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A ALMA ENCANTADORA DE JOÃO DO RIO

Rodrigo da Costa Araujo

Professor, mestre em Ciência da Arte e doutorando em Literatura Comparada (UFF)

João do Rio & Baudelaire: pintores da vida moderna

Esta leitura faz uma abordagem da poética de João do Rio pelo viés da imagem e de suas relações com a escrita. Essas aproximações, de certa forma, marcam pela sua efervescência, sabor e insondáveis paisagens da cidade carioca que o escritor nutriu, abrigou e divulgou e mais tarde tornaram-se verdadeiras representações literárias dessa mesma cidade – feito emblemas, insígnias, referências obrigatórias de um tempo, um ambiente e um espaço que o próprio João do Rio ajudou a eternizar em sua escrita e na sua obra.

No célebre ensaio O pintor da vida moderna, o francês Charles Baudelaire (1812-1867) caracteriza, como muitos sabem, a personagem literária do flâneur como aristocrata que deambula pela paisagem urbana ou como apaixonado que encontra lugar no coração da multidão, cercado no fluxo e refluxo do movimento, isto é, na própria contingência da modernidade. A emergência do flâneur traduz, então, o espírito de mobilidade e do olhar com a modernidade.

Essa postura, também presente na poética de João Paulo Aberto (1881-1921) ou simplesmente João do Rio, remete à importância da discussão, de além da noção de espaço, também à experiência de visibilidade explorada na representação literária. Nesse sentido, é possível pensar a representação realista nas narrativas do final do século XIX e início do século XX, prolongando-se ainda no século XXI e construindo assim o que mais tarde nomeariam sociedade do olhar, certa experiência que vai sendo retomada e, ao mesmo tempo, desfeita pela ficção atual.

Com essa dinâmica ou mesmo com esse congestionamento de imagens na paisagem urbana – retomadas e reescritas das palavras de João do Rio –, a ficção brasileira contemporânea marca e registra novas maneiras de sentir e pensar. É, portanto, com esse raciocínio que evidenciamos um regime de imagens presentes na narrativa do cronista carioca, além ressaltar a importância do esteticismo finissecular para pensar o jogo da visibilidade instaurado no encantamento da rua.

O deleite e a exploração dessas singularidades definem-se no jogo ambíguo e contraditório que reivindicam e encenam, na busca incessante de um sentido que se decide como termo de fundação: o olhar. Com essas premissas, resta entrar na dinâmica da história e na ficção de João do Rio, tomando antecipadamente, já na entrada, o estilo apontado como art nouveau literário e seguindo as trilhas da percepção visual e da linguagem para retomar os fios que unem a escrita perceptiva à atitude sensível; o olhar à linguagem ou ao registro traduzido em crônicas.

Nesse processo, girante como o olhar do escritor decadentista, suas miradas parecem querer avistar cada vez mais longe, alcançando discussões além de seu tempo e de seu texto. Amante da rua e do gosto de circular por elas, de apreciá-las e de fazer o registro dessas andanças, João do Rio captura, no giro noturno, os signos da cidade e se encanta com o seu próprio olhar siderado nesse jogo especular.

Reflexo do registro e do olhar, sua escritura manipula o jogo e a beleza do ornamento, rasurando e ao mesmo tempo reforçando o rebuscamento de uma escrita que podemos chamar de art nouveau. Desse casamento da arquitetura e da linguagem ficam estabelecidos os primeiros flertes da literatura com a modernização no Brasil, do acabamento detalhista do conto ou da crônica com o olhar do leitor, do registro que manipula a crise de representação narrativa com algumas atribuições da escritura na modernidade.

Desses mecanismos, todos eles variados e tentando captar a cena ou o instante, não fica de fora a associação da narrativa com a noção de embriaguez sinestésica, “fazendo a requisição do truque como estratégia de desmontagem que escavaria a sustentação do literário, estabelecendo uma incursão problemática da escrita conferida em termos do fantasmático” como afirma o professor Luiz Edmundo Bouças.

