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Favela & Sinagelastia
Prof. Dr. Eduardo Marques da Silva
Doutor em História pela USP
Na segunda metade do século XIX na cidade do Rio de Janeiro, a economia caminhava para certa configuração competitiva; o quadro socioeconômico em formação gerava sérias dificuldades à plena assimilação e entronização de uma mão de obra desqualificada, que se configurou numerosa principalmente no censo de 1872, denominada “pessoas sem profissão definida”. Sinagelastia define um grupo de desordeiros que se insurge contra ordem estabelecida.
Havia grande população desocupada, vagabunda, reunida na parte marginal da cidade em termos físicos geográficos, mas que também habitava o centro urbano da cidade. Tratava-se de uma população relegada a um plano de abandono ou semiabandono. As análises de ocorrências policiais mostram que o Estado e a polícia tinham muita ocupação com esse tipo de gente (como no presente).
Eram, no geral, pessoas que viviam do roubo, em constante estado de embriaguez e turbulência. Uns eram escravos fugitivos ou mesmo libertos, em meio aos brancos de origem nacional ou estrangeira e se multiplicaram pela pós-abolição até o presente. Seu destino na vida marcava-se pela incerteza. O único fio que os ligava à vida da cidade era a exclusão social e sociocultural, como afirma a professora Viviane Forrester (1997, 2001), (e hoje composta também pelo tráfico de drogas).
Estudando o primeiro corte temporal, de 1850 a 1870, definido pelo fim do tráfico negreiro e o fim da Guerra do Paraguai; e o segundo corte, de 1870 até 1890, quando a prática de capoeira se tornava crime regulamentado, notamos que a polícia apresentou um significativo volume de ocorrências. Era grande o número de ações dos marginais, modelo rústico do excluído social na cidade que, em sua grande maioria, acabaria formando as favelas. Favelas que, no “pacto das elites” tanto alimenta nossa argumentação de uma pseudoincompreensão, farsa e/ou mesmo a permanente presença da velha pratica sociocultural do recusar-se a enxergar, como fazer-se indiferente diante de tal presença inexorável entre nós. Essa população, nas suas origens e até o tempo presente, fica à margem do processo de produção.
Uma vez na marginalidade, ela tendia para a formação de grupos especiais de modelo “sinagelástico”, como os velhos capoeiras daqui, possuidores de regras de comportamento próprias, opostas à ordem social do Rio de Janeiro. Alguns viviam relegados à miséria econômica, possuíam formação cultural social diferente daquelas que marcavam a sociedade da ordem na cidade, buscavam sobreviver de expedientes condenados pela sociedade dos que cumpriam a lei e as regras do “bom viver”. Eram marcados inexoravelmente pelo desprezo e abandono, não só do Estado como do conjunto da decadente sociedade oficial de modelo europeizante da cidade do Rio de Janeiro na época.
Libertos, escravos e um grande número de estrangeiros associados aos livres nacionais de vida marginal formavam um conjunto de cultura paralela, cujo comportamento e ação combinados na violação e na violência geravam desordens e confusões pela cidade, reverberando-se aos nossos dias com peculiaridades surpreendentes. Desenvolveram uma cultura expressa numa forma de linguagem repleta de calões e gírias demarcadoras de um mundo complexo. Uma “cultura especial”, que servia de “código do ludibrio”, enganador daqueles que com eles não conviviam cotidianamente, inclusive a polícia, e que muitas vezes servia não só como defesa, mas também denunciava o quanto eram independentes e autônomos como formações sociais sinagelásticas.
No caso dos capoeiras, essa cultura atribuía-lhes características grupais diferentes, estabelecidas de forma hierarquizada, e demarcava sua área de poder na cidade. Essas características eram definidoras de um novo mundo de regras, como ainda o é hoje em dia, capazes de desenhar uma nova maneira de pensar. Um pensar alternativo, desengajado da sociedade fluminense da época e até hoje. Eles pertenciam a um cotidiano pouco conhecido pela sociedade da ordem.
Essa “cultura especial” representava para a sociedade da cidade o vulgar, o pertencente à “arraia miúda”, mas que hoje vemos como era e continua a ser muito mais do que isso. Expressava formas de relacionamento e poder da vida subterrânea urbana do Rio de Janeiro. Pelo fato de ser usada basicamente por pessoas pertencentes a esse universo populacional dito marginal da cidade, atribuía condição social paralela a toda uma formação sociocultural de vida na relação desocupação-marginalidade-sinagelástica.
O Estado imperial no Segundo Reinado, apesar das tentativas de reforçar o aparelho policial de repressão, não se mostrou eficiente. A reforma não foi capaz de conter o crescimento dessa marginalidade. Não percebeu que suas causas estavam no crescimento demográfico alimentado pela decadência da escravidão (fim do tráfico negreiro) e o imigrantismo, principalmente pela antiga Lei de Terras, promotoras de um forte fluxo de braços desocupados na cidade. Destacou-se no início o braço liberto, que, menos qualificado para as exigências do mercado, não tivera imediata absorção. Formava-se toda uma população de perfil marginal e sinagelástico que sobreviveu na dificuldade de uma vida clandestina, na exclusão social.
Ao nível social, representa a parte “maldita”, contudo organizada, da cidade e, às vezes, protegida por políticos da época, como Osório Duque Estrada, e outros.
Opostos à trajetória de organização social vigente, esses grupos representavam papel importante no jogo de relações entre a ordem e a desordem. Pelo lado dos primeiros, significavam a possibilidade da instrumentalização do ato de burlar o partido oposto. Pelo lado do segundo, significava uma possibilidade de se fazer notar como instituição, mesmo negada, principalmente no que tange aos velhos capoeiras.
A Guerra do Paraguai trouxe novas condições sociais para os habitantes da marginalidade sinagelástica da cidade. Com ela conseguiram confundir poderes. A conclusão que podemos tirar daí é que ficou muito mais difícil para a incipiente força policial da cidade combatê-los. A organização do capoeira ganhou certo prestígio sem abandonar a marginalidade.
Quanto ao perfil institucional, embora a marginalidade fosse frágil em sua unicidade, havia uma ordem interna, composta de regras de conduta, principalmente entre os capoeiras. Porém identificavam-se pouco com a ordem. A solidariedade e a coesão eram marcadas rigidamente. Eles possuíam sentido religioso, ligado e identificado com a terra. Fundamentavam seu comportamento na defesa do espaço de domínio (territorialidade), elemento definidor de sua força. Mas, como grupo, respeitavam e atendiam somente o seu líder, opondo-se a toda forma de poder invasor que o corrompesse, como a polícia. Sua força advinha, dessa forma, de associação. A polícia encontrava aí sua maior barreira na tarefa de combatê-los. A polícia se mostrava fraca e incapaz de controlar a ação, não só dos capoeiras, mas de toda a marginalidade da cidade. As dificuldades no combate e controle social dessa massa se apresentavam no reduzido número de efetivo policial, incompatível para o espaço geográfico de vigilância.
Os esforços da polícia eram inúteis, pois ela errava na estratégia e na tática. Primeiro, por privilegiar notoriamente um combate voltado para o escravo e o liberto, num momento em que estes não eram o maior volume de desordeiros, fato que notamos no primeiro corte de tempo, dificultado pelo surgimento da Guerra do Paraguai. Segundo porque, no segundo corte de tempo, permaneciam priorizando esse tipo de combate, quando quem crescia no número de atos de desordem era a população marginal composta de livres nacionais e estrangeiros. Era patente o medo que se tinha da nova condição social do ex-escravo e as consequências da sua libertação.
Com relação ao equivoco tático, acrescentamos que o seu procedimento permaneceu marcado pela não compreensão das razões que levavam às múltiplas ocorrências policiais causadoras de turbulências. A falta de uma evolução científica e a permanência por um longo tempo em envolvimento das práticas escravistas dificultaram a compreensão da complexidade estrutural do quadro gerado pela desocupação e abandono dessa população marginal no centro da cidade do Rio de Janeiro. O avanço na direção de uma economia de competição na cidade, que buscava sobreviver apesar do negativo perfil escravista, trouxe uma imagem de confronto entre velhas e novas práticas sociais de produção. Definiu-se um espaço de conflito, pois ao liberto atribuía-se a herança de vícios adquiridos antes da libertação.
