Pela via do mercado, não temos escolha: comemos transgênicos! Será que segurança alimentar é comer uma bomba assim?

Há outro problema ligado ao tal mercado de alimentos: a procedência. Pode ser, e muitas vezes é, que o preço de certas frutas importadas da Argentina ou do Chile sejam mais baratas que as nossas. Falo de uvas e maçãs, por exemplo. O Brasil é, talvez, o maior pomar do mundo, pela quantidade e pela diversidade, tanto de frutas nativas como das chamadas exóticas – não daqui, mas que gostam do Brasil como nós mesmos, povo feito do mundo inteiro. Pois bem: o Brasil é o maior produtor e exportador de laranja e cítricos em geral. Precisa importar laranja e tangerina do exterior? Tornamo-nos um dos grandes produtores de maçã – uma fruta essencial, segundo médicos e nutricionistas. Por que importar maçãs da Argentina? Somos um dos maiores produtores de uva de mesa – não adequada para vinhos. Será que precisamos de uvas de mesa do Chile?

Ainda não é uma prática recorrente a indicação de procedência dos alimentos que nos são oferecidos nos mercados. Aliás, coisa rara. Aqui estamos diante de uma grande questão de sustentabilidade associada ao alimento. As culturas alimentares se desenvolveram graças à biodiversidade e aos próprios sistemas ecológicos do Planeta Terra. Como humanos, soubemos tirar partido do que a natureza nos propiciava. A migração de plantas, como dos próprios seres humanos, é um direito. Ao menos eu reconheço e pratico na minha pequena chácara, dada a minha origem e tradição de camponês. Hoje temos uma riqueza de plantas e animais, base de alimentos, muito diversificada e espalhada pelo mundo, graças inclusive ao próprio engenho humano, que ajudou a descobrir ambientes e adaptar vidas de plantas e animais a eles.

Mas uma coisa é produzir abacate aqui, originário do México, que dá muito bem, e outra é importar. Isso vale para muitos alimentos. Um princípio básico da sustentabilidade hoje são os circuitos curtos: produzir aqui para consumir aqui. Claro que isso não resolve todas as necessidades e desejos alimentares. Mas o essencial pode e deve ser resolvido por nós aqui, sim! Que sentido tem exportar maçãs e importar maçãs? Onde está a lógica de exportar uvas do vale do São Francisco e importar uvas do Chile? Por que importar alhos e cebolas se podemos produzir tais hortaliças por aqui, até melhores? Como cidadão consumidor e preocupado com a sustentabilidade da vida – nada a ver com negócios “sustentáveis” que alimentam as trocas internacionais –, reivindico o direito de ser informado sobre a origem do alimento que estou comprando.

Enfim, como dá para ver, tratar de alimento é lidar com algo que condensa contradições de um direito humano básico. As questões são muitas. O preço dos alimentos é, na verdade, muito mais do que preço. Nele está encoberta toda uma história de soberania e segurança alimentar, essencial para pensarmos a sustentabilidade da vida e do planeta. Democracia para valer deve tratar disso com o cuidado e a radicalidade que merece.

Publicado em 29 de abril de 2014

Publicado em 29 de abril de 2014

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.