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O colecionador de borboletas
Pablo Capistrano
Escritor e professor de Filosofia no IFRN
Antes de qualquer coisa, Platão era um matemático. Uma das suas influências mais marcantes foi o pitagorismo, uma doutrina filosófica muito popular na Grécia antiga, que admitia que a realidade é composta por números e formas geométricas. Como todo bom matemático, Platão era muito habilidoso com o raciocínio abstrato e com a imaginação. Por isso a força de seu pensamento está na profundidade e na articulação lógica de seus diálogos. Platão foi muito bom em pensar aquilo que nós não conseguimos ver: o que está oculto por trás dos nossos sentidos. O que só pode ser compreendido com o auxilio do nosso pensamento, da nossa razão, com as ferramentas matemáticas e lógicas de que ela dispõe.
Por isso, o conhecimento, para Platão, estava além do horizonte. Distante do alcance do olho, em um mundo oculto à nossa observação cotidiana. Se você quiser entender isso, basta alugar o primeiro filme da trilogia Mátrix, dos irmãos Wachowski, e prestar bem atenção na cena em que Neo (vivido por Keanu Reaves) se ilumina e se torna uma espécie de Buda Digital. Ele percebe o código do programa de computador que faz a realidade virtual em que aquele grupo de humanos está preso. Por trás dos prédios, das árvores, das roupas das pessoas, dos bancos de praça, dos sanduíches envenenados dos fast foods, dos pássaros cantando no teto dos shoppings centers; retirando a película na qual os personagens da Mátrix estão confinados existe um código de zero e um que compõe o programa de computador que monta aquela realidade. Neo (no filme) se ilumina quando consegue “enxergar” esse código.
Foi justamente essa doutrina que o velho sábio de Atenas, Platão, filho de seu Ariston e de dona Perictione, ensinava para os seus alunos na Academia. Não, não era um centro de fitness. Na Academia de Platão (esse era o nome da sua escola) se malhava o cérebro. Depois da decepção com o mundo da política e da tentativa frustrada de educar o futuro rei de Siracusa seguindo o modelo pensado na República, Platão acabou se isolando em sua escola e dedicando o resto de sua vida a formar seus discípulos. Quis o destino que o seu mais brilhante aluno fosse justamente aquele que iria construir uma doutrina própria que por mais de dois mil anos rivalizou com o pensamento de Platão.
Aristóteles não era grego; era macedônio. Vinha de uma região montanhosa no norte, uma área rural, de pastores e plantadores de oliveira, que era considerada por muitos em Atenas como uma terra de agricultores bárbaros e ignorantes. Ninguém iria imaginar, naquele tempo, nas ruas da cosmopolita e esnobe Atenas, que a maior e mente da Antiguidade iria surgir de uma família da Macedônia.
È como se o primeiro ganhador brasileiro do Prêmio Nobel de Física, para a ansiedade dos nordestinófobos do Sudeste, nascesse em Patu (alto oeste potiguar) e resolvesse se candidatar a reitor na USP. Pois então. Aristóteles representou para o universo grego o efeito surpresa. Filho do médico particular de Felipe II (pai de Alexandre, o grande), conta a lenda que Aristóteles estava estudando para seguir os passos do pai até que, aos dezoito anos, leu uma cópia de um dos diálogos de Platão e resolveu viajar até Atenas para se matricular na escola do mestre e se tornar filósofo.
Como todo bom filho de médico, desde cedo Aristóteles teve que se educar na arte da observação. Perceber o mundo, observar, analisar os detalhes, catalogar, memorizar e classificar são elementos fundamentais no desenvolvimento do raciocínio de um médico. Mais do que informação literária sobre doenças e do que um catalogo de nomes de músculos e ossos, um bom médico tem que desenvolver uma sensibilidade apurada para ver o mundo ao seu redor. Tem que amar observar os detalhes que a natureza lhe apresenta, tem que ser um exímio colecionador de borboletas.
Ao contrário de Platão, afeito a viagens abstratas pelo mundo das ideias, Aristóteles se mostrou um pensador bem mais “pé no chão”. Sua obra intelectual é uma das mais vastas do mundo antigo, e ele, que fundou sua própria escola (O Liceu), acabou sendo considerado por muitos o pai da ciência ocidental. Se existe, nesse mundo de meu Deus, nessa vida sem porteira, nessa pista de pouso e decolagem que é o mundo, alguém que se adéqua ao apelido antigo de sábio, esse cara é Aristóteles. Escreveu sobre Política, Biologia, Física, Geologia, Direito, Poesia, Retórica, Lógica, Psicologia, Metafísica. Quando Alexandre, o Grande, viajou para o Oriente com seus generais, levou também muitos alunos de Aristóteles, os primeiros grandes pesquisadores de campo da História Ocidental. Gente que colecionava coisas e mandava para o mestre no Liceu. Espécies de animais, pedras, plantas, textos jurídicos, poemas, descrições detalhadas da geografia e do clima, dos hábitos e das culturas que Alexandre abria para os gregos. Foram esses abnegados pesquisadores que produziram a primeira grande “Enciclopédia” da história ocidental.
A partir desses dados, Aristóteles, nosso colecionador de Borboletas, firmou as bases para quase todas as ciências que conhecemos hoje, da Biologia à Ciência Política; quase tudo que você aprende no Ensino Médio pode ser considerado herança do esforço inaugural do filósofo macedônio em sair do mundo abstrato das ideias matemáticas e pensar o mundo das coisas. Se Platão busca com a mente entender o que não se pode ver; Aristóteles busca, no visível, as chaves para se compreender o mundo em que vivemos.
Publicado em 27 de maio de 2014
Publicado em 27 de maio de 2014
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