A preferência pela absorção de uma mão de obra considerada mais preparada (europeia) acenava aos investidores, senhores territoriais e à pequena burguesia como o símbolo de eficiência e qualidade. Preterir o livre nacional já era um hábito comum. Mas este ainda encontrava alguma possibilidade de concorrer no mercado. O escravo e o liberto eram os excluídos no espaço urbano.
A marginalidade representa o lado do entristecimento desse tipo de população. Eram quase sempre pessoas que não conseguiam incorporar a prática da vida livre: porque não conseguiam acesso à ordem ou porque, no desamparo e na desocupação, perdiam a razão de viver competitivamente. Tal fato ocorria comumente com o liberto e o escravo, mas também era comum entre os livres nacionais e estrangeiros e se multiplicou, como podemos ver nos dias de hoje.
Por outro lado, aqueles que se organizavam em grupos sinagelásticos sobreviviam com certa ordem e construíam uma identidade cultural própria, como os capoeiras, dentre todos os mais organizados. Possuíam uma estrutura de poder hierarquizado. Costumeiramente violadores da ordem pública, ligavam-se ao “subterrâneo” político-social da cidade. Possuíam crenças e hábitos religiosos fortes, geralmente ligados à explicação de sua origem e vida cotidiana. Neles habitava a microcriminalidade local (ocorrências comuns) e a macrocriminalidade nacional (crimes comandados por políticos ou partidos da época). Era comum encontrar casos de capoeiras que roubavam por iniciativa própria ou em bandos. Mas também era comum encontrar maltas de capoeiras que prestavam serviços criminosos a partidos políticos, no claro propósito de causar desordem nos planos dos opositores. Os escravos fugidos se organizavam com grandeza e liberdade por aqui, o que se multiplicou de certa forma nos exemplos das favelas..
Violar as regras sociais era um comportamento comum. Nessa violação, demonstravam uma organização própria. As maltas defendiam seus espaços territoriais com ações violentas, muitas vezes camufladas e oportunamente usadas em épocas de festejos, como Carnaval, conhecido como festa de Entrudo. Era, junto à marginalidade geral da cidade, a “parte perigosa” da população da cidade.
Em seu território, o poder do Estado dificilmente se fazia presente. As regras que vigoravam eram geralmente as do grupo, principalmente na época dos capoeiras. Seu perfil geral era multifacetado, fragmentado; as regras da sociedade da ordem perdiam seu sentido para dar lugar à defesa do espaço próprio.
Observando esses tipos, podemos afirmar que eram incipientes quanto ao fato de ser efetivamente organizados. Pois, excetuando os capoeiras, a maioria aparecia em ocorrências policiais individuais. Entretanto, no volume total apresentavam o lado obscuro de uma urbanidade vivida na violação-violência. Marcada por causar intranquilidade pública, era constantemente negada pelos insistentes chefes de polícia da corte, empenhados talvez em apresentar uma imagem de boa administração do seu setor.
É comum encontrarmos contradições nos relatórios apresentados pelos chefes de polícia da Corte do Rio de Janeiro. Notamos que alguns afirmavam haver tranquilidade pública na cidade. Mas, no próprio relatório, apresentavam um volume variado de ocorrências sem explicações de suas causas, com a clara preocupação de mostrar serviço. Por outro lado, jornais como o Diário do Rio de Janeiro e o Jornal do Commercio apresentavam um volume de ocorrências muito maior.
