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Funk: cultura popular e o preconceito linguístico

Patrícia Luisa Nogueira Rangel

Licenciada em Letras (UERJ); mestranda em Letras e Ciências Humanas (Unigranrio); professora da rede pública do Estado do Rio e de Nova Iguaçu

José Geraldo Rocha

Doutor em Teologia (PUC-Rio); coordenador do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Letras e Ciências Humanas (Unigranrio)

Introdução

O presente artigo visa apresentar aspectos do movimento funk como cultura popular, que reflete, pelas letras de suas músicas, marcas linguísticas peculiar de um grupo. Na história do negro e de movimentos culturais dos primórdios da sociedade carioca, a linguagem de suas músicas, danças e rituais sofreram críticas por parte de uma sociedade elitista e, em alguns casos, tentativa de anulação. Trataremos da questão do funk como movimento contemporâneo que também sofre preconceito linguístico da mesma classe dominante, que prestigia a norma culta e desmerece os outros falares por considerá-los inferiores e, portanto, desvaloriza qualquer iniciativa que represente a linguagem de uma classe excluída – negros e pobres –, mas se faz presente e compreensível dentro do seu espaço. Nesse sentido, observaremos as marcas linguísticas presentes nas músicas dos MCs, o que permite uma reflexão sobre a variação linguística, uma vez que a linguagem atende a uma relação sociocomunicativa entre os integrantes de um determinado grupo.

Além de toda a polêmica em torno do funk, há também o preconceito linguístico, em que as pessoas criticam o linguajar apresentado nas músicas como sendo de nível inferior. No entanto, este artigo abordará aspectos relevantes que colaboram para a reflexão sobre a linguagem popular como reflexo de uma cultura e o preconceito linguístico que esse tipo de linguagem enfrenta.

O presente trabalho será abordado em três seções: a história da linguagem popular, o preconceito linguístico e as marcas linguísticas da linguagem popular nas letras de música de funk.

A primeira seção falará da imposição de uma língua que privilegia a classe dominante. Inicialmente, o ensino do português aos índios, em que o tupi desapareceu como primeira língua. Depois, com os negros vindos da África, que usaram várias táticas para resistir à nova língua e preservar a sua, pois representava contexto, cultura e história de um povo. Por esse motivo, as interferências no português foram algo inevitável, produzindo assim uma linguagem popular.

A seção seguinte tratará do preconceito linguístico, pois, com o surgimento de uma linguagem à margem do que a elite definiu como certo (a linguagem popular), surge também um repúdio à nova forma ou às novas formas de falar.

A última seção, a terceira, considerará o funk como movimento popular vitimado pelo preconceito linguístico de uma classe dominante. Além disso, serão feitas algumas considerações sobre marcas linguísticas da linguagem popular presentes nas músicas.

Para o contexto histórico da língua popular no Brasil, serão usadas as obras de Rodrigues (2010), Mello (1981) e Freyre (1988). As obras de Bagno (1999, 2002) e Cunha e Cintra (2004) abordam o tema do preconceito linguístico. Sandmann (1993), Aulete (2004), Maior (1998), Preti (1984) e Lúzio e Rodrigues (2011) contribuirão para as considerações das marcas linguísticas presentes nas letras de músicas de funk. Sobre o funk, usaremos a obra de Medeiros (2006) e Essinger (2005).

Linguagem popular: sua história

Os negros vindos da África para serem escravizados no Brasil eram oriundos de várias regiões e apresentavam multiplicidade e matizes dos seus dialetos. Nessas condições, o navio negreiro se tornava uma Babel.

Ao chegar ao Brasil, os negros eram tratados como inferiores, desde a sua linguagem até sua cultura. Dessa forma, eles eram obrigados a aprender o português para falar com os brancos, mestiços e crioulos. No entanto, conforme Rodrigues (2010), os negros adotaram uma língua geral africana para que os companheiros de escravidão se entendessem, o que pode ser considerado um processo de resistência ao novo idioma.

Melo (1981) conta que, com a chegada dos portugueses com sua língua românica, os índios, que tinham como língua materna o tupi, abandonaram-no e passaram a usar a língua dos dominadores, apesar de aprenderem mal e desfigurá-la como reflexo de seus hábitos linguísticos.

