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Breve dialogo entre Pierre Bourdieu e a Educação Física: reflexões sobre um novo e possível capital

Renato Poubel de Sousa Assumpção

Mestre em Educação (FFP-UERJ), professor da rede municipal de São Gonçalo e da rede estadual do Rio de Janeiro

Promover mudanças na dinâmica sociocultural da Educação Física escolar é contrapor-se a conceitos, valores, crenças e tradições há muito tempo arraigados à prática dessa disciplina.

Neira & Nunes (2008)

Introdução

A apropriação das ideias de Pierre Bourdieu dentro do contexto de construção do conhecimento da Educação Física brasileira, de acordo com Medeiros (2009), ainda é muito escassa. Poucos são os trabalhos ligados a Educação Física que se referenciam nas ideias desse autor (Medeiros, 2009).

No que diz respeito a sua obra, Bourdieu apresenta certa aproximação junto aos esportes, o que poderia incentivar a reflexão de seus estudos no âmbito da Educação Física, contudo não necessariamente no que diz respeito ao âmbito escolar.

Segundo Medeiros (2009),

Pierre Bourdieu escreve o texto Os jogos olímpicos, programa para uma análise, em que aborda o espetáculo televisivo e sua forma de exercer a violência simbólica, uma vez que se pretende um instrumento de registro, e torna-se um instrumento de criação de realidade. As reflexões contidas nesse livro se adéquam às reflexões realizadas pelos estudiosos da espetacularização do esporte e suas consequências. No texto Como é possível ser esportivo?, Bourdieu (2002) descreve o campo das práticas esportivas, inserindo por sua vez esse campo no campo de lutas pela definição do corpo legítimo e do uso legítimo do corpo, em que ocorrem embates empreendidos por formas de autoridade específicas (pedagógicas/científicas) ligadas a espécies de capital específicos (Medeiros, 2009, p. 7).

Dessa forma, percebemos que a apropriação das ideias e conceitos de Pierre Bourdieu no que se refere à Educação Física não é rara. Contudo, a aproximação de seus pensamentos junto à Educação Física escolar não é tão constante assim.

Este trabalho, porém, vê no conceito de capital cultural pensado por Bourdieu certa possibilidade de dialogo junto à Educação Física escolar.

Habitus, capital cultural, Educação Física

Bourdieu (1966) acredita que a reprodução da sociedade é a função principal da escola. Sendo assim, ao contrário do que se poderia imaginar, a escola não fracassaria em sua função. Na verdade, ela teria nascido com o ideal da seleção e, dessa forma, é reprodutora das desigualdades sociais.

Não concordo totalmente com essa visão de Bourdieu, contudo não posso negar o potencial que a escola tem para a reprodução e o quanto é difícil, suada e árdua a luta para a superação dessa “engrenagem” escolar reprodutora dos meios sociais dominantes. Dessa forma, para Bourdieu (1966) a escola tem êxito em sua proposta.

Ao atribuir aos indivíduos esperanças de vida escolar estritamente dimensionadas pela sua posição na hierarquia social, e operando uma seleção que – sob as aparências da equidade formal – sanciona e consagra as desigualdades reais, a escola contribui para perpetuar as desigualdades, ao mesmo tempo que as legitima. Conferindo uma sanção que se pretende neutra, e que é altamente reconhecida como tal, a aptidão socialmente condicionada que trata como desigualdades de “dons” ou méritos, ela transforma as desigualdades de fato em desigualdades de direito, as diferenças econômicas e sociais em ‘distinção de qualidade’, e legitima a transmissão da herança cultural. Por isso ela exerce uma função mistificadora (Bourdieu, 1966, p. 59).

Bourdieu contribui para pensar essa questão, entretanto podemos ir um pouco além e pensar como Freire (1996); para este, a escola tem de exercer um papel transformador da sociedade. A escola tem de ser uma das bases de mudança social. Seguindo essa linha de pensamento, creio ser de fundamental importância que as disciplinas que norteiam a escola devam voltar-se para os processos de lutas; sendo assim, a Educação Física tem de assumir seu papel como uma das partes da escola, não podendo abrir mão de suas potencialidades na colaboração para alcançar esse ideal.

Quando abri os PCN de Educação Física (Brasil, 1997) pela primeira vez, com a intenção de saber quais eram os conteúdos da área, deparei-me com o discurso que expressava que a Educação Física escolar deveria atender a uma cultura corporal, composta por cinco pilares: jogos, danças, lutas, esportes e ginástica.

Cultura corporal: “A fragilidade de recursos biológicos fez com que os seres humanos buscassem suprir as insuficiências com criações que tornassem os movimentos mais eficazes, seja por razões “militares”, relativas ao domínio e uso de espaço, seja por razões econômicas, que dizem respeito às tecnologias de caça, pesca e agricultura, seja por razões religiosas, que tangem aos rituais e festas ou por razões apenas lúdicas. Derivaram daí inúmeros conhecimentos e representações que se transformaram ao longo do tempo, tendo ressignificadas as suas intencionalidades e formas de expressão, e constituem o que se pode chamar de cultura corporal. Dentre as produções dessa cultura corporal, algumas foram incorporadas pela Educação Física em seus conteúdos: o jogo, o esporte, a dança, a ginástica e a luta. Estes têm em comum a representação corporal, com características lúdicas, de diversas culturas humanas; todos eles ressignificam a cultura corporal humana e o fazem utilizando uma atitude lúdica” (Brasil, 1997, p. 26).

Naquele momento, como alguns profissionais, interpretei essa questão como sendo simplesmente a prática corporal de atividades que se enquadrassem nesses pilares, com suas referidas regras e fundamentos.

Um pensamento mais crítico do que poderia ser cultura corporal se encontrava longe de mim. Acreditava que, caso trabalhasse com futebol (tema que se enquadra em esportes), a prática do referido desporto, a explicação e compreensão de suas regras e o desenvolvimento dos fundamentos já se davam por atender as necessidades do tema.

Ao final do curso de Educação Física e com alguma experiência escolar, comecei a questionar-me sobre essa questão. Até onde essa forma de pensar o trabalho da Educação Física escolar poderia auxiliar no processo de formação da cidadania do meu aluno?

O Colégio Americano de Medicina do Esporte orienta atualmente a prática de atividade física durante três vezes na semana por no mínimo 20 minutos (nível intenso) e cinco dias na semana durante 30 minutos (nível moderado).

Estava pensando na formação de cidadania como formação de um aluno, consciente de sua posição social, crítico, reflexivo... O simples fato de saber regras não o auxiliaria nesse desenvolvimento. Muito menos possuir habilidades desportivas e ainda menos para melhoria da qualidade de vida, já que neste último caso, segundo os princípios do Colégio Americano de Medicina do Esporte (American College of Sports Medicine, 2007) seria necessária a prática de atividade por 30 minutos no mínimo três vezes por semana, coisa que não vem a ocorrer normalmente nas escolas brasileiras.

Dessa maneira, seria necessária uma Educação Física escolar que rompesse com essa forma de utilização da cultura corporal, no sentido de trabalhar na luta pela transformação social, utilizando os conteúdos da cultura corporal como meio de formação crítica.

A Educação Física tem de transformar sua área em um campo de reflexão. Tem de ir muito além de uma intenção que se inicie e termine apenas nos aspectos corporais e físicos. Tem de se fazer de forma reflexiva também perante suas práticas corporais. Nosso corpo é algo que vai para além das questões de saúde; possui uma história individual e coletiva. Muitas de nossas práticas corporais são fruto de um processo histórico humano e carregadas de histórias, significados, conceitos e pré-conceitos. Não se pode discutir o movimento apenas pelo movimento, deixando de lado toda uma cultura corporal. Não podemos refletir sobre uma cultura corporal apenas pelo âmbito do movimento; é necessário trazer para esse debate todos esses significados que o corpo possui. Assim estaremos possibilitando uma Educação Física reflexiva que auxilie no processo de autonomia do indivíduo.

Para Bourdieu (2002), a escola se apresenta como instituição conservadora e agravante das diferenças sociais. A Educação Física não foge a essa linha; pelo contrário, surge no Brasil e se afirma no universo escolar com ideais claros a atender as perspectivas das ideologias dominantes de cada período por que passou. Percebemos na escola uma forte tendência à seleção pelas capacidades e aptidões, tendências essas muito presentes nas raízes da Educação Física (Guiraldelli Jr, 2003). Contudo, enquanto a escola se volta à seleção pelas inteligências intelectuais, a Educação Física por distintas vezes seleciona pelas aptidões físicas.

Na tentativa de compreender os diferentes desempenhos dos alunos de distintas classes sociais, Bourdieu pensou a questão do habitus e do capital cultural.

O habitus é aquilo que se incorpora, que se torna natural. É um

sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas, isto é, como princípio que gera e estrutura as práticas e as representações que podem ser objetivamente ‘regulamentadas’ e ‘reguladas’ sem que por isso sejam produto de obediência de regras, objetivamente adaptadas a um fim, sem  que se tenha necessidade da projeção consciente desse fim ou do domínio das operações para atingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação organizadora de um maestro (Bourdieu, 1972, p. 175, apud Ortiz, 1983).

O habitus tende, portanto, a conformar e a orientar a ação, mas, na medida em que é produto das relações sociais, ele tende a assegurar a reprodução dessas mesmas relações objetivas que o engendraram (Ortiz, 1983, p. 15).

Podemos tirar como exemplo a naturalização que se tem da reprovação dentro da escola (sendo ela pública ou privada), de se passar ao lado de um mendigo na rua... São questões sociais que se naturalizam, tornam-se um habitus.

O capital cultural é outro conceito famoso de Bourdieu, e de certa forma está diretamente ligado ao capital social. É toda cultura dominante de que o indivíduo consegue se apropriar. Isso se dá de forma facilitada, quando o indivíduo já nasce no “berço” da classe dominante e cresce nesse meio, tendo acesso a livros, às artes, à língua dominante... Proporcionando ao indivíduo maior facilidade de obtenção desse capital cultural.

O capital cultural identifica-se sob a forma de conhecimentos e habilidades adquiridos quer na família, quer na escola. Segundo Bourdieu, a noção de capital cultural foi concebida como uma hipótese indispensável para a compreensão da desigualdade de desempenho escolar de crianças originárias de diferentes classes sociais (Catani, 200-, p. 19).

O capital cultural é de fundamental importância no sucesso escolar, na medida em que a cultura da escola se vincula à cultura dominante, ou seja, os conhecimentos “indispensáveis” da escola são os conhecimentos da elite. Isso faz com que facilite o sucesso do filho das classes dominantes e dificulte o sucesso dos filhos das classes populares no meio escolar, uma vez que o filho do pobre terá menos acesso a essa cultura dominante, o que limita o desenvolvimento do seu capital cultural.

Dessa forma à medida que há, de um lado, uma classe dominante tendo maior acesso à formação desse capital cultural, há por outro uma classe popular que não tem acesso a essa cultura.

Mas onde entraria a Educação Física nesses conceitos? Penso que ela reforça a questão da exclusão, na medida em que esta, assim como a escola, possui alto potencial de seletividade.

A escola seleciona pela “visão” intelectual, e a Educação Física sempre se direcionou pela aptidão física. A Educação Física mantém essa ideia de seleção muito viva ainda em seu ambiente escolar. Entendo que devemos pensar que, enquanto o capital cultural se volta para a questão intelectual, percebo que, na Educação Física, talvez possamos chamar de “capital físico”, ou melhor, “capital corporal”.

Penso na Educação Física com um conceito que tenha o mesmo sentido do capital cultural. Essa discussão se daria tanto de forma complexa, na medida em que a classe social não seria mais fator determinante (ou melhor, prioritário) na aquisição desse novo conceito, que talvez se faça presente dentro das aulas de Educação Física.

Enquanto o capital cultural vincula-se à cultura escolar, ou seja, à cultura dominante, o capital corporal vincula-se ao corpo, ou seja, aos corpos mais desenvolvidos no que diz respeito à “estética”, e às “valências físicas”. Valências físicas são qualidades físicas especiais para determinados esportes, que auxiliam no bom desempenho dos participantes. Por exemplo: força, flexibilidade, lateralidade, resistência...

Essa não ligação do “capital corporal” diretamente à questão da classe social é visível quando observamos que, nas aulas práticas, é muito comum nossos alunos das classes populares acabarem tendo certo destaque sobre os alunos detentores de maior capital financeiro. O que não retira sua característica selecionadora, apenas muda o locus responsável por essa hierarquia. Isso é um fator para se pensar na proporção em que se rompe com aquele modelo seletor tradicional da escola voltado para as classes populares. Por outro lado, podemos perceber em alguns aspectos o favorecimento das classes dominantes dentro desse contexto de “capital corporal”, à medida que eles podem ter acesso a ambientes de desenvolvimento corporal (como academias de boa qualidade, personal, boa alimentação, cuidados de higiene...), que são de acesso mais difícil para as pessoas da classe popular que podem facilitar no processo de desenvolvimento do “capital corporal”.

Contudo, percebo também que esse “capital corporal” do indivíduo pobre muitas vezes se desenvolve por outros meios, outras vertentes, como trabalhar em serviços de grande exigência física (pedreiro, carregador de mercado...), ou as brincadeiras que muitas dessas crianças me confessam, como andar em cima do muro, sobre o terraço, brincar em lugares totalmente inapropriados e por diversas vezes até mesmo perigosos... o que vem de alguma forma, e por distintas vezes não muito seguras, estimular o desenvolvimento de algumas valências físicas necessárias para a aquisição de um bom “capital corporal”.

Percebe-se nessa questão certa dicotomia, na proporção em que o domínio do “capital corporal” nas aulas de Educação Física assume caráter seletivo, mas não no sentido predominante de classes sociais e sim do físico. Entretanto, não deixa de haver um processo de seleção, que de certa forma ocorre de maneira naturalizada nas aulas.

O processo seletivo das aulas de Educação Física já se tornou um habitus escolar. Por mais que muitos professores de Educação Física tenham consciência desse potencial selecionador da área, e desta forma busquem combatê-lo (muitos utilizando mesmo aulas cooperativas), por diversas vezes acabam inconscientemente reproduzindo aulas seletivas, “por culpa do habitus” já incorporado ao desenvolver das aulas de Educação Física. Esse rompimento é muito difícil e se dá até mesmo junto a professores que pensam de forma progressista; devido a um habitus, esses mesmos professores acabam empregando ferramentas de seleção, pois seus habitus já estão naturalizados no ambiente escolar.

Considerações finais

A Educação Física, por sua característica de seleção, contribui para a promoção da reprodução das desigualdades, a partir de uma naturalização de vencidos e derrotados. A Educação Física deve ser uma área que busque o desenvolvimento desse “capital corporal”, mas em um processo que dê para todos e que mostre que não existe melhor nem pior no que diz respeito a habilidades físicas, mas sim, pessoas diferentes e detentoras de distintas habilidades. Sendo assim, a Educação Física deve também proporcionar aos alunos o “capital corporal” que ele veio a ter (ou não) acesso, e seu foco maior deve-se voltar para os alunos que tiveram poucas oportunidades de desenvolver e, assim, ampliar esse capital.

Referências

AMERICAN COLLEGE of Sports Medicine (ACSM). Recomendações básicas do Colégio Americano de Medicina Esportiva e da Associação Americana do Coração. 2007. Disponível em <www.acsm.org>. Acesso em: 09 abr. 2010.

BOURDIEU, Pierre. L’école conservantrice: les inégalites devant l’ école et la culture. Revue Française de Sociologie. Paris, 7 (3), 1966, p. 325-347.

BOURDIEU, Pierre. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002.

BRASIL; Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:Educação Física. Brasília: MEC/SEF, 1997. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro07.pdf>. Acesso em: 30 jun. 2010.

CATANI, Denise Bárbara. A educação como ela é. In: ______. Bourdieu pensa a educação. Revista Educação, especial: biblioteca do professor. Segmento: v. 1(5), p. 16-25, 200-.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 36ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GUIRALDELLI JR.; Paulo. Educação Física progressista. A pedagogia crítica social dos conteúdos e a Educação Física brasileira. 8ª ed.São Paulo: Loyola, 2003.

MEDEIROS; Cristina Carta Cardoso de. As referências de Pierre Bourdieu e Norbert Elias na Revista Brasileira de Ciência do Esporte: mapeando tendências de apropriação e de produção de conhecimento na área da Educação Física (1979-2007). Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 30, n. (2), p. 199-214, jan. 2009.

Publicado em 03 de junho de 2014

Publicado em 03 de junho de 2014

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