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Crioulada: A vida na diferença! A sociedade do outro?!

Prof. Dr. Eduardo Marques da Silva

Este artigo é um olhar sobre a ‘Sociedade Paralela’ e a derivação de suas ‘figuras sociais’ na discussão do modelo e da classificação social das ‘franjas sociais’ para o nosso tempo presente. Como corolários do tempo de governança do único ‘Rei crioulo do Brasil’ para cá.

Parece agora não haver mais dúvida quanto ao significado da palavra ‘crioulo’ entre nós. Contudo, insistimos em alertar a todos, ainda vítimas de suas deformações de emprego e aplicação vocabular, tanto em significante quanto em significado, que esta palavra não significa em hipótese alguma o emprego errado que geralmente lhe dão no nosso cotidiano popular vivenciando e vivenciado! Ela, e é bom que fiquemos alerta, significa e deriva também entre nós também para denominar, como sabemos, ‘cria (crea) da casa’, ou seja, pessoas nascidas e criadas aqui e por aqui. Jamais era para ser usada para qualificar cor da pele, raça, origem racial ou o que valha em nossa sociedade. E é preciso que se evidencie que até mesmo nosso imperador Pedro II, nessa concepção rei do nosso Brasil, pode ser destacado como um espécime de destaque nesse cenário socionacional que merece ser evidenciado pelos acontecimentos ocorridos em seu tempo de ocupação governamental do Império no Brasil.

O presente trabalho se insere no âmbito da História Social Brasileira, que pouco ou nada tem privilegiado aqueles que permaneceram à ‘margem’, ou melhor, como excluídos dos setores produtivos da sociedade. Jean Claude Schmith, admitindo que o pesquisador sente-se limitado quando procura abraçar em suas análises a totalidade social que observa, sugere um novo olhar principalmente como necessidade de avançar na pesquisa do presente e delicado tema que se estenda a objetos que nos causam polêmica e dúvidas no tempo recente. Diz o professor que um olhar que se justifica naquilo que se chama: parte das franjas (SCHMITH, 1990, p. 261) do corpo social, e acrescentamos também sociocultural de nossa gente.

Construir uma ‘história invertida’ é tarefa bastante ingrata, porque feliz ou infelizmente constatamos ser ainda ser difícil de aceitar hoje ainda, pois faz do historiador um atrevido no mundo científico moderno, também nos reiteramos! Até mesmo entre os seus pares, há repugnâncias claras para comportamentos desse tipo! Para tê-los, recomendamos muita precaução e cuidado face ao isolacionismo que pode sofrer da academia. São temas malditos! Corre-se o risco de sofrer muito, inclusive de solidão!

A recomendação aqui se deve ao fato de quase sempre ser ele absolutamente característico de um desbravador, ou seja, funciona para o pesquisador, quase sempre, como pular de um bungee jump, sempre em e para um espaço pouco conhecido ou até desconhecido mesmo. Por serem, na maioria das vezes, reveladores de múltiplos pontos de observação principalmente em se tratando do social e sociocultural de nossa gente principalmente por aqui, conceitos audaciosos e abordagens geralmente corajosas espelham severas crises de consciências na coletividade acadêmica social e sociocultural em um mundo moderno que vive hoje tomado pela avassaladora e surpreendente modernidade, envolvida em abordagens novas e novidadeiras como globalismos locais em constantes e velozes colisões com os localismos globais na névoa surpreendente da informática e suas anomalias para nós, que nos trazem sempre o veloz, moderno e modernosamente inusitado desafio de enfrentarmos o absolutamente impositivo, pesado, revelador principalmente de nossas doenças sociais e socioculturais como o preconceito e suas mazelas inexoravelmente impossíveis de serem esquecidas.

 Que fazer então diante de problemas assim? Simplesmente fugir, repugnar-nos, fechar nossos olhares como se passássemos a fazer parte do grupo dos adeptos que praticam o ‘não vejo, não falo, não ouço...?’. Ora, ora, para quem e em que se inscrevem igualmente seus problemas materiais, são sempre dignos de observação algum tempo, quase sempre ‘depois da festa de oposições’, negativas e/ou positivas e também acusações de terem sido feitas, movidos sempre e seguramente por ‘classificações apressadas’.