Com os negros, houve resistência de modo pacífico; como resultado, influenciou fortemente o português. Grandes exemplos de mantenedoras das marcas linguísticas africanas são as mucamas e as mães-pretas, que criavam e ensinavam os “sinhozinhos”.

Freyre (1988) declara que as duras palavras com que os portugueses dirigiram às crianças foram adocicadas pelas amas; o vocabulário infantil passou a ter encantos como “dodói”, palavra dengosa substituindo “dói” dos adultos; uso de palavras meigas – cacá, pipi, papá, bumbum, neném, au-au, bambanho etc., tirando a solenidade dos nomes próprios, como Dondons, Toninhas, Totonhas para Antonias; e Nezinho, Mandus, Manés para Manuéis e outros.

Também as canções de berço portuguesas, modificou-as a boca da ama negra, alterando nelas palavras, adaptando-as às condições regionais; ligando-as às crenças dos índios e às suas. Assim, a velha canção “escuta, escuta, menino” aqui amoleceu-se em portuguesa em “durma, durma, meu filhinho”, passando Belém de “fonte” portuguesa a “riacho” brasileiro (FREYRE, 1988, p. 327).

Outra forma de resistência é a contação de história. Freyre (1988) comenta que as velhas negras modificavam as histórias portuguesas acrescentando elementos das histórias africanas. Com isso, as contadoras de histórias puderam conservar seu patrimônio cultural e linguístico, além de ressignificar sua identidade.

A necessidade de resistência da preservação da linguagem africana também está relacionada à preservação da sua cultura, principalmente religiosa. A linguagem funciona como elemento de identidade e permite a comunicação entre os atores desse processo, além de possibilitar a união e fortalecimento do grupo e da cultura.

As línguas gerais dos negros dividiam-se em nagô ou iorubá na Bahia e o quimbundo nas outras regiões. Melo (1981) afirma que o quimbundo era considerado principal por abranger uma área maior geograficamente e maior número de falantes, além de possuir vocabulário mais rico. As línguas gerais eram desprovidas de flexões; portanto, ao adquirir o português como segunda língua, além do sotaque peculiar, os negros passaram a incorporar essa característica, a redução de flexões.

Melo (1981) acrescenta que os filhos e netos dos escravos africanos dominavam melhor a língua padrão da época; no entanto, a influência do contato com os negros mais velhos fez com que houvesse retardamento linguístico. Nesse sentido, constituiu-se um processo de resistência à língua portuguesa nas camadas populares, apresentando uma linguagem descuidada, de maneira que a linguagem popular de antes e de hoje apresenta reflexos da influência africana.

Havia uma disparidade entre a língua escrita e a língua falada. Freyre (1988) aponta que a língua falada apresentava-se em duas formas: linguagem da casa-grande, representando o poder, a elite, a classe dos dominantes; e a linguagem da senzala, representando o povo. A escrita, por sua vez, recusava-se a submeter-se à língua falada.

Ainda segundo o autor, quando os padres jesuítas foram substituídos por padres-mestres e capelães de engenho na educação dos brasileirinhos, tentaram anular a influência africana que estava tomando conta das casas-grandes, e para isso usavam o latim e a gramática, além das varas e palmatórias de sicupira.

Frei Miguel do Sacramento Lopes Gama, um dos que se indignavam quando ouvia “meninas galantes” dizerem “mandá”, “buscá”, “comê”, “mi espere”, “ti faço”, “mi deixe”, “muler”, “coler”, “le pediu”, “cadê ele”, “vigie”, ”espie”. E dissesse algum menino em sua presença um “pru mode” ou um “oxente”, veria o que era beliscão de frade zangado.

Para Frei Miguel – padre-mestre às direitas – é com os portugueses ilustres e polidos que devíamos aprender a falar, e não “com tia Rosa”, nem “mãe Benta”; nem com nenhuma preta da cozinha ou da senzala. Meninos e meninas deviam fechar os ouvidos aos “oxentes” e aos “mi deixe” e aprender o português correto, do reino. Nada de expressões bundas nem caçanjes (FREYRE, 1988, p. 334).

De acordo com Melo (1981), a influência africana no português popular foi mais profunda do que a indígena. Contudo, conforme Rodrigues (2010, p. 134), ela, a influência africana, foi ignorada, como tudo que se refere ao negro, como todos os estudos “do conjunto das línguas africanas introduzidas no país, com a origem dos vícios do nosso falar, a determinação da influência por ela exercida como fator de corrupção sobre o português da antiga metrópole”.

