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O Jesus judeu
Pablo Capistrano
Filósofo, professor do IFRN
Quando minha filha Sarah nasceu eu tive que ir a um cartório. Essa não era a minha primeira peregrinação por cartórios para registrar filhos. Sarah era minha terceira cria, e eu já estava acostumado a repetir o procedimento padrão para dar um nome civil a alguém. Mas, naquele dia, eu notei algo que havia me passado despercebido das outras vezes. Lá, bem no canto do prédio, havia uma porta e sobre ela os dizeres: “Sala de casamento”. Com algum esforço eu pude, mesmo do balcão, direcionar meu olhar curioso para vasculhar o que havia dentro daquela sala tão significativa, espremida entre os bancos e os birôs dos atendentes. Lá dentro havia algumas cadeiras, uma mesa de madeira negra e, sobre ela, fixo na parede, dominando com estranha luminosidade ocre o ambiente, a imagem de um Cristo crucificado.
Curioso não é? Em terra de marrano, mesmo em um cartório público, vigora com mais força o princípio geral de presunção de cristandade que afirma: “Todo mundo é católico até que se prove o contrário”. Não há como negar. Nosso país é uma invenção da língua portuguesa e da Igreja Católica; por isso, não ser cristão no Brasil é difícil. Mesmo as demoninações evangélicas precisaram de uma longa travessia para ser toleradas e aceitas. O mais curioso é que José e Maria não teriam condições de casar naquele cartório nem naquela sala de casamentos porque nem José nem Maria eram cristãos.
José, Maria e Jesus (o histórico) nasceram em um ambiente judaico. Apesar de o Evangelho de João ter disseminado na cristandade a ideia de que Jesus não era judeu e de que teriam sido os “judeus” que o mataram de forma cruel, é muito provável que Jesus filho de José tenha sido educado nos princípios fundamentais de um dos inúmeros judaísmos que fervilhavam naquela época na terra de Israel. Saduceus, fariseus, zelotas, essênios, todos grupos judaicos divergentes que interpretavam de modo variado a Lei de Moisés e a praticavam segundo suas leituras particulares. Provavelmente, se você voltasse no tempo até aquela época, não conseguiria diferenciar de forma clara os primeiros discípulos de Jesus de cada uma dessas facções judaicas.
Talvez você não saiba, mesmo sendo um cristão devoto, que Tiago, identificado como irmão de Jesus, defendia a ideia de que todos os cristãos, além de ser circuncidados, deveriam orar no Templo de Salomão. Esse primeiro cristianismo incorporou elementos muito significativos do judaísmo, como o batismo (que até hoje é usado para converter alguém que não é filho de mãe judia ao judaísmo) ou mesmo a incorporação de algumas festas judaicas, como o Pessach (Páscoa). Só em 49 da era comum, após o primeiro concílio cristão em Jerusalém, é que Paulo de Tarso aparece para opor-se à Igreja de Tiago e levanta a tese da não necessidade de circuncisão para a adoção da fé cristã. O que estava por trás dessa primeira grande peleja entre cristãos era a oposição que envolvia certo tipo de judeu nacionalista, apegado às ideias de resistência contra a dominação romana, e judeus helenistas (como Paulo), que falavam grego e se adaptavam bem às novidades da cultura que vinha de Roma. Antes de se transformar definitivamente em cristianismo, a partir do concílio de Nicéa (325), a religião de Jesus passou por um lento processo de “desjudaização” que a afastou do Oriente e a aproximou do mundo greco-romano.
Nesse processo algo se perdeu. As festas do ano novo judaico (Rosh Rashanah) foram substituídas pelas comemorações pagãs em homenagem ao Sol (25 de dezembro). Os tabus alimentares foram sendo abandonados aos poucos, e a crença monolítica em um Deus único sofreu alguns “ajustes” para se encaixar melhor ao gosto greco-romano. De Tiago a Lutero, o cristianismo se formatou construindo uma curiosa mistura que unia Jerusalém e Atenas sob os auspícios de Roma. Essas três cidades são centrais na mistura cristã, e não podemos pensar, ainda mais nesta época de Natal, que o serviço de criar essa religião se deva apenas aos esforços do rabino Jeshuah ben Joseph (Jesus de José).
Muitos cristãos não sabem, mas nem todos os judeus na época de dominação do império romano praticavam as atitudes criticadas pelo rabino Jeshuah. Se os fariseus cumpriam rigorosamente as prescrições da Lei, os adeptos do rabino Hilel, por exemplo, entendiam que o mais importante era: “amar a Deus sobre todas as coisas e aos outros como a si mesmos, porque o resto é interpretação”.
Essa postura livre, calcada na busca de uma ética da interpretação não dogmática da lei mosaica na oração (no trabalho místico) e na caridade, que salta de boa parte dos quase 33 evangelhos de Jesus de que se tem notícia, tem base no judaísmo. Apesar de toda a carne queimada nas fogueiras, todo sangue derramado nos pogrons e na montanha de corpos asfixiados nas câmaras de gás, não se pode perder essa dimensão, por pior que seja, para você, amigo devoto, a imagem do judeu.
Religiões não caem do céu. Elas são produtos históricos que expressam os esforços do homem em encontrar um modo de se relacionar com o divino que às vezes surge e às vezes se esconde na vida de cada um. Nesse esforço por construir pontes, caminhos, veredas e passagens para o sagrado, os homens também costumam a cavar seus abismos e apagar as pistas daquilo que eles mesmos construíram. Neste tempo de Natal, se você é cristão, não há por que pensar que essa festa seja só sua. Talvez seu vizinho, judeu ou mulçumano, possa ser mais parecido contigo do que você imagina. Talvez uma boa parte daquilo que você professa não seja seu. Talvez boa parte daquilo que você acredita tenha vindo de um ponto no tempo, de um lugar no espaço que precisa ser recuperado e reconstruído, para que isso que nos divide também não acabe por nos destroçar.
Publicado em 21 de janeiro de 2014.
Publicado em 21 de janeiro de 2014
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