Assim, verificar a problemática do ‘excluído social’, do ‘eliminado social’ no Brasil fluminense, principalmente o de favelas dos dois últimos séculos, em termos de construção das formas de ‘reprodução da ordem social e sociocultural’ mesmo no que concebemos como a periferia social de nossa gente, como um braço menor dela, mesmo sendo até seu ‘braço podre’, é visto como sabemos, como uma forma de mesmice que afeta mortalmente a lógica conhecida e até o raciocínio por aqui infelizmente.

Cremos, com o perdão dos que desconfiarem de nosso atrevimento acadêmico por aqui, que devamos nos atrever também a isso. Por mais audazes que sejamos e parceiros de uma meta-história, ou seja, o exercício de vê-la como oposição a ela mesma, porque dialética, pulsante, como algo que tem vida todo o tempo, enfim, tem corpo e, se move e afronta até mesmo a ordem e surpreendentemente a sua ordem, gera sempre no observador a necessidade de estudos e questionamentos exaustivos. Questões como as formas de exploração, organização, identidade e dominação em nossa história, sempre em nossa concepção, foram dignas de um olhar mais atrevido!

Observar sua existência quantitativamente entre nós, em número de pessoas, é apenas o primeiro passo para isso. O fato que nos surpreende e até assusta, em se tratando de uma história social e sociocultural local e/ou mesmo global que se pretende uniformizadora e padronizadora como temos atualmente até como e por herança, exigirá de nós sempre muito mais! Um novo olhar se fará sempre necessário! Há que se verificar a amplitude das injustiças sociais e socioculturais na e da ‘ordem social’ que temos e vivenciamos cotidianamente, sempre! Elas são sempre inerentes ao seu próprio funcionamento.

Apresentar dois planos de realidades sociais, ou socioeconômicas ou socioculturais para abordar a problemática da primeira das duas referidas figuras (o excluído social), é tarefa árdua e espinhosa, mas o primeiro plano é o sociocultural porque nos afeta em nosso dia a dia. O segundo é o sócio-econômico (GEREMEK, 1976, p. 34).

Também como sabemos, o elemento, pela recusa, afasta-se do referencial que a ordena, razão pela qual acaba assumindo a tão falada recentemente condição de ‘excluído social’. Ora, nesse caso, ela pode codificar as passagens de uma cidadania plena para a pouco conhecida porque pouco explorada ‘marginal’ e desta então para a de ‘excluído social’, estabelecendo-se para isso até mesmo o ritual de tal mudança, ou passagem.

A apresentação do ‘eliminado social’ (FORRESTER, 1997) que, por meio das contradições oriundas do ‘sistema capitalista’, que em muitas de suas desiguais práticas denuncia-se mesmo como injustas, por isso mesmo as denominamos ‘uma forma de capetalismo’ (tudo que deriva de coisas maléficas do sistema como um todo) que sai ou tem saído algumas vezes pela tangente, mas sai e nos surpreende sobremaneira hoje em dia, em muitos momentos de sua/nossa história social e sociocultural, geram tais tipos de roupagens novas que temos que nos acostumarmos a utilizar no tempo presente em que vivemos.

Talvez hoje coisas como a simples supressão do emprego constituiria fator importante? Será que poderia ser a nova dança do capital, ou ela sempre tocou essa música e não percebemos? Dizer que a dança do capital sempre foi essa nos parece um pouco demais, pois nos lembra a permanência de coisas execráveis como o ‘preconceito’, a ‘luta pela manutenção de uma vil desigualdade social e sociocultural’ como herança historiográfica entre nós! Não cremos que a pós-escravidão que vivenciamos até o tempo presente seja algo humanamente possível de ser assumido plenamente por nós sem que tenhamos severos choques na sociedade.

O indivíduo que fica desintegrado, condenado à humilhação em muitas situações nas favelas deve passar de acusado a autoacusador do que é ou foi desde a infância, vítima também. Um mundo vil como o que temos hoje e eivado de um crescente sintoma de ser cada vez mais desigual em seu pluralismo social e sociocultural no seu local global tanto quanto no seu global local certamente terá dificuldades de convívio no que entendemos como a pax-urbanus; um novo olhar na parte de suas ‘franjas sociais e socioculturais’ deve ser buscado, para que se busque com mais clareza e certeza de objetivos sociais claros ao propósito de isso ser absolutamente do nosso fazer acolhedor! Ora, o emergente sem trabalho passa a sofrer mais consequências desastrosas na vida e duramente são as mesmas, as já incansavelmente conhecidas.