Com o tempo, ocorreu a instalação de um sistema educacional oficial, em que o ensino da norma culta passou a ser identificada como língua portuguesa ou português, e “o uso que não está consagrado nessa ‘norma culta’(o uso que não está abonado nas gramáticas normativas e nos dicionários) simplesmente ‘não existe’ ou ‘não é português’”, de acordo com Bagno (2002).

A linguagem popular, então, ficou limitada às classes bem humildes das áreas urbanas e dos interiores, onde o acesso à educação era negado, contribuindo assim para o analfabetismo muito grande. Bagno (2002) aponta que esse modo de conferir legitimidade à norma culta condena todas as outras manifestações linguísticas ao rótulo de “erro”.

Como a educação ainda é privilégio de poucos, muitos vivem à margem do uso da norma culta; consequentemente, os usuários da linguagem popular que dominam regras da modalidade oral – ou seja, linguagem não padrão – são vítimas de vários preconceitos, inclusive o linguístico.

Linguagem popular: preconceito linguístico

A maioria dos brasileiros é de negros e pobres que não têm acesso à educação e a outros serviços e a condições humanas. Bagno (1999, p. 16) afirma que “da mesma forma como existem milhões de brasileiros sem terra, sem escola, sem trabalho, sem saúde, também existem milhões de brasileiros sem língua”.

Ainda para o autor, eles, os milhões de ‘sem-língua’, falam o português, no entanto numa variedade não padrão, desprestigiada, ridicularizada pelos falantes ou simpatizantes do português culto, mas que atende às necessidades comunicativas da comunidade em que estão inseridos, sofrendo transformações para adequação de novas necessidades, e possibilita uma relação interpessoal. Afinal, a variação linguística, como a cultura, é resultado de um processo histórico e social.

Qualquer manifestação linguística que escape desse triângulo escola-gramática-dicionário é considerada, sob a ótica do preconceito linguístico, “errada, feia, estropiada, rudimentar, deficiente”, e não é raro a gente ouvir que “isso não é português” (BAGNO, 1999, p. 40).

Há um tipo de preconceito, denominado linguístico, que abarca a sociedade dominante, privilegiando um tipo de falar com base na norma culta. Segundo Bagno (2002), o gramático e historiador português João de Barros, no século XVI, escreveu que dever-se-ia seguir o modelo de língua dos ‘barões doutos’, homens da nobreza; o francês Vaugelas, no século XVII, considerava modelo de língua ideal o da corte, a parte sadia; no século XX, a Inglaterra julgou como modelo de uso da língua o inglês da rainha; o gramático e filológico brasileiro dizia que o aluno devia falar melhor que os melhores.

Ainda segundo o autor, no uso da palavra “melhores”, subtende-se que há outros níveis, inclusive os piores, os que falam “pior”, mostrando que os detentores de poder acreditam que bom e válido é o que está ao seu redor e deve ser modelo a ser seguido por todos os elementos que compõem a sociedade.

Não é proposta por Bagno (2002) a substituição da norma padrão por uma outra atualizada, pois indicaria a instalação de um novo modelo; consequentemente, surgiriam outras, pois a língua é viva e está sujeita a processos de mudanças e variedades.  Entretanto, é proposto encarar a língua nas suas múltiplas manifestações.

Cunha e Cintra (2001) explicam que a língua padrão é sempre a mais prestigiosa; funciona como modelo e ideal linguístico de uma comunidade. Ao lado da força inovadora, a força conservadora age contrarregrando, a fim de garantir a unidade linguística do país.

Os autores também compreendem que a variação está condicionada de forma consistente dentro de cada grupo social, faz parte da competência linguística de seus membros e ocorre em todos os níveis – fonético, fonológico, morfológico, sintático etc.

A imposição de uma única norma linguística comum a todos os brasileiros, segundo Bagno (1999), é um desrespeito à diversidade existente nos níveis social, etário, econômico, geográfico, escolar, uma vez que o Brasil é possuidor de grande extensão territorial e, com isso, o português apresenta alto grau de diversidade e variabilidade; consequentemente, apresenta diferenças regionais bem marcadas.

Estudos atuais, principalmente da Sociolinguística, têm visto a língua como fenômeno sociocultural, complexo e pode assumir diversas formas.

É, pois, recente a concepção de língua como instrumento de comunicação social, maleável e diversificado em todos os aspectos, meio de expressão de indivíduos que vivem em sociedades também diversificadas social, cultural e geograficamente. Nesse sentido, uma língua histórica não é um sistema linguístico unitário, mas um conjunto de sistemas linguísticos, isto é, um diassistema, no qual se inter-relacionam diversos sistemas e subsistemas. Daí o estudo de uma língua revestir-se de extrema complexibilidade (CUNHA; CINTRA, 2001, p. 3).

O preconceito linguístico contra as letras de música funk faz parte de um sistema de ideologia em que a sociedade elitista defende o português padrão como mecanismo de exclusão e discriminação, além de classificar o falante como elemento inferior – em geral são negros e pobres.

Marcas linguísticas na música de funk

O funk é movimento cultural e musical que começou no Rio de Janeiro, na década de 1970, importando o ritmo dos EUA. Começou na casa de show Canecão, em Botafogo, área nobre do Rio, e acabou indo para o subúrbio e comunidades, onde passou a ter identidade própria: música de negro e favelado, conforme Essinger (2005) e Medeiros (2006).

O número de adeptos do movimento foi crescendo muito, a mídia apresenta os MCs e suas músicas. No entanto, não são só flores, pois a sociedade dominante ainda critica toda a cultura funkeira e as letras das músicas, por considerarem de nível inferior. O preconceito linguístico ainda é muito forte pelas marcas linguísticas, reproduzindo a oralidade.

Bagno (2002) afirma que, na prática, deve-se olhar para língua dentro de um contexto histórico, cultural e social e considerá-la também uma atividade social, como um trabalho realizado conjuntamente pelos falantes que interagem pela fala ou pela escrita.

A língua como atividade social, conforme Bagno (2002), é o processo e o produto, pois não é uma ferramenta pronta, mas criada à medida que vai sendo usada, de forma que a língua é uso e também resultado do uso. As experiências, seu saber linguístico e as praticas linguísticas de seu ambiente são reconhecidas como válidas para a sociedade elitizada, assumem formas estereotipadas, com base no que já foi analisado na primeira seção: a linguagem popular no Brasil sofreu grande influência dos negros, elementos inferiorizados social e culturalmente.

As letras de funk são escritas, em geral, por moradores de comunidades, muitos com baixa escolaridade, de modo que, em suas composições, é evidente a presença de marcas que reproduzem a linguagem popular do local. São palavrões, gírias, simplificação e redução de palavras e inadequações do uso da escrita, entre outros.

Palavrões

Uma das marcas linguísticas presentes na linguagem musical do funk são gírias e palavrões ou palavras de baixo calão. Esse uso faz parte de determinado campo semântico que pode ser interpretado de acordo com o contexto em que está inserido, levando em consideração a interação comunicativa, que possibilita a compreensão dos elementos envolvidos – emissores e receptores.

De acordo com Sandmann (1993), a reação diante dos palavrões não é emocionalmente neutra – sentimento de sagrado, de proibido ou desagrado. As pessoas reagem de formas diferentes diante de vários palavrões, levando em consideração sexo, idade e nível social.
Para o autor, atualmente o palavrão, que acaba sendo pronunciado com frequência, é dito, mas não é levado ao pé da letra. Faz parte do cotidiano das pessoas, principalmente entre jovens.

Palavrão (pa.la.vrão) sm. Palavra que é considerada ofensiva, de mau gosto, cujo uso é considerado falta de educação (...).
Encicl.: Certas palavras podem, ou não, ser consideradas ofensivas, segundo lugar, época, contexto e também segundo o sentido e até mesmo a entonação com que são usadas. Nesse dicionário, as palavras ger. consideradas como palavrões vêm identificadas por tabu (AULETE, 2004, p. 586).

 
Como o funk é um movimento que atrai muitos jovens, o uso de palavrões passa a ser incorporado às letras de música e não é visto como algo estranho; compõe a variante linguística daquele grupo, porém, para a sociedade dominante, que preza como referencial o uso da língua à base da norma culta, os palavrões são discriminados, são verdadeiros tabus linguísticos.

