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O candomblé como forma de resistência escrava à colonização
Prof. Dr. Eduardo Marques da Silva
De todos os traços culturais africanos trazidos para o Brasil, o Candomblé talvez tenha sido o mais estudado pela área acadêmica; descendentes da herança cultural negro-africana como a Umbanda: Nina Rodrigues, Manuel Querino, Artur Ramos, Edison Carneiro, Gonçalves Fernandes e René Ribeiro em Pernambuco. A estrutura religiosa do Candomblé e seu modelo organizacional têm sido foco de análises exaustivas, além de serem estudados também em São Paulo, no Rio Grande do Sul e especialmente na Argentina.
Todos apresentam o candomblé como unidade religiosa do mundo mágico africano no Brasil, não uma organização religiosa, como de patamar de resistência (consciente e inconsciente) ao processo de colonização escravista. O candomblé representava um ponto de resistência contra o processo de colonização totalitário (de totalidade), não permitindo que outras formas de organização se estruturassem e dinamizassem, quebrando esse sistema de dominação escravista de totalidade. Nele, havia preferência por combater as heresias, as religiões gentílicas ou animistas. E toda uma sistemática de perseguição a essas entidades religiosas passa a funcionar, embutida no racismo colonial contra o negro escravizado. Devemos considerar a organização da Igreja Católica como um dos braços mais importantes desse processo de dominação do sistema colonial. Ela tinha como tarefa não apenas convencer a sociedade dos valores do cristianismo, mas dos padrões políticos de sujeição desses povos à dominação colonial. Daí “as religiões dos oprimidos serem consideradas heresias, ameaças, perigos e vistas como religiões de feitiçaria”. E, por isso, destruídas, neutralizadas.
A perseguição aos candomblés (pela Igreja Católica) não era apenas uma perseguição religiosa mas também política contra a resistência dos dominados e as estratégias de dominação dos colonizadores. Isso, porém, foi pouco analisado em função da interpretação culturalista dos principais autores que procuraram escrever sobre o poder. Daí também as diversas interpretações sobre sincretismo religioso e a transformação dos orixás em santos católicos. Esses estudiosos, quase todos psiquiatras ou psicanalistas, procuram psicanalisar as religiões africanas a partir dos mitos da psicanálise freudiana, com isso descarnando essas interpretações do seu conteúdo de resistência ideológica à religião dos colonizadores, havendo vasta literatura no particular.
Edison Carneiro afirma que “o candomblé incorpora, funde e resume as várias religiões do negro africano e sobrevivências religiosas dos indígenas brasileiros, com muito mais coisa de catolicismo popular e do espiritismo".
Essa amostra esclarece como o que houve foi uma síntese dessas religiões oprimidas no sentido de formarem uma unidade de resistência, embora simbólica da situação social e política de dominação a que estavam sujeitas. No entanto, esse conjunto que se cristalizou no candomblé foi sempre interpretado como simples reprodução no Brasil dos rituais de uma parte da África Negra. Os candomblés serviram como polo aglutinador de uma consciência étnica rústica ou empírica, mas que os preservou de se desagregarem como população étnica e economicamente explorada. O elemento religioso teve aqui um papel dialético de mantenedor da lealdade do grupo em torno de uma série de símbolos e formas organizacionais de resistência.
Em Salvador, por exemplo, o raio de presença e influência do candomblé se exerce simbolicamente em quase todas as festas religiosas (católicas) da cidade, como a do Bonfim, da Ribeira, Cosme e Damião etc. Ele exerce ainda sobre o povo de santo uma força aglutinadora capaz de manter patamares organizacionais sobre essa massa negra dominada como através dos afotés. São espaços que o candomblé domina além daqueles estritamente religiosos, mas se equiparam a domínios simbólicos do social nas áreas etno e racialmente dominadas.
Toda essa reformulação simbólica dos mitos e dos ritos do candomblé é refuncionalizada pelas experiências e necessidades da sociedade dominada ou oprimida etnicamente. No caso específico do Brasil, do escravo. Esses símbolos eram reformulados ou esquecidos, revitalizados ou desarticulados à medida que o escravo via, neles, elementos que o alimentassem ou que o enfraquecessem ideologicamente.
Edison Carneiro, explicando a dialética interna do candomblé, escreve que
o caráter histórico da dança ritual dos nagôs se modificou no Brasil primeiro pela sua aceitação por elementos angoleses e congueses na Bahia. Em segundo lugar, pela imitação do que se supunha que fosse a dança ritual dos tupis, a cabeça baixa, o corpo curvado para a frente, grandes e contínuas flexões nos joelhos, movimentos principais para fora do círculo em homenagem a novas divindades caboclas, na Bahia e na Amazônia. Finalmente, as macumbas, pela tradição anterior de danças semirreligiosas sem estruturação associativa que lhes permitisse fixar um padrão a que se subordinasse a iniciativa pessoal.