Alguns jornais apresentavam queixas sobre a desordem causada pelos capoeiras, como se eles fossem os únicos causadores de desordem, e não os principais. Entretanto, verificamos que as ocorrências policiais registravam uma volumosa quantidade de crimes e infrações comuns, ao contrário do que havia sido declarado. Tal fato demonstrava que o Estado, por não conseguir controlar a marginalidade da cidade e por estar distante da sociedade, enganava-se com falsos testemunhos acerca do perfil da ordem social. E, contudo, os nossos quase quatrocentos anos de escravidão sequer passavam pelos registros históricos. Era um Brasil europeísta mesmo, incapaz de discutir o próprio umbigo. Vejam no gráfico abaixo como se privilegiava o que vinha de fora sem olhar sequer a grandeza de uma prática quilombola.
A marginalidade do Rio de Janeiro, embora possuísse uma organização incipiente vivia sinagelasticamente. Sua vida cotidiana envolvia disputa de poder e conseqüentes conflitos entre grupos. Muitos deles se mantiveram íntegros na vida de favela que temos hoje. Não era uma marginalidade que visasse somente à sobrevivência pessoal, mas, a sobrevivência do domínio territorial, disputando o espaço urbano constantemente, como vê até hoje. Não era impessoal, tinha alvo definido da luta pela sobrevivência. Seus alvos eram em primeiro lugar, a polícia, braços controlador e repressor; em segundo lugar, era a ordem opressora que impedia sua total integração social e em terceiro, sobrevivendo do ludibrio da sociedade oficial, seguia burlando as regras sociais existentes naquela época, e parece que continua até hoje.
Embora não tenha sido possível o seu mapeamento, acreditamos que o seu poder se definia num espaço geográfico. Pois, em relatos de jornal e ocorrências policiais, notamos a nomeação de ruas imediatamente lembradas pela existência de uma determinada Malta de capoeira. O seu espaço de vida era a rua. Possuíam ligações com a ação subterrânea de políticos em momentos de campanha eleitoral para causar desordens, com propósitos turbulentos também naquela época do século XIX. E, nesse particular, sua ação apresentava imagem de impunidade, uma vez que apareciam protegidos por aqueles. O capoeira apresentava certo adestramento para o enfrentamento conflituoso, adquirido na formação dentro do grupo. Esses grupos costumeiramente aliciavam menores.
Eles impunham o terror na sociedade. A marginalidade comum provocava apenas desordem. No geral, a ação dessa marginalidade investia-se contra a sociedade oficial, burlando-lhes regras e opondo comportamentos considerados antiéticos, atentadores à moral, à ordem e à tranquilidade pública.
Os capoeiras atribuíam temor ao crime, inviabilizando qualquer projeto de defesa da sociedade no centro urbano que estivesse sob seu domínio. Nas camadas populares, eles eram respeitados e assimilados. Possuíam a participação inclusive de pessoas destacadas da sociedade, pelo convidativo caráter de jogo-dança-luta que contagiava.
A marginalidade da época, com seu vocabulário próprio, representava uma fronteiriça divisão de dois mundos contrapostos. Representava cultura e poder distintos, convivendo num hibridismo social. O desafio era suplantar o poder público de uma sociedade europeizada que sucumbia pela miscigenação, pela inexorável necessidade de convivência dentro de um espaço urbano limitado, em que a disposição das ruas dificultava a separação mas, ao mesmo tempo, permitia a convivência híbrida em seus becos e vielas.
A cidade do Rio de Janeiro, no Segundo Reinado e se reverberando para os nossos dias, apresentava-se com uma imagem social em que se confrontava cada vez mais a construção de um Império subterrâneo no subterrâneo do Império, definindo um quadro, na pior das hipóteses, denunciador de duas realidades sociais: a organizada e a desorganizada. Onde o choque, a miséria, a desocupação, o comportamento turbulento expressavam-se em atos comuns da vida cotidiana, causados por uma insensibilidade fundada no distanciamento entre o Estado e a população desassistida da cidade.
O perdão talvez tenha sido o mecanismo mais eficiente para o efetivo controle da sociedade paralela. A complexidade dessa hipótese sugere pesquisas que agora encontram respaldo.
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Publicado em 29 de abril de 2014
Publicado em 29 de abril de 2014
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