De qualquer forma, entre o olho e a folha, entre a mão e o gesto de escrever, entre ver, ler e registrar exibem-se a sustentação do artifício, a maquiagem, o gosto pelo disfarce, a atitude camaleônica, uma retórica transgressora que procura cifrar a identidade comum entre o cronista e seu objeto de desejo: a rua. Fascinados com tanto detalhe, entre o instantâneo e o deslumbre dos narradores, o leitor se perguntará, também, atônito: por onde começar a olhar? Porém essas descobertas, passíveis de todos os sentidos – e sem esperar uma resposta única –, exigirão um olhar arregalado.

João do Rio aos olhos do poeta Lêdo Ivo

Esteta e iconoclasta acima de tudo, João do Rio, pseudônimo literário de João Barreto, ou mesmo João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, nasceu no Rio de Janeiro – cidade que escolheu para, também, nomeá-lo, por isso imortalizando-a – em 5 de agosto de 1881 e faleceu na mesma cidade em 23 de junho de 1921, dentro de um táxi na atual Rua Bento Lisboa, no Catete. Além de escritor, era jornalista, tradutor e teatrólogo – um amante incondicional das artes.

A sua breve biografia - João do Rio (2009), de Lêdo Ivo – traz informações básicas, porém significativas sobre o autor de A alma encantadora das ruas. O livro oferece uma brevíssima apresentação dos ocupantes das 40 cadeiras da ABL ao longo da história, bem como sobre os patronos da instituição.

O brevíssimo livro resume, elegantemente, nas palavras do poeta, romancista e ensaísta Lêdo Ivo, a vida e trajetória do escritor dândi que, além de fazer da sua própria cidade seu nome, soube como ninguém imortalizar sua arte a partir da memória dela, se por memória entendemos a zona obscura em torno do passado e do futuro. A breve apresentação do escritor pode ser descrita como um filme da vida de João do Rio em seis tomadas, capítulos ou rubricas, intitulados: I. “Rio civiliza-se”, II. “Uma Questão de estilo”, III. “Tiros na Avenida”, IV. “Noite equívoca”, V. “O homem que viaja”, VI. “Passos na praça deserta”.


Figura 1: João do Rio

A vida/obra incluída nessas rubricas assume espécie de guia, retratos atravessados pelo frêmito do art nouveau, momentos que descrevem, elegantemente, fluxos, pistas – uma vida que se mistura com a obra, feita de textos. Aqui estão, numa síntese feita em recortes, num livro de apresentações, os elementos essenciais com que se ergueu, ao longo do tempo, a poética de João do Rio. Para Lêdo Ivo, o cronista que imortalizou a cidade do Rio de Janeiro tinha “uma prosa imagística, de vivacidade e modulação incomparáveis, que desfilam a frivolidade, a banalidade e a hipocrisia de uma sociedade cosmética e desespiritualizada”, ou mais ainda: “ele escrevia como se pintasse. Ou fotografasse. Mestre das entressombras, o impressionista João do Rio possuía também uma palheta expressionista habilitada para a produção de paisagens e cenas claras e cruas” (p.12).

O livro não pretende “canonizar” o autor de As religiões do Rio. Ele se canonizou à sua maneira, misturando-se com uma audácia e uma transgressão incomuns a muitos escritores que exaltaram a cultura carioca. Soube fazer isso com maestria e originalidade indiscutíveis, já longe ou sempre aos olhos dos ideais estéticos e da influência finissecular de Oscar Wilde, assumindo um estilo inconfundível e veloz que poderíamos reconhecer no seu famoso livro Cinematógrafos, de 1909. Nele estão, como num caleidoscópio de singelos fragmentos, a cidade e as cenas cariocas que brilham nas mãos dos seus ambíguos narradores e personagens.

Se a cidade, aos olhos do poeta-dândifrancês, é a Paris do século XIX, para João do Rio, no século XX, essa leitura se multiplica, se fabrica e se condensa vertiginosamente, na modernidade, como lugar teórico e espaço privilegiado da experiência – objeto semiológico de paixão. Ao dirigir sua atenção sobre essa efervescência da cidade carioca e dos signos, sobre o palimpsesto e sobre a linguagem eminentemente artística, a cidade-texto, nesta pequena apresentação, configura-se como lugar de potência e inscrição, como rasura e significante cuja ilegibilidade seduz e desafia o olhar do leitor/espectador.