Ao que parece, Carneiro não quis ver essa dinâmica interna do Candomblé a não ser como "influências" e não, pelo contrário, como fato de o candomblé procurar dar respostas também na sua dinâmica àqueles membros ou grupos de outras comunidades oprimidas, como os índios, incorporando-os ao seu ritual.
Mas essa função de resistência do candomblé à opressão racial e ideológica durante a escravidão com níveis de resistência até hoje pouco estudados ou desconhecidos se rearticula após a Abolição num novo contexto social, novo posicionamento de classes sociais ou grupos étnicos e raciais e é também redefinida pelas estruturas de poder brancas. Aí é que podemos ver, especialmente em Salvador, como essas estruturas viam o candomblé como uma ameaça não apenas ao seu mundo mágico-religioso, mas também como um perigo social. Ainda estava na memória social dessas elites o papel grandemente ativo na insurreição de 1835 em Salvador, quando as "casas de Candomblé" serviram para unir e/ou esconder os insurretos daquele movimento. Não foram simples participações esporádicas, mas uma contribuição política nesse episódio de libertação dos escravos da Bahia. Daí as perseguições permanentes, sistemáticas e terroristas às suas casas de culto. Até recentemente o Candomblé era tido pelas elites responsáveis pelo controle social como zonas perigosas, de controle permanente, e eram freqüentes as invasões dos seus espaços religiosos, a apreensão dos seus objetos sagrados e a prisão dos seus sacerdotes. A história do papel político do candomblé na Bahia e em outras partes do país ainda está por ser contada.
Sobre o aspecto sociorreligioso como forma de resistência escrava por aqui, efetivamente permanente na nossa então pós-escravidão que vivenciamos até os dias de hoje, Roger Bastide, professor/pesquisador da nossa historiografia sociorreligiosa da negritude, afirma:
Dessa maneira é que os cultos de Orum, deus do sol, de Ogilão, um dos deuses dos ferreiros, de Olokun, deus do mar que desempenha papel bastante importante na cidade de Ifé e que se concentra em Cuba, como ainda dezenas de outros, não existem no Brasil, como também seus nomes não são conhecidos como os dos babalorixás e das ialorixás; (...) explicamos o desaparecimento de Oko, deus da agricultura, com o regime da escravidão: o escravo não podia celebrar os ritos de fertilidade dos campos, pois que as colheitas não lhe pertenciam.
Essa memória coletiva é também uma memória seletiva em que o oprimido reformula simbolicamente a religião e transforma-a em um elemento de resistência à opressão. Isso aconteceu também com Exu. O seu crescimento simbólico aqui seguiu o mesmo processo de ampliação ou esquecimento. A trajetória dele, da África aos candomblés da Bahia e dos candomblés aos centros de macumba, é ilustrativa. Obedece a uma dinâmica interna da evolução dos significados dos símbolos no candomblé.
Roger Bastide diz que
a tradição religiosa se nos revela, sob um duplo como pressão e como estrutura. O primeiro aspecto: o processo elementar da continuidade social. Porém essa opressão opera numa certa divisão do trabalho social e a aprendizagem do passado muda conforme os membros da comunidade. É mais a estrutura do grupo que o grupo em si que fornece os quadros da memória coletiva; não se compreenderia sem isso porque a memória individual tem necessidade de apoio de toda a coletividade. Se outra pessoa não é necessária para que lembremos é que nossas lembranças estão articuladas com as de outras pessoas numa trama bem regulada de imagens recíprocas.
Para esse pesquisador,
é isso que explica (...) as razões de as reminiscências africanas se conservarem com muito mais força nas cidades que nas zonas rurais. Se a tradição não fosse mais do que a força do passado, a pressão do grupo não teria tomado, como foi o caso das zonas rurais, senão a forma de indicações individuais, da transmissão de uma herança de imagens, dos mais velhos aos mais jovens, ou da conversão de alguns bantos à religião iorubana.
Mas, além desses mecanismos dinâmicos do significado dos símbolos do Candomblé que podem ser explicados pela sua modificação interna, há aquele nascido do Candomblé em dar respostas à sociedade abrangente à qual solicita especialmente e nas suas camadas oprimidas a resposta à ansiedade crescente que a sociedade de fora cria nos seus membros. Aqui é que podemos explicar ou pelo menos compreender a dialética do significado dos orixás. Na estrutura interna das religiões dos oprimidos, como é o caso do Candomblé, há uma reformulação interna de significados na medida em que ela se abre à sociedade abrangente, com ela interage e com isso fica exposta e obrigada a responder às perguntas que essa sociedade quer. Daí a reformulação dos significados dos papéis mágicos na proporção em que essa reformulação de significados corresponda aquelas respostas que os angustiados de fora querem receber.
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Publicado em 21 de janeiro de 2014.
Publicado em 21 de janeiro de 2014
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