Não olha pro lado, quem tá passando é o bonde/Se ficar de caozada, a porrada come/Não olha pro lado, quem tá/passando é o bonde/Se ficar de caozada, a porrada come/As mina aqui da área no baile se revela/Não importa o que eu faça, vira moda entre elas/Fala mal do meu cabelo e da minha maquiagem/Ô coisa escrota, pode falar a vontade... (MC BEYONCE, Fala mal de mim).

Na música Fala mal de mim aparece a palavra “porrada”, que não é vista como palavrão, mas soa um tanto agressiva, de forma que virou uso constante na linguagem informal relacionando-se à violência propriamente dita ou indignação verbal. O palavrão “escrota” está relacionado ao órgão genital – escroto, bolsa que contém os testículos –, mas acaba sendo usada com significado de chamar outra pessoa de vulgar, desprezível e insignificante.

A classificação de linguagem grosseira ou obscena, para Preti (1984), é difícil, uma vez que a definição é variável no tempo e no espaço. Não é a definição em si que irá classificá-la, mas o contexto e a situação comunicativa.

Maior (1998) afirma que alguns que são contra o palavrão admitem o uso em determinadas ocasiões e comenta que Cacilda Becker defende o uso de palavrões no teatro porque atende às necessidades de esclarecimento do público, num país normalmente culto, e quando usado dentro da arte é absolutamente justificado.

Por essa lógica, por ser uma manifestação cultural, seria justificado o funk ter palavrões na sua linguagem musical. Até porque o palavrão nunca teve uso tão generalizado como hoje, atendendo, assim, ao seu público.

O funk é uma linguagem popular, muitas vezes, vítima do preconceito linguístico, e é encarado como um tabu. Preti (1984) declara que o linguajar vulgar está relacionado às classes mais baixas da sociedade, e o uso de palavrões funciona como uma válvula de escape diante do inconformismo social, visto que é revestido de humor trágico, agressividade e metáforas amargas.

Outra marca linguística presente na linguagem do funk é o excessivo uso de gírias e termos específicos que compõem o universo discursivo dos moradores de comunidades, que são construídos a partir de suas experiências e relações comunicativas. As gírias representam as realidades, com significados reais para a cultura do grupo.

Gírias

Gíria, de acordo com Aulete (2004, p. 403), é uma “linguagem peculiar que se origina de um grupo social restrito e alcança, pelo uso, outros grupos, tornando-se de uso corrente”. Caracteriza um grupo social, funcionando como identidade. Trata-se de um código linguístico que diferencia um grupo de outros.

A história mostra que a gíria foi construída sob o preconceito, considerada língua marginal, de negros e pobres, ou seja, excluídos da sociedade. Nesse contexto, não havia interesse nessa modalidade oral, tendo em vista que a tradição era valorizar a língua portuguesa nos moldes da norma culta.

A gíria, segundo Preti (1984), se divide em duas categorias; uma é específica de um grupo e só é aberta aos iniciados daquele grupo; a outra é comum, pois surge como código linguístico de um grupo e se torna comum por ser incorporada a todos os falantes da língua social popular.

Maior (1998) comenta que, para o povo, usar a língua dos gramáticos é como ir à praia de fraque, cartola e calçado. O povo usa uma linguagem espontânea, cria palavras e dá outros sentidos às já existentes. O uso frequente dessas palavras, com o tempo, vai alcançando a elite, que passa a reconhecê-las oficialmente, vitória natural sobre a resistência da norma oficial. Uma prova disso é o registro de gírias e palavrões criados pelo povo em dicionários como os de Aurélio Buarque de Holanda, Silveira Bueno e Raimundo Girão.

Como a gíria está presente no dia a dia da sociedade e nas comunidades, onde a linguagem musical do funk tem sua força de composição, não é de estranhar que as letras de música apresentem essa marca linguística nem a criação de novas palavras e expressões que provoquem maior interação entre os interlocutores.

Não olha pro lado, quem tá passando é o bonde/Se ficar de caozada a porrada come/Não olha pro lado, quem tá passando é o bonde/Se ficar de caozada, a porrada come/As mina aqui da área, no baile se revela/Não importa o que eu faça, vira moda entre elas/Fala mal do meu cabelo e da minha maquiagem/Ô coisa escrota, pode falar a vontade/Essa mina recalcada não arruma um namorado/Não mexe com o meu, não sou de mandar recado/Fala mal de mim na roda dos amigos/Que coisa, garota, eu nunca fiz nada contigo/Se entrar no meu caminho, vai ficar perdida/Oh, rata molhada, se mete na tua vida/Não adianta, não tem vergonha na cara/Fala mal de mim, mas é minha fã encubada (MC BEYONCE, Fala mal de mim, 2012).

