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Sufoco!
Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Sente-se um ar carregado, uma espécie de estresse coletivo. Algo não muito bem definido sufoca a gente, criando mal-estar e desencontro. Pensei que isso fosse específico do Rio de Janeiro, onde o tal “choque de ordem” do prefeito Paes por enquanto é sentido como uma grande desordem na coisa mais básica de uma grande cidade: a mobilidade. É uma verdadeira dor de cabeça ir ao trabalho e voltar para casa. Andar na Avenida Rio Branco durante o dia virou uma aventura: há ônibus nos dois sentidos da avenida, mas não tem para todos os lugares da cidade.
Tenho colegas no Ibase que passaram a se deslocar quilômetros para chegar ao trabalho ou a tomar a sua condução de volta sem saber o que vão encontrar e nem quando chegarão ao destino. Afinal, as vias principais ficaram restritas e sempre engarrafadas na hora de pico. Trens, então, são um desastre. O descalabro da Supervia é notícia todo dia; ali, viajar é um ponto além do sufoco. No metrô, na linha mais importante e única para a Zona Norte, as pessoas viajam espremidas. E o governo ainda achou prioritário gastar uma fortuna para estender a linha de Ipanema à Barra, ao invés de investir esses recursos para transformar a Supervia em metrô de superfície, servindo milhões de pessoas. Enfim, no detalhe dos transportes, o Rio de Janeiro sufoca a cidadania de maneira a se temer pela asfixia completa. Aliás, foi isso que aconteceu na greve dos rodoviários.
A mobilidade no Rio, porém, está longe de ser a única causa do sufoco. Nem é só no Rio que as pessoas sentem que as coisas estão fora do lugar e a vida ficou um tanto mais penosa. A mobilidade é uma questão nacional, especialmente nas grandes cidades e suas periferias. A segurança pública volta a perturbar em todos os sentidos. As polícias militares, concebidas para reprimir e não para garantir cidadania, são parte do problema; aliás, são uma herança da ditadura, parte do Estado aonde nossa democracia ainda não chegou. Pior que nossas polícias é a crescente intolerância no seio da própria sociedade, com o aumento criminoso e inaceitável de atos de justiça pelas próprias mãos. Dá medo. E medo é uma espécie de câncer para a sociabilidade e o convívio, tão fundamentais para a cidadania e a democracia.
Agora, com a Copa, até as Forças Armadas entram para garantir segurança, e no lugar de segurança trazem um sufoco a mais. A “ocupação” das cidades-sede dos jogos visa a dar tranquilidade aos turistas e ao negócio da FIFA – não exatamente dar segurança à cidadania de todas e todos, tanto que as FFAA voltarão aos quartéis ao fim dos jogos.
As mazelas do cotidiano são muitas, e seria enfadonho ficar aqui lembrando todas. Há, porém, algo mais sistêmico, estrutural, que está por trás de tudo e alimenta o sufoco. Aparece como distanciamento, como algo de outro mundo: é o sistema político, especialmente nossa representação no Congresso, nas assembleias, nas câmaras municipais, nos partidos, com sua capacidade de nada ver e perceber. Há, sim, o crescimento de um perigoso descrédito na política e nos políticos em geral. Interesses particulares, disputas de nacos do poder para ter acesso a privilégios, subordinação do interesse público e cidadão a negociatas escusas, desvios de recursos...
Enfim, a política cheira a coisa suja, que não dá para acreditar e nem suportar. Na prática, nosso sistema político não é a nobre atividade de disputa dos sentidos e dos projetos de sociedade que precisamos, dos caminhos para tanto, das políticas necessárias e das melhores normas e leis que garantam direitos e cidadania de forma universal. A pequenez que a política real exala, além de sufocante, pode nos levar a matar a própria democracia.
Nosso sufocante cotidiano não parece ser do mesmo mundo dos políticos. Eles estão lá e nós cá, com um fosso em crescimento no meio. A vibrante mobilização pela democracia de trinta anos atrás, os grandes movimentos e as grandes disputas, a nova Constituição, as eleições diretas para presidente, novas políticas, tudo vem perdendo vigor e parece passado distante. Entramos numa democracia de baixa intensidade, com políticos insensíveis aos clamores da cidadania nas ruas, praças e comunidades deste nosso querido país. Até quando vamos suportar isso?
Estamos em ano eleitoral. Não vejo sinais de que algo vai acontecer até as eleições, despertando a vontade de participar e decidir a parada – além, é claro, de nos tirar o sufoco das costas. Não vejo sinais de que projetos estão emergindo para mobilizar o imaginário e dar conta do sentimento profundo de frustrações que sufocam. Os partidos, os políticos e a própria política estão longe demais. Tal estado de coisas não é bom para a cidadania e a democracia. A proposta de reforma política é algo fora do mundo oficial. Todos estão mais preocupados em como financiar as campanhas, pois a política que está aí virou disputa de recursos das grandes empresas, especialmente as empreiteiras. Estas (e não a cidadania) são as grandes votantes, por mais lamentável que isso possa ser para a democracia. As propostas de reforma pipocam entre alguns setores da sociedade civil, mas não se têm revelado capazes de mostrar que a política institucional nos afasta do caminho da cidadania e da democracia, motivando e angariando o apoio necessário para a mudança – tão necessária, no entanto.
Bem, antes da eleição teremos a Copa do Mundo. Mais um sufoco? Ou possibilidade de levantar a nossa autoestima? O certo é que não é a Copa e seu resultado que vão ser a ponte para reaproximar a política do cotidiano da cidadania. Precisamos voltar a construir trincheiras cidadãs para reinventar a democracia.
Como fazer isso extraindo (como nos lembra Gramsci) o bom senso do senso difuso de insatisfações reinante nos poros da sociedade e transformando-o numa nova grande onda de democratização? Este me parece o grande desafio para a democracia no Brasil neste momento. Saberemos enfrentá-lo?
Publicado em 27 de maio de 2014
Publicado em 27 de maio de 2014
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