Mas, sabemos que as explorações capitalistas no quadro desvantajoso em que o lucro quase sempre beneficia os detentores do capital vigoram não podem nem devem continuar sua saga de produzir sempre perdedores que, em seu desesperado processo de perda, acabam derivando ou já são derivados para a fatídica formação de ‘fatídicas sociedades paralelas’ entre nós, como as abrigadas em ‘favelas’, nosso principal e fundamental mosaico social e sociocultural urbano de hoje por aqui.

Impotentes diante do gigantismo de uma economia globalizada, sequer conseguem perceber o quadro que se forma em seu entorno. Quase sempre vivem acometidos de uma verdadeira ‘crise de percepção’! O poder, outrora visível, torna-se invisível, porque passa a pertencer a um grupo por lá nessas áreas geográficas. No que tange à escolha, tipificados como ignorados, mas, numerosos em tipologias, seguem sua trajetória inexorável de miséria! O poder político então permanece quase sempre com aparência de quem está ‘fingindo’ que trata com a seriedade merecida, e questões como a do trabalho são desprezadas, as migalhas lhes são sempre deixadas, como sabemos. Qualquer interesse sobre esses supostos inúteis das favelas que criminam como hábito, que vivem do irregular quase sempre; da informalidade quase sempre de suas vidas vividas, considerados pelos da ordem como ‘excluídos’ e/ou ‘eliminados sociais e socioculturais’ deve-se ao fato de ainda serem eleitores!

Assim sendo, vivendo uma vida como indefesos face aos desafios que suas vidas acabam experimentando por contingências infinitamente múltiplas, têm que enfrentar quase aparentemente, isolam-se numa espécie de ‘redoma social’ ou abrigam-se em outro ‘corpo social e sociocultural’, onde quem os acompanha são seus iguais e/ou pretendentes a ser pela pura mimese praticada costumeiramente pelo envolvimento cultural, sem nenhuma exposição poiética em suas práticas de vida.

Acabam por pensar e agir, quase sempre, em desalinho ao formal, ou seja, à ordem social e sociocultural que temos. Justificam sua existência em outro mundo social, ajustando habilidades e qualidades aos novos desafios que se lhe apresentam?

A existência do ‘eliminado social’ e do ‘excluído social’ é plausível somente dentro de outro ‘mundo social’, o qual chamamos de ‘Sociedade Paralela’. Embora este termo não seja do agrado de muitos, Jean Claude Schmith o apresenta com veemência e segurança suficientes, o que nos credencia a adotá-lo aqui. Notamos que, no caso fluminense, chega a se confundir eventualmente com a ordem. Seriam seus ‘vasos comunicantes o ingresso e a saída contumaz que fazem entre os dois mundos, camuflando-se’, pois, apresentam sinais de identidade sempre confusos, geralmente difíceis de explicar pela ótica da ordem (SILVA, 1997).

São ingredientes obrigatórios dela. Seu comportamento é mais violento, se comparado ao da ordem? Discursos e cultura com sinais diferentes e não totalmente lidos ou apropriadamente lidos por aqui maculam e permanecem de forma virótica entre nós. Enfim, temos claro que configuram um corpo que merece sempre um olhar mais verticalizado, como já dissemos, ou seja, serem lidos urgentemente em e por nossa história social e sociocultural no urbano de um urgente Brasil do tempo presente.

Discussão do modelo: classificação social do tempo presente

A historiografia contemporânea brasileira pouco privilegia aqueles que permaneceram à margem, ou melhor, como ‘excluídos’ dos setores produtivos da sociedade. Construir uma história invertida é urgente e necessário; sabemos ser tarefa bastante ingrata, pois faz do historiador um grande atrevido no mundo científico, até mesmo entre os seus pares há repugnâncias claras para comportamentos desse tipo não temos dúvidas disso.
Para tanto, verificar a problemática do ‘excluído social’, do ‘eliminado social’ é uma mesmice que afeta mortalmente a lógica de raciocínio por aqui.

É possível codificar as passagens de uma dita e até desejada ‘cidadania plena’, para a conhecida como a que denominamos de ‘a marginal’, que discordamos, por ser local, hoje ‘local global’ no embate do difícil diálogo com o desafiador ‘global local’ trazido pela revolução tecnológica de nossos dias!

E é preciso que tenhamos clara tal realidade também observável por aqui. Senão como se poderia explicar fenômenos musicais modernos como o velho ‘semba’ e o ‘samba’ atual? Foi pelas contradições do ‘sistema capitalista’ que tais tipos sociais surgiram e ainda surgem. ‘Crioulo’ é o mais brasileiro modelo de nos classificarmos!

