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O velho chiado

Pablo Capistrano

Escritor e profesor de Filosofia – IFRN

Sexta-feira santa, enquanto uma parte da cristandade sofria lembrando da imolação de Cristo, eu ouvia vinis na casa de um casal de amigos. Aproveitei para ouvir coisas antigas que sobreviveram ao tsunami dos CDs nos anos noventa. Fat Old Sun, do Pink Floyd, no disco Atom Heart Mother; Clementina de Jesus entoando seus cantos sagrados; Electric Co., no primeiro do U2 (Boy), comprado em 1986 numa loja de discos em Mossoró, e até um do Jackson Five de 1969. Tudo velho e chiado como só o vinil sabe ser.

Aliás, essa nostalgia do vinil anda pegando muita gente. Parece ser uma senha quando alguém diz para você: “tenho uns vinis em casa, guardados no meu guarda-roupa, quer dar uma olhada?”. É como se o sujeito dissesse: “Sou do século passado, e você?”. O que mais me dá saudade no vinil é a possibilidade de ouvir os sons graves. Não sei quais as razões físicas disso, mas apenas o vinil consegue dar toda a amplidão dos sons graves. Nenhum baixo num CD soa como um baixo no vinil. Fomos tomados por sons metálicos, insuportavelmente cristalinos, terrivelmente puros, sons que soam absurdamente irreais. Reaprender a ouvir vinis é como retomar velhos hábitos, esquecidos num mundo cercado por uma tecnologia magnética e evanescente.

O problema é que, quando a gente tenta voltar ao vinil, mil e uma dificuldades aparecem no caminho. A mais terrível é ter que sair pelo Alecrim atrás de uma agulha de segunda mão para a vitrola velha guardada no baú. Hoje, as agulhas de vitrola são história.

Walter Benjamin se debruçou bastante nas reflexões sobre a história, e a imagem de um quadro de Paul Klee (Angelus Novus) o fez compreender essa tal história como um imenso vendaval que nos arrasta de costas rumo a um lugar estranho. Na interpretação de Benjamin, a figura do quadro olha para as ruínas do passado, em pânico, sendo arrastado pelo vento da história rumo ao desconhecido. Estamos de costas para o futuro, sempre olhando para o que sobrou do passado, sendo levados por uma força sem controle que nos empurra numa direção que necessariamente não escolhemos.

Se você guarda vinis numa caixa, pode ser o sinal, amigo leitor, de que você ainda participa dessa estranha sociedade secreta, dessa confraria oculta de remanescentes de um século que morreu e que no fundo, no fundo, desconfia que o futuro e o presente fazem parte de um mesmo tipo de engodo, belo e sinistro, tão largo e chato quanto o alcance do seu cartão de crédito. Mas não sejamos radicais. Bom mesmo é agora, depois que a indústria da música percebeu a armadilha em que caiu apostando na tecnologia e terminar de chutar o cachorro morto.

Parece que é justamente o altar da tecnologia, no novo templo da sociedade de informação, o local onde a indústria paga seu preço por ter deixado de lado tão rápido o velho vinil. É na rede que uma turba enlouquecida de internautas arrasta para o futuro (escuro e desconhecido) a indústria da música. Tudo isso numa batalha política poucas vezes vista, com avanços e retrocessos, conquistas e retaliações (na Alemanha já tem gente indo para cadeia por baixar mp3 sem pagar).

Uma disputa que opõe criatura e criador, liberdade e monopólio numa mesma singular ansiedade. Hoje, o grande armagedon que envolve o mundo da música é o do combate entre as grandes corporações com seus lucros megatrônicos e o internauta solitário que, subvertendo essa alegoria burguesa chamada de “direito autoral”, passeia num universo cheio de pequenos pacotes de música digital em arquivozinhos de áudio.

Enquanto a história rola e o combate não se define (porque, a rigor, o futuro nunca chega), eu fico do lado de cá, na minha batalha particular por uma agulha, uma mísera agulha para um 3 em 1 CCE, para poder ouvir em paz o meu chiado, o meu sonzinho abafado, as minhas maravilhas em bolachas pretas que guardam as ruínas de um mundo morto, destroçado pelo mesmo vento sem lei e sem rumo certo que arrasta o anjo de Klee para o vazio.

Um vazio que geralmente a gente chama de futuro, mas que, no fim das contas, bem que pode ser tediosamente parecido com o passado.

Publicado em 29/04/2014

Publicado em 29 de abril de 2014

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