“Bonde”, como gíria, refere-se a grupos de amigos que estão sempre juntos. “Caozada” é o mesmo que mentira, com intenção de enganar. “Mina” significa mulher ou jovem do sexo feminino. O termo “recalcada” é empregado para designar pessoas invejosas que se revoltam com a vitória das outras e querem ter o que os outros têm. A gíria “encubada” ou “incubada” significa que a pessoa reprime seus sentimentos.

Outro exemplo do uso de gírias na linguagem musical funk é a música Quer saber da minha vida vai na macumba (2013), do MC TG 10 de Mesquita, que critica os fofoqueiros. Ele utiliza as gírias “bolação” e “caozada”. “Bolação”, no funk, vem de “bolado”, que na música refere-se à pessoa que está muito chateada, revoltada ou irritada com algum acontecimento ou com alguém.

Detesto gente fofoqueira/Isso dá bolação profunda/Quer saber da minha vida/Vai na macumba/Isso dá maior caozada/Isso dá bolação profunda/Da minha vida cuido eu/E você cuida da sua/É TG 10 que tá falando/Quer saber da minha vida/Vai na macumba.

Além das apresentadas, algumas gírias ou expressões já estão incorporadas à sociedade, como bombado (lugar animado e agitado); cachorra (mulher sem pudor); demorô (sim, afirmação); falô (tchau, até mais); já é (igual a “é isso aí”); ninguém merece (chatear); poposuda (mulher de bunda grande); responsa (confiável ou divertido); rolê (passear); tá dominado (está tudo sob controle); tá ligado? (entendeu?); X9 (informante); zoar (agitar).

Marcas de oralidade

A linguagem popular sofreu grande influência dos negros africanos. E o reflexo é visto nos dias de hoje, principalmente nas classes mais baixas. O funk é movimento cultural oriundo das comunidades em que a predominância é de negros e pobres; logo, marcas da linguagem popular, modalidade oral, aparecem muito frequentemente na elaboração das músicas, pois a escrita é a representação gráfica dessa mesma fala.

A fala é diferente da escrita sob muitos aspectos; cada uma dessas modalidades tem características próprias, mas uma influencia a outra, especialmente a fala na escrita. Segundo os gramáticos, a oralidade é mais fácil, mais usada em nosso dia a dia; permitem-se alguns “erros”, enquanto a escrita é mais complexa, rígida, rebuscada. A oralidade, talvez por ser mais usada, deixa muitas vezes suas marcas em textos escritos (LÚZIO; RODRIGUES, 2011, p. 8).

Mello (1981) afirma que uma das características da linguagem popular é a simplificação e a redução das flexões. As desinências de plural tornam-se raras e somente o primeiro determinante da frase é flexionado – “As mina aqui da área no baile se revela/Não importa o que eu faça, vira moda entre elas/Fala mal do meu cabelo e da minha maquiagem” (MC BEYONCE, Fala mal de mim, 2012).

Ainda segundo o autor, os verbos também sofrem com a simplificação das flexões, como em “Nós incomoda/O nosso bonde é foda/Ninguém segura se tô de raia curta/As amigas na pista/Tamos de rolê” (MC DEBBY, Nós incomoda, 2012): só há flexão de pessoa, e não de verbo.

Outro exemplo de marcas de oralidade é do MC Duduzinho com o funk Normal, mamãe passou açúcar em mim: “Elas para tudo onde chega, ela chama atenção/Porque aqui no baile funk ela é a sensação/Chamei ela de gostosa e ela respondeu assim/Normal, mamãe passou açúcar em mim”. Além da falta de concordância verbal entre pessoa e verbo (elas para x elas param), há o emprego inadequado do pronome relativo “onde”.

Onde indica lugar físico (= lugar em que), enquanto “aonde”, palavra de deveria ser empregada, indica movimento (=o lugar a que); mas, de acordo com Cunha e Cintra (2001), na linguagem coloquial essa distinção é praticamente nula.

Bagno (2002, p. 38) ratifica ao informar que o pronome relativo “onde” possui “caráter plurissemântico (...) desde a fase mais remota da língua portuguesa até os dias de hoje, sempre foi usada com referência a muito mais coisa do que ao ‘lugar concreto, espaço físico’”.
 
A subjetividade é um elemento comum nas marcas de oralidade, de acordo com Lúzio e Rodrigues (2011) e está presente em quase todos os funks. Os MCs cantam como eles se veem, o que eles pensam, e não seguem um padrão, pois é influenciado pelo social, pela cultura, pelo nível de escolarização e pelas experiências vividas.

É que eu tava passando/Abriu meu coração/Quando eu olhei pro lado/Vi aquele belo mulherão/Ao som do tamborzão/Ela me enfeitiçou/Nesse placar deu um gol pro nosso amor/Rebola pra mim/ Menina, dança pra mim (MC PAIXÃO, Rebola pra mim, 2012).

Não vou parar não/Ele me olha toda vez que eu to descendo/Tô dançando/Dando pala de calcinha/Todos eles estão olhando/Quanto mais eles me olham/Eu continuo descendo/Eles continuam olhando/Eu não tô nem aí/Se tua mina não tá gostando (MC DEBBY, Segura teu namorado, 2012).

Lúzio e Rodrigues (2011) comentam que outra característica da marca de oralidade é a escrita fonética. Em vários momentos aparecem “tamos”, “tá”, “tô”, “pra”, no lugar de “estamos”, “está”, “estou” e “para”, respectivamente.

Enfim, a língua oral reproduzida na escrita é reflexo do contexto situacional e comunicacional e da relação entre falantes e ouvintes.

Considerações finais

Por este artigo podemos concluir a linguagem popular no Brasil sofreu grande influência dos negros escravos oriundos da África, pela docilidade das mucamas e mães-pretas e das contadoras de histórias. Essa influência é refletida na linguagem atual de negros e pobres, em especial de comunidades muitas vezes associadas às suas manifestações culturais.

A visão do dominador quanto à inferioridade dos citados faz com que tudo que vem do povo seja classificado como de pior qualidade, de forma que sua linguagem sofre preconceito linguístico. Nesse sentido, a linguagem musical do funk, por ser “coisa” de negro e favelado, apresentando muitas marcas de oralidade, acaba sendo vitimada pelo preconceito de uma classe que preza a norma culta como sendo única e imutável e que deixa de reconhecer outros falares como válidos. É mais uma variação da língua.

O uso de marcas de oralidade nas letras de música no funk não desprestigia o movimento, uma vez que reflete a realidade em que está inserido, atende às necessidades de comunicação e influencia, como os excluídos no período colonial, com gírias e expressões, no dinamismo da língua. É mais uma variação da língua.

Referências

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BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz.São Paulo: Loyola, 1999.

BAGNO, Marcos; GAGNÉ, Gilles; STUBBS, Michael. Língua materna: letramento, variação e ensino. São Paulo: Parábola, 2002.

CUNHA, Celso; CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

ESSINGER, Silvio. Batidão: uma história do funk. Rio de Janeiro: Record, 2005.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 1998.

LÚZIO, Ellen Regina Camargo; RODRIGUES, Marlon Leal. Marcas de oralidade em textos escritos. Web revista páginas de debates: questões de linguística e linguagem, nº 17, out. 2011. Disponível em http://www.linguisticaelinguagem.cepad.net.br/EDICOES/03/Arquivos/07%20Ellen%20Regina%20Camargo.pdf. Acesso em 25 mai. 2013.

MAIOR, Mário Souto. Dicionário do palavrão e termos afins. Rio de Janeiro: Record, 1998.

MEDEIROS, J. Funk carioca: crime ou cultura? O som dá medo. E prazer. São Paulo: Terceiro Nome, 2006.

MELLO, Gladstone Chaves de. A língua do Brasil. Rio de Janeiro: Padrão, 1981.
PRETI, Dino. A gíria e outros temas. São Paulo: EdUSP, 1984.

RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. Biblioteca Virtual de Ciências Humanas. Rio de Janeiro, 2010.

SANDMANN, Antônio José. O palavrão: formas de abrandamento. Revista Letras, v. 42, 1993. Disponível em ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/índex.php/letras/article/view/19127/1247. Acesso em 25 mai. 2013.

Publicado em 19 de agosto de 2014

Publicado em 19 de agosto de 2014

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