Modernamente seria dizer que por tudo que vimos e vemos nascer no nosso social, desprezível e/ou não, é forte entre nós da pós-escravidão daqui, constatar que a simples supressão do emprego por várias razões, constitui efetivamente relegar o indivíduo ao ostracismo, ao abandono social e sociocultural também, é entregá-lo ao lixo mais absoluto, é negar a ele o direito tão falada empregabilidade!

O indivíduo fica se sentindo desintegrado da vida social coletiva da ordem, condenado à humilhação, em muitas situações passa de acusado a se acusar também daquilo que é vítima, a incompetência passa a ser sua parceira. Nas ‘favelas’ julga-se com o olhar daqueles que os julgam e culpam-se na maioria das vezes! Num mundo como o que temos hoje, vil, muito mais que acolhedor, pela competição desenfreada que impõe às práticas do capitalismo, o emergente sem trabalho passa a sofrer mais duramente as consequências da exploração capitalista. Sente-se assim, impotente diante do gigantismo de uma economia que tem iniciado seus passos no sentido avassaladoramente de uma talvez modernosa globalização, que ainda carece de uma mais verossímil e efetiva decodificação para transformar-se logo, logo em uma ‘globalizachão’!

Esta sequer consegue perceber o quadro que se forma em seu possível destino urbano, hoje repleto de perigosas favelas, onde quase sempre pessoas vivem acometidas de uma verdadeira crise de percepção! Por lá o poder geralmente e outrora visível torna-se violento e até mesmo invisível aos olhos, porque passa a pertencer a um ‘grupo’, e/ou ‘grupos’, no que tange à escolha, que inclusive por aqui é pouca e, extremamente tipificada. Como ignorados, porém numeroso em tipologias de pessoas ligadas ao quadro da economia capitalista da informalidade, seguem sua trajetória inexorável de absoluta miséria.

O que esperar desses espíritos já atormentados pela ausência do Estado? Assim, nesse quadro, qualquer interesse existente sobre os vistos inúteis, ‘excluídos’ e/ou ‘eliminados sociais’, acabam por portar comportamentos desviantes, o que se deve ao fato de ainda ser eleitores é o que os inclui socialmente queremos crer!?

Até agora tem sido assim o aparecimento dos personagens que formariam a ‘crioulada’ em que configuramos todos nós daqui. Acabam por pensar e se comportar quase sempre em desalinho ao formal obviamente por lá. Justificam sua existência em outro mundo social, o que denominamos de ‘paralelo’, no qual passam a se enquadrar mais perfeitamente. Ajustando assim suas habilidades e qualidades aos novos desafios que se lhe apresentam na nova vida e passam a construir talvez uma nova identidade sociocultural, a que chamamos de ‘a do diferente’.

Assim, a hipótese da existência do ‘eliminado social’ e do ‘excluído social’ é plausível, dentro de outro ‘mundo social’, o qual chamamos de ‘Sociedade Paralela’. Nele são ingredientes obrigatórios: o comportamento mais violento que o da ordem; seus discursos e cultura apresentam sinais diferentes e ainda não totalmente lidos por nós; enfim, configuram um corpo que merece ser lido urgentemente em nossa história social e sociocultural, pois ‘crioulos’ somos todos nós mesmos! Mas, não podemos jamais agir como o tico-tico que sempre acaba criando filhos (crias e/ou creas) dos outros.

Referências

CORTEZÃO, Maria. Globalismos locais e localismos globais. In: SANTOS, Boaventura de Souza. Produzir para viver. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Coleção Reinventar a emancipação Social para novos manifestos.

FORRESTER, Viviane. O horror econômico. Trad. Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora da Unesp, 1997.

GEREMEK, Bronislaw. Les marginaux parisiens aux XIV et XV siècles. Paris: Flamarion, 1976.

LE GOFF, Jacques. História nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

SANTOS, Boaventura de Souza. Produzir para viver. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Coleção Reinventar a emancipação Social para novos manifestos.

SCHMITH, Jean-Claude. História dos Marginais. In: LE GOFF, Jacques. História nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

SILVA, Eduardo Marques. A Sociedade Paralela: a ordem do diferente. Rio de Janeiro: Archetypon, no 15, 1997.

Publicado em 19 de agosto de 2014.

Publicado em 19 de agosto de 2014

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