Com toda a cautela de quem não quer imprimir quaisquer marcas definitivas à escrita andante e ainda enrijecer as móbiles que permitem ao escritor a vida, Lêdo Ivo soube ver o célebre escritor carioca como uma estrutura estelar repleta de desvãos que escondem as faces perdidas e na qual os signos equivalentes estão soltos para inserir outros rostos, que tantos pseudônimos (Joe, Paulo José, José Coelho, Caran d’Ache, Claude, José Antonio José, Máscara Negra, Godofredo de Alencar, Barão de Belfort, entre outros tantos disfarces) podem também consentir mentiras e verdades, num jogo de mostrar-se e ocultar-se, algo assim como uma cintilação ou mesmo um flâneur baudelairiano.

Esse leque de rubricas da trajetória literária do escritor proposto por Lêdo Ivo configura a vida e estilo de um dândiiconoclasta. Da literatura ao jornalismo, da leitura da cidade às ruas, do cinema à explosão de imagens na página/tela, à textura da cor, ao andar pelas esquinas e noites, à experimentação do insólito, enfim, não faltará ler a vida pela obra, pelos fragmentos à deriva e relações interartes ou pelas rebeldias na escritura de um esteta.

Um escritor iconoclasta

Cinematógrafo (Crônicas Cariocas), republicado em 2009, pode ser lido semelhantemente a certa filmografia da vida carioca, filme ou fragmentos cinematográficos que colocam em ação habilidades de leitura além das que são empregadas pelo leitor do texto impresso ou, por outro lado, habilidades que, empregadas pelo receptor de imagens ou espectador de cinema, transformam sensivelmente a recepção do texto.

Escrevendo como numa tela, por meio de movimentos e efeitos visuais, João do Rio sugeriu analogias entre cinema e literatura em que tanto o escritor-cronista como o leitor perspicaz vão unindo, de modo sequencial ou não, fragmentos de informação de naturezas diversas, criando e experimentando, na sua interação com o potencial dialógico do cinema, um tipo de comunicação que fixa o instante, o efêmero, o cotidiano veloz e fugidio diante do olhar.

A visualidade atrelada aos significantes na escrita, nesse sentido, imita os saltos receptivos, o encanto com as tecnologias e as mudanças causadas na escrita e, no gesto do leitor que busca estabelecer certa ordem textual com os fragmentos, encontrar nas páginas e frases imagens descritivas que remetem às cenas ou flashes do momento. As crônicas de Cinematógrafo, nesse caso, sugerem uma ordenação associativa com a vida carioca de 1908, período em que foram escritas, e com o surgimento do cinema. No posfácio do livro, feito crédito ou nota para o leitor – intitulado Ao leitor [p.271] –, João do Rio, pela voz do narrador e associando a leitura das crônicas com as fitas diz: “E tu leste, e tu viste tantas fitas.../Se gostaste de alguma, fica sabendo que foram todas apanhadas ao natural e que mais não são senão os fatos de um ano, as ideias de um ano, os comentários de um ano – o de 1908, apanhados por um aparelho fantasia, que nem sempre apanhou o bom para poder sorrir à vontade e que nunca chegou ao muito mau para não chorar. A sabedoria está no meio-termo da emoção”.

Esse modo de comunicação, marcadamente novo, inaugura habilidades perceptivas e sensórias que, de certa forma, guiam os comandos do escritor e do leitor em relação à escrita. De fato, o cronista e autor de A alma encantadora das ruas (2007) encontrou na fotografia e no cinema o que lhe era mais contemporâneo: a velocidade da reprodução e a substituição incessante de imagens, pois as cenas cariocas fazem parte de uma cultura organizada sob o signo do choque, de indivíduos que se acostumaram com os desencontros da metrópole que imitava Paris.

As crônicas de Cinematógrafo são, assim, espécies de anúncios e sínteses das construções de seu tempo: imagens que fascinam e prendem a visão para, logo em seguida, morrer prematuramente ao serem substituídas por outras imagens ou registros. A urgência [ou a “Pressa de acabar”] da escrita traduz na escritura de Paulo Barreto a dinâmica das transformações: “E agora, com a transformação das ruas, a cidade escancarava de súbito a indignidade e o vício, mostrava todas as furnas do caftismo e nós víamos ao desejo do luxo, ao contato com o horror, uma flora precoce de pequenas depravadas, galgando o tablado com uma ânsia de bacanal e piscando de lá o olho. [...] Era ou não a civilização, ou não o Rio reflexo de Paris, era ou não a cidade igual a todas as outras, com as mesmas necessidades?” (RIO, 2009, p. 119).

No Rio de Janeiro da metrópole-modelo que imitava a cultura parisiense, das lanternas a gás, da eletricidade e do néon, na cidade-vitrina, com seus boulevards, galerias, praças, cafés, museus e teatros, na cidade-passarela que, aos olhos do dândi, estetiza as aparências e as paisagens, a identidade do carioca moderno é fixada numa multiplicidade infinita de imagens e registros, tipos e perfis urbanos.

O prefácio da obra, paratexto atraente e importantíssimo, funciona como porta de entrada do livro e tópico esclarecedor para nortear a recepção do leitor. Nele o cronista carioca esclarece seu encantamento pelo cinematográfico: “O cinematógrafo é bem moderno e bem d’agora. [...] Se a vida é um cinematógrafo colossal, cada homem tem no crânio um cinematógrafo de que o operador é a imaginação. Basta fechar os olhos e as fitas correm no cortical com uma velocidade inacreditável. Tudo quanto o ser humano realizou não passa de uma reprodução ampliada da sua própria máquina e das necessidades instintivas dessa máquina. O cinematógrafo é uma delas. [...] A crônica evoluiu para a cinematografia” (RIO, 2009, p. 4-5).

A atitude alucinógena confessada nesse elegante prefácio é resultado do excesso de estímulos que o cinema produz e que só pode encontrar sua identidade – no flâneur – naquele que passeia pela cidade com o olhar contemplativo, ondulante e aberto à vertigem das alteridades. E, por isso mesmo, critica os que não conjugam dessa nova técnica: “Alguns estetas de atrasada percepção desdenham do cinematógrafo. Esses estetas são quase sempre velhos críticos anquilosados cuja vida se passou a notar defeitos nos que sabem agir e viver. Nenhum desses homens, graves cidadãos, compreende a superioridade do aliviante progresso d’arte” (RIO, 2009, p. 4).

Na escritura de João do Rio é perceptível que o cinematógrafo possibilitou transformações na forma como se percebe e registra a cidade, incorporando novas técnicas na obra de arte e sugerindo, automaticamente, além de outra forma de lê-la, um livro cinematográfico. Seus narradores reforçam, insistentemente, tanto pelos argumentos como pela repetição imagética, que o leitor parece estar diante de um livro ou mesmo filme carioca, como nas telas de cinema.

A linguagem utilizada pelo escritor-dândi acompanha mecanismos que incorporam, velozmente, as relações entre palavra e imagem, rapidez e descrições. Tendo isso em vista, sua crônica não se mantém numa visão purista da leitura restrita apenas à decifração de letras e mensagens. Do mesmo modo que o contexto semiótico do código escrito foi historicamente modificado, com o seu gesto cinéfilo de narrar –, mesclando-se com outros processos de signos, com outros suportes e circunstâncias distintas do texto impresso, o ato de ler (ver), segundo o cronista, foi também se expandindo para outras abordagens. Nesse contexto semiótico, portanto, também a pontuação, a sintaxe mais estendida, o vocabulário, o tempo verbal se ajustaram e conduziram o leitor para cenas /flashes com direito a montagens, truques, cortes, rapidez e outras técnicas cinematográficas.

Essa poética do cinematógrafo, que perpassa todo o livro e a obra do escritor decadentista como um todo, se encerra na crônica chave A pressa de acabar [RIO, 2009, p. 266] como metonímia ampla e significativa que resume Cinematógrafo – crônicas cariocas feito um filme em cenas, cortes e recortes que, num conjunto, retratam o dia a dia do Rio de Janeiro no auge da modernização. Por isso mesmo, o narrador, sabiamente, comenta: “O homem mesmo, no momento atual, num futuro infelizmente remoto, caso a Terra não tenha grande pressa de acabar e seja levada na cauda de um cometa antes de esfriar completamente – o homem mesmo será classificado, afirmo eu já com pressa, como o Homus cinematographicus. Nós somos uma delirante sucessão de fitas cinematográficas. Em meia hora de sessão assustadora cujo título geral é: Precisamos acabar depressa” [RIO, 2009, p. 268].

Considerações finais: flanando com João do Rio

O cinematógrapho apossa-se da ciência, do teatro, da arte, da religião, junta verdades positivas e ilusões para crer o bem maravilhoso da mentira e fixa de novo a multidão, fixa-a sugestionada, fixa-a pelo espetáculo, fixa-a pela recordação, dá-lhe qualidades de visão retrospectiva, fala-a ver, e crê, celestemente removida ao momento da tortura, ao lado do Deus-Homem, humano na tela mais ainda irreal porque apenas sombra na luz do écran (RIO, 1912, p. 358).

Sob o comando da visão, a produção literária de João do Rio, influenciada pelas novas técnicas e por novas formas de registro, abriu-se para o seu tempo, colhendo observações e detalhes do olho, traduzindo-os vertiginosamente em palavras e imagens. Atento a isso e travestido de flâneur, o escritor de fin-de-siècle, com vários pseudônimos, e, portanto, dono de uma escritura também travestida – percorre ruas, becos, ladeiras, atalhos e vãos, desde a periferia às elegantes avenidas cariocas, à procura da matéria-prima de que é constituída sua obra: o universo urbano da então capital brasileira no contexto de efervescência da Belle Époque. Sob o prisma, atestadamente estético e ao mesmo tempo atento e despretensioso do escritor-dândi, múltiplos retratos da cidade carioca e de seus personagens vão se revelando pela tessitura de A Alma encantadora das ruas, coletânea de textos divididos em cinco partes: “a rua”; “o que se via nas ruas”; “os aspectos da miséria”; “os crimes” e “as musas da cidade”.

Nesses recortes, cortes e pedaços da rua em jogos significantes, o texto faz das tomadas um espetáculo visual apreciado pela agitação cotidiana e elemento provocador de impressões que suscitam encanto ou configuram a construção de um olhar pelo seu avesso. Nesse caso, a figura do dândi foi essencial, por concentrar o olhar decadentista no culto do “eu”, ressaltando, transgressoramente, a perversão do gosto, a estetização da vida, o distanciamento de julgamentos morais, a colheita inútil, a elegância artificial e tantos outros atributos para enfim ter direito à apreciação da vida pela rua, sem no entanto colocar seu corpo e sua mente a serviço do sistema.

A alma encantadora das ruas propõe um caleidoscópio semiológico do olhar suscetível de trazer vários prismas da rua, submetidos à subjetividade que acompanha o surgimento dos movimentos. Entre aquele que olha e aquilo que é olhado, portanto, está o jogo incessante entre o perto e o distante, a imagem e a palavra – cuja equivalência será, em última instância, apenas um ritmo a reger as alternativas entre o cheio e o vazio, a paisagem e o detalhe, a presença e a memória.

E somente João do Rio soube acolher a ociosidade como proposta existencial do dândi, criando a rua ou representações da cidade cuja característica fundamental era se alimentar pelos olhos atônitos e atentos das emoções alheias. Olhares que, indagando o espaço e transferindo essa indagação ao leitor, afirmam: “Viver é vibrar; viver é interessar-se com entusiasmo pelo assombroso espetáculo da vida” (RIO, 2006, p. 19).

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Publicado em 14 de janeiro de 2014.

Publicado em 14 de janeiro de 2014

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