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Narrativas e memórias: vestígios da história do Curso Normal no Colégio Estadual Trasilbo Filgueiras

Karyne Alves Baroldi

Professora de História do C. E. Trasilbo Filgueiras, no município de São Gonçalo; mestranda em Educação na FFP/UERJ

Este texto é a escrita inicial da pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ). A pesquisa centra-se na investigação das memórias e história narradas por moradores, alunos e alunas egressos, professores das duas primeiras turmas do Curso Normal ofertado em uma instituição escolar pública de ensino, o Colégio Estadual Trasilbo Filgueiras, localizado no bairro Jardim Catarina.

Esse bairro fica na periferia do município de São Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro; é considerado o maior loteamento da América Latina, devido ao grande número de domicílios.

Os dados populacionais do Censo Demográfico de 2010 realizado pelo IBGE apontam para 23.422 mil domicílios particulares permanentes, em uma área total equivalente a trinta e cinco complexos desportivos do Maracanã, com mais de 160 ruas e avenidas.

Em meados do século XX, as terras do vasto território gonçalense passaram a ser ocupadas por fábricas diversas, acelerando a ocupação habitacional, o êxodo rural, o crescimento demográfico, a industrialização e o desenvolvimento econômico.

Esse desenvolvimento econômico e urbano favoreceu uma aglomeração no sentido do município de Niterói e dos bairros de Alcântara e Neves, intensificado a partir da inauguração da ponte Presidente Costa e Silva, popularmente chamada de Ponte Rio-Niterói, em 1974.

De acordo com Dominguez (2012), a construção da Ponte Rio-Niterói e da Rodovia BR-101 nos anos 1980, interligando os municípios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí por uma única via, levou à intensificação na ocupação espacial e à transformação nas relações fundiárias e no mercado imobiliário da cidade, fazendo surgir os loteamentos.
Com o processo de industrialização, a migração das áreas rurais e o consequente declínio das lavouras, o município de São Gonçalo apresentou aumento demográfico. Para Mendes (2012, p. 18), além de possuir grandes áreas propícias à moradia, o município localizava-se relativamente próximo à capital federal. As áreas de fazendas e sítios de São Gonçalo acabaram-se tornando focos de loteamentos.

Assim, começam a surgir alguns loteamentos, resultado do desmembramento de algumas fazendas. Dentre estes loteamentos temos: Laranjal, Santa Luzia e o Jardim Catarina.


Figura 1: Fotografia do folheto de Venda do Loteamento do Jardim Catarina, em 1959

O folheto era propaganda do loteamento, uma forma de divulgação da venda dos lotes. O loteamento surgiu a partir da desintegração da antiga Fazenda Júlio Lima, ou antiga Fazenda do Laranjal.

Muitos motivos levavam as pessoas à compra dos lotes, dentre eles a promessa de tranquilidade, facilidade na condução e abastecimento de água. A Figura 1 reproduz um dos que eram distribuídos à população na década de 1960.

O lançamento imobiliário foi promovido com um verdadeiro espetáculo de propagandas, na intenção de impressionar e atrair compradores. As promessas contidas nas propagandas seduziam o olhar de quem buscava um investimento barato, em uma região próxima ao trabalho e de fácil acesso ao município vizinho de Niterói. Nos panfletos havia alusão a uma ampla infraestrutura para o futuro morador, a idéia de um local sem problemas de transporte, de comunicação, água, energia elétrica, saneamento básico, ruas iluminadas e pavimentadas (MENDES, 2012, p. 33).

Esse autor afirma que os grandes pomares foram loteados e vendidos em prestações aos compradores e que o abastecimento de água não veio nem com a Estação de Tratamento Imunana Laranjal, construída nas áreas do loteamento em 1954 com o objetivo de abastecer a cidade de Niterói. Com o surgimento dos loteamentos, São Gonçalo começou a viver um processo de periferização, com o surgimento de áreas depois transformadas em bairros periféricos, notadamente ocupados pela população mais pobre.

Segundo Tavares (2003), a periferização da cidade e do bairro apresenta aspectos relacionados à ausência de políticas públicas, podendo remeter à construção de novos espaços/tempos, lógicas diferenciadas de ocupação espacial e sobrevivência urbana.
O fenômeno de periferização característico do surgimento do bairro Jardim Catarina apresenta pontos comuns relacionados ao poder aquisitivo dos moradores do local, como afirma Tavares (2003):

As ruas irregulares e esburacadas do Jardim Catarina, que foram abertas sem nenhum plano prévio, são preenchidas por casas construídas por meio de um processo de bricolagem que confere à grande maioria um aspecto precário. Essas ruas compõem junto com outras marcas de ausência de serviços – falta de iluminação pública e asfalto, esgoto correndo a céu aberto – um cenário imediatamente identificável: trata-se do local de moradia das camadas mais pobres da população (TAVARES, 2003, p. 107).

Na aproximação e nas tensões entre as memórias e as histórias do vivido, acredito no movimento de passagem de uma memória pessoal à história da sociedade e da educação (NUNES, 2003, p. 21). Nesse sentido, a história, ao ser (com)partilhada, é perpetuada; ao ser narrada, é imortalizada, levando-nos a questionamentos e reflexões sobre presente e futuro.

Assim, pretendo que este texto colabore com a escrita da história de uma escola pública no Jardim Catarina, com a formação de professores no município de São Gonçalo e com a história da educação, pois, como aponta Benjamim (1996, p. 204), a narrativa não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de desenvolver-se.

O Curso Normal no Colégio Estadual Trasilbo Filgueiras: vestígios da história da educação gonçalense

O Colégio Estadual Trasilbo Filgueiras é a primeira escola pública do bairro; foi criado e denominado pelo Decreto Estadual nº 12.609, de 1966, Grupo Escolar Trasilbo Filgueiras. Como primeira escola do bairro, tem em seus arquivos escolares as histórias escolares de centenas de moradores do bairro e seus filhos, netos e bisnetos.

Em 1978, o Decreto nº 2.027 extingue os grupos escolares e cria as escolas e colégios estaduais; a referida escola ampliou a oferta do curso primário.

O grupo escolar recebeu esse nome em homenagem ao professor de história e pastor evangélico Trasilbo Filgueiras, sogro do ex-governador do Rio de Janeiro Geremias de Matos Fontes.

A partir de 1984 a instituição iniciou a oferta do ensino de 2º Grau, sob a égide da Lei nº 5.692/71, com viés de profissionalização, oferecendo os cursos de formação geral, formação de professores e técnico em contabilidade.

O Curso Normal passou a ser visto como uma “habilitação especifica para o magistério” (TANURI, 2000); foi estendido de 1971 a 1996, equiparado aos demais cursos técnicos oferecidos, configurando um quadro de precariedade preocupante. A preparação para o trabalho norteava uma proposta educacional que entendia ser necessário educar para o exercício do trabalho, notadamente voltado para acesso imediato ao mercado de trabalho às classes populares.

Assim, ao longo das décadas seguintes, a descaracterização do Curso Normal, iniciado no regime militar, constituiu de alguma forma o quadro de dispersão no que se refere à formação de professores no Brasil. De acordo com Tanuri, a “já tradicional Escola Normal perdia o status de ‘escola’ e, mesmo, de ‘curso’, diluindo-se numa das muitas habilitações profissionais do ensino de 2º Grau, a chamada Habilitação Especifica para o Magistério (HEM)” (2000, p. 80).

O Art. 30 da Lei nº 5.692/71 evidencia a existência de dois esquemas relativos à formação docente: o primeiro, correspondente à formação dada por cursos regulares; o segundo referia-se à formação regular acrescida de estudos adicionais, pressupondo a existência de cinco níveis de formação de professores, a saber:

1) A formação de nível de 2ºgrau, destinada a formar o professor polivalente das quatro primeiras séries do 1º grau;
2) formação de nível de 2º grau com 1 ano de estudos adicionais, para formar o professor apto a lecionar até a 6ª série do 1º grau;
3) formação superior em licenciatura curta, destinada a preparar o professor para uma área de estudos e a torná-lo apto a lecionar em todo o 1º grau;
4) formação em licenciatura curta mais estudos adicionais, preparando o professor de uma área de estudos com alguma especialização em uma disciplina dessa área, apto a lecionar até a 2ª série do 2º grau;
5) formação em nível superior em licenciatura plena, destinada a preparar o professor de disciplina, apto a lecionar até a última série do 2º grau (OLIVEIRA, 2002).

Dessa forma, a reorganização do aparelho escolar garantiu e prolongou a hegemonia da sociedade política e “uma mão de obra com alguma educação e treinamento, bastante produtiva e, ao mesmo tempo, barata" (ROMANELLI, 1983, p. 234). No entanto, a sociedade civil, por seus diferentes grupos constitutivos, começou a reivindicar uma mudança política, marcando a derrocada do regime militar e sua política de exclusão.

Nessa conjuntura social e política foi criado o Curso Normal do Colégio Estadual Trasilbo Filgueiras, em uma tônica profissionalizante; é ofertado há três décadas e com uma história no campo da formação docente a ser compartilhada e problematizada.

O recorte temporal da pesquisa situa-se nos anos iniciais da oferta na instituição escolar, 1984 e 1985. A investigação é feita com base em fontes documentais presentes nos arquivos escolares da instituição (atas de conselhos de classe, livro de matricula, fichas individuais), na legislação educacional, nos exemplares de 1960 a 1980 do primeiro jornal do município de São Gonçalo, O São Gonçalo, existente há mais de oitenta anos, e nas narrativas das memórias escolares de alunas e alunos egressos, professores, diretores, moradores do bairro e atores da educação local, denominados sujeitos da pesquisa.

Como questões da pesquisa, eu formulo as seguintes interrogações: quais os vestígios da história do Curso Normal no município de São Gonçalo e do Colégio Estadual Trasilbo Filgueiras? Quais as memórias dos alunos e das alunas e professores das duas primeiras turmas do Curso Normal na instituição escolar?

Compreendo a relação memória e história a partir de Walter Benjamim (1996), Libânia Xavier (2007) e Clarice Nunes (2003), numa perspectiva “do passado sempre presente” (NUNES, 2003, p. 7) e do “tempo passado vivido na rememoração” (BENJAMIN, 1996, p. 232), solto das amarras do tempo cronológico (cronos), mas no entrelaçamento de tempos e espaços diversos, num movimento de visitação e rememoração.

O passado é rememoradonão como um refúgio, mas como uma fonte, um manancial de razões para lutar pelo presente e pelo futuro. Partindo das indagações do presente, o passado é trazido em uma busca atenciosa com a intenção de construir rumos hoje e amanhã. A memória assim entendida deixa de ser apenas o alimento para a escrita da história e passa a ser geradora do hoje, do agir sobre o presente.

Nesse sentido, a articulação de múltiplas memórias pode nos levar à reflexão sobre seus usos no movimento da história, possibilitando a “passagem de uma memória pessoal à história da sociedade e da educação” (NUNES, 2003, p. 21), refazendo uma parte do vivido com um olhar diferenciado sobre a história produzida, partilhada consigo e com o outro, produzindo assim uma possibilidade do passado iluminar o presente.

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, “tal como ela relampeja no momento de um perigo”(BENJAMIN, 1996, p. 224). O passado já foi, mas nas memórias temos fragmentos do vivido, das experiências vividas que, ao serem narradas, parecem reviver em nossas vozes.

Como referencial teórico, utilizo a leituras de autores como Figueirêdo, Cordeiro (2003) e Mendes (2012), para refletir sobre a história do município de São Gonçalo e do bairro Jardim Catarina; Benjamin (1996), Xavier (2007) e Nunes (2003) para discutir memória, história e narrativa; e Araujo (2009), Morais (2006) e Tavares (2003) para a problematização da formação de professores no município de São Gonçalo.

A pesquisa justifica-se pela necessidade da reflexão, rememoração, problematização e valorização da memória e da trajetória histórica da formação de professores em São Gonçalo, com vistas ao fortalecimento das instituições públicas que a desenvolvem a partir da articulação entre escola e universidade.


Figura 2: Imagem do cartaz da escola – Ano: 2013
Fonte: Arquivo da pesquisa

Assim, no passado se veem as inúmeras facetas da história em sua dimensão multidisciplinar, e a escola funciona como espaço de lembranças, de significados e sentidos. Sobre a memória, Nunes (2003, p. 22) afirma que “as trajetórias escolares e as memórias formam os lugares privilegiados de construção de entendimento, de descobertas de laços entre a memória pessoal e social”.

Referencias

ARAÚJO, M. S.; ROCHA, Susan Caldeira da. Na reconstrução da memória escolar: pistas para a formação docente. VI Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, 2006, Uberlândia. Percursos e desafios da pesquisa e do ensino de história da educação, 2006, p. 2.053-2.063.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996.

CORDEIRO, Denise. Juventude nas sombras. Rio de Janeiro. Lamparina, 2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

MENDES, Pitter. E assim surge... Jardim Catarina. São Gonçalo: Ponto de Cultura, 2012.

MORAIS, Jacqueline de Fátima dos Santos. Percursos de uma experiência de Formação continuada: narrativas e acontecimentos. 2006. 310f. Tese (doutorado em Educação). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.

NUNES, Clarice. O passado sempre presente. São Paulo: Cortez, 1992.

NUNES, Clarice. Memória e história da educação: entre práticas e representações. In: LEAL, Maria Cristina; PIMENTEL, Marília Araújo Lima. História e memória da escola nova. São Paulo: Loyola, 2003.

OLIVEIRA, Daniela Motta de. A formação de professores na Lei nº 9.394/96: um estudo comparativo das diretrizes estabelecidas para a formação de professores de Educação Infantil e das séries iniciais do Ensino Fundamental nos anos 70 e nos anos 1990. Disponível em: http://www.ichs.ufop.br/conifes/anais/EDU/edu1603.htm. Acesso em 27 de abril de 2014.

O SÃO GONÇALO. 1º Centenário: 1890-1990. São Gonçalo: Edinal, ano III, nº 24, jun. 1990, Rio de Janeiro.

ROMANELLI, Otaiza de Oliveira. História da Educação no Brasil (1930/1973). Petrópolis: Vozes, 1983.

TAVARES, Maria Tereza Goudard. Os pequenos e a cidade: o papel da escola na construção de uma alfabetização cidadã. Tese (doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2003.

XAVIER, Libânia Nacif. Lugares de memória da educação e da escola no Brasil. In: MAURICIO, Lucia Velloso (org.). Vozes da educação. Memórias, histórias e formação de professores. Rio de Janeiro: DP&A/FAPERJ, 2007.

Publicado em 20 de maio de 2014

Publicado em 20 de maio de 2014

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