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Rua do Catete (Notas sobre o cotidiano da cidade II)

Cândido Grzybowski

Sociólogo e diretor do Ibase

Nesse contexto de certo mal-estar no ar, com greves e protestos confusos em todo o país, escaramuças políticas nos bastidores devido às próximas eleições e certa ansiedade gerada pela Copa do Mundo, a gente tem a tendência de se refugiar no seu canto. Ainda mais que o inverno no Rio, de curvas e formosuras, chegou. Por sinal, um inverno ameno e doce, para quem conhece inverno de geadas e nevascas, com temperaturas de muitos graus abaixo de zero. É momento para pensar o que se passa à nossa volta, onde vivemos a maior parte do nosso tempo.

Moro na Rua Ferreira Viana, entre o Parque do Flamengo e a Rua do Catete. Já escrevi sobre as maravilhas que o Parque esconde. Hoje quero exaltar a vida cotidiana na Rua do Catete, uma verdadeira pérola incrustada entre a Zona Sul e o Centro do Rio de Janeiro. Estou querendo chamar a atenção particularmente para o pedaço entre o Palácio do Catete e o Largo do Machado. Refiro-me à rua e suas adjacências, um lugar para viver quase tudo que uma cidade, como bem comum, oferece.

São 600 a 700 metros de muita vida. Dá para passear despreocupado, olhando e sempre descobrindo algo. É bom conviver com tantas crianças, com tantas mães e pais orgulhosos de seus filhos, com tantos jovens esbanjando energia, beleza e vida, com idosas e idosos passeando distraídos, sem medo. Uma fantástica diversidade de gente, compartindo o mesmo espaço. Tudo que a gente precisa parece estar ao redor, basta andar um pouco para lá ou para cá. A paisagem urbana, onde muitas vezes passamos sem perceber, é simplesmente deslumbrante. Entre as ruas Correa Dutra e Silveira Martins está, ao meu olhar de não especialista, um dos conjuntos mais belos de casario do século XIX do Rio de Janeiro, com aquela calçada larga em frente, com lugar para todo mundo andar distraído. E, ao levantar a cabeça, andando, sempre dá para descortinar uma bela vista da Baía da Guanabara, do sinuoso conjunto do Pão de Açúcar e Morro da Urca, do Corcovado com o Cristo querendo abraçar a gente, da encantada Santa Tereza logo ali em cima. Isso é cidade, bem comum!

O pedaço da Rua do Catete a que me refiro é um lugar privilegiado. Tem o Parque do Flamengo logo ali, para caminhadas, passeios de bicicleta e – como é meu caso – para coleta de sementes, com as vias de carros fechadas em domingos e feriados, e com aquela estupenda invasão de famílias e grupos para fazer um pouco de tudo, de festa de aniversário, prática de esportes a piquenique, além de banho na praia. Tem o animado Largo do Machado, com cantores e repentistas, danças às vezes, e aqueles quiosques de plantas ornamentais.

Além do centro cultural de vídeo, o Castelinho, o pedaço conta com o Museu do Telefone, o Museu do Folclore e o Museu da República, com seu jardim e lembranças de Getúlio Vargas. No conjunto de salas do São Luís dá para ver o que de melhor passa nos cinemas. A excelente Livraria Argumento é completada pela venda de livros de segunda mão, numas três ou até quatro barraquinhas, em particular aos domingos. O pedaço, um pouco alargado, é servido de muito bons e famosos restaurantes, como a Churrascaria Majórica logo no início da Senador Vergueiro, o Lamas no início da Marquês de Abrantes, o restaurante peruano Intihuasi na Barão de Flamengo, o Alcaparras na Praia do Flamengo com a Rua Buarque de Macedo, e tantos outros. Não dá para deixar de lembrar da sorveteria Itália. Mas o que me encanta em particular são os verdadeiros restaurantes de rua que se instalam a partir das 19 ou 20 horas nas esquinas da Rua do Catete. Vão desde carrocinhas de cachorro quente e sanduíches até fornecedores de pratos feitos especiais, típicos de nossa fantástica culinária popular. E são muitos que, com poucos reais, degustam pratos difíceis de encontrar nos nossos restaurantes. E ainda há os “pés sujos”, alguns até de destaque nos roteiros turísticos da cidade.

Hotel da área não é para mim, morador. Mas traz gente do Brasil e do exterior que completa a vibração de vida do pedaço. São bons hotéis, de preços um pouco mais em conta do que aqueles da orla da Zona Sul. Só na Ferreira Viana são quatro, dois bem populares e dois mais do tipo três estrelas, como o Flórida e o Regina. O bom é sentir que tanto eles, os hóspedes e turistas, como nós, moradoras e moradores do pedaço, nos sentimos bem por ali, nos aceitamos e gostamos de compartir o que temos. Dá para ver no rosto dos visitantes a satisfação com o lugar.

Algo que é um problemão na cidade hoje em dia, mas do que quem mora na Rua do Catete não pode reclamar, é transporte. Temos o direito à mobilidade plenamente assegurado. O metrô atravessa a área e nos leva ao Centro, à Zona Norte, à Tijuca e à Zona Sul. Há muitos ônibus – aliás grande parte dos ônibus que servem à Zona Sul passam por aí e nos pegam. Táxi nunca falta, de dia e de noite. Dá para sair com facilidade de carro para um lado e outro, os problemas de engarrafamento normalmente são mais adiante, já fora do pedaço.

Poderia lembrar aqui muitas outras coisas do pedaço de cidade que está no raio de um quilômetro de meu apartamento. Já tem rua enfeitada para a Copa: a Correa Dutra. Tem tipos folclóricos desfilando no dia a dia. Tem serviços especializados ao alcance da mão. E tem aquelas butiques muito particulares onde você encontra o pedacinho de pano de que precisa, a peça de reposição (pois você é daqueles que resiste a trocar a geringonça inteira), aquela coisinha especial que está fora de linha de produção, o profissional que cuida de tudo.

Enfim, a Rua do Catete a que me refiro é um protótipo bem querido do tipo de cidade que deveria ser, a meu ver, a cidade de todo mundo. Trata-se de um pedaço de cidade compartido entre todas e todos, sem exclusões, onde a gente se sente bem e normalmente até se esquece porque. Será que saberemos ordenar a cidade inteira assim?
Um futuro de bem-viver nas nossas cidades deve se inspirar em exemplos como o quilômetro quadrado que tem a Rua do Catete como sua artéria vital.

Publicado em 10 de junho de 2014

Publicado em 10 de junho de 2014

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