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Vida, tragédia e política

Cândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

Em momentos como o que estamos vivendo nestes dias, com a morte trágica de Eduardo Campos, homem público com ampla exposição por sua candidatura à Presidