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Na Avenida Rio Branco

Cândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

Durante a bela confraternização provocada pela Copa do Mundo, mostrando que a convivência planetária é possível, pensei que vale a pena chamar a atenção para algo de nossa cidade que é extremamente conhecido, mas invisível ao visitante. Os torcedores-turistas são muitos, de todas as partes do mundo e por todos o cantos de nossa cidade, o Rio de Janeiro. Eles não escondem o quanto estão encantados com as belezas inigualáveis que nossa cidade oferece e com a capacidade de sermos gentis, apesar de todos os problemas que temos, que nem é bom lembrar aqui.

Claro, os visitantes andam aos montões também pela Avenida Rio Branco, que no seu final tem a Cinelândia, o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional de Belas Artes, todas atrações turísticas. Será que eles também olham e tentam imaginar o que significa o outro lado deste território urbano? Esta área talvez contenha os metros quadrados mais cidadãos do Brasil, lugar de grandes manifestações e atos políticos, final de muitas passeatas, de protestos, de esperanças e vigílias.

Milhares de participantes, se não passarem pela Rio Branco já saem perdendo algo. Há um simbolismo na confusão que a avenida parece comportar, sem perder a sua magia. Mesmo agora que o prefeito resolveu confundir todas as direções e impôs o tráfego em mão dupla, primordialmente de ônibus e táxis, a Rio Branco não perdeu a sua majestade de palco da cidadania. As manifestações em geral vêm da Candelária em direção à Cinelândia. Mas agora, com a pirueta de trânsito do prefeito, as manifestações podem ir nos dois sentidos. Ou seja, não adianta querer domar esse espaço da cidadania, pois a Rio Branco é nossa, onde podemos hastear nossas bandeiras.

Provavelmente esses panfletos que servem como guias turísticos nem lembram que a Rio Branco foi e continua sendo o grande palco do carnaval. Turistas são instruídos a ir visitar o Sambódromo. Mas não dá para esquecer que o povão que brinca e não tem dinheiro para o ingresso do Sambódromo vai lá onde é seu palco: a Avenida Rio Branco. Agora, nos anos recentes, em que os blocos de rua revitalizam nosso carnaval, as maiores multidões seguem Mart’nália, Cordão da Bola Preta e outros na Rio Branco.

Mas voltemos ao nosso passeio, na direção contrária à das grandes manifestações, da Cinelândia em direção à Candelária e, mais longe um pouco, à Praça Mauá. É uma avenida cheia de gente a toda hora, em particular naquela hora do almoço. Mas dá para caminhar e se encantar, pois a avenida abre-se generosamente a todos, até para um montão de ambulantes (que a Guarda Municipal reprime, mas não consegue acabar, pois nem sei se seu objetivo é esse). A Avenida Rio Branco, com sua desordem cidadã, é um atentado à ordem que o prefeito tenta impor. Bem, no controle do lixo até que ele obteve vitórias e merece reconhecimento. Mas organizar cidadania não é tarefa de quem a cidadania elegeu para ser delegado prefeito – e não mais que isto.

Nós, cidadãs e cidadãos, somos auto-organizados. Nós nos consideramos instituintes e constituintes de poder político, e não seus caudatários. Essa talvez seja a maior mensagem simbólica da Rio Branco. Os gritos de gerações e gerações de brasileiras e brasileiros ecoam na avenida afirmando o seu direito irrestrito de se manifestar, protestar, demandar. Bem, você pode ver que é difícil avançar na Avenida Rio Branco como se fosse simplesmente um caminho, uma via de circulação. Estando ligado ao seu profundo sentido de “rua” da cidadania, a cada passo a gente lembra de algo. À esquerda tem o Largo da Carioca. Logo adiante, à direita, a gente vê o Buraco do Lume (por que tal nome?), que para mim sempre lembra o Vladimir Palmeira fazendo discurso em cima de um banquinho. Não vale a pena olhar para os bancos e suas luminosas fachadas de especuladores com nosso dinheiro. Bancos ocupam quase todos os endereços térreos da avenida. Por que será? Lojas mesmo sobram poucas. Mas há prédios com história, como o Clube de Engenharia. Enfim, seguindo em direção à Praça Mauá, a gente chega à Avenida Presidente Vargas, à esquerda, com a Igreja da Candelária à direita. Aí atrás se localiza o CCBB, um dos centros culturais mais importantes. Mas a Candelária é uma referência para a cidadania tanto quanto a Rio Branco. Dois fatos fundamentais no nosso contraditório processo de democratização ocorreram justamente na Candelária. Lembro aqui o gigantesco comício das Diretas Já em janeiro de 1984 e a chacina de meninos de rua que se abrigavam por ali, por policiais assassinos.
Eu poderia lembrar aqui os inúmeros assaltos diários praticados na Avenida Rio Branco, com mais de um milhão de pessoas circulando por dia. Mas isso está diariamente na imprensa. Seria muito bom se a grande mídia nos lembrasse sistematicamente o quanto a “confusão” da Rio Branco já foi estopim de grandes mudanças em nosso país. É querer demais?

Bem, como democrata, afirmo e reafirmo que sempre será possível ser diferente do que somos hoje. Voltando à Rio Branco, além de ser a principal artéria de nossa cidade, ela é acima de tudo o símbolo mesmo da cidadania brasileira, no seu lugar por excelência, a rua central de uma cidade emblemática como o Rio de Janeiro.

Como dizia Betinho, a cidadania está na planície, ao lado do mar, enquanto o poder está no planalto. Longe de mim pretender ser o narrador da história da Avenida Rio Branco, por sinal não tão bonita e sedutora, como a de muitos outros espaços públicos o são.

Estou aqui simplesmente refrescando a memória de todos nós que compartimos a cidade do Rio de Janeiro. Ela não é capital desde o começo dos 60 no século passado. Mas o simbolismo da cidadania ativa brasileira associado à Rio Branco ninguém tira do Rio de Janeiro.

Pena que os milhares de visitantes, eles também abertos à diversidade e à convivência, fundamentais para pensarmos um mundo sem guerra, não tenham oportunidade de mergulhar na história da Avenida Rio Branco. Penso que, se soubessem a história que está gravada no chão em que pisam, seu olhar sobre a cidade e suas lembranças do Rio de Janeiro seriam outros. Agora, cá para nós, não há na cidade lugar mais cheio de confusão do que a Rio Branco. Felizmente, confusão criativa, portadora de mais e mais democracia, a ser celebrada e festejada, como uma vitória da seleção na Copa do Mundo.

Publicado em 29 de julho de 2014.

Publicado em 29 de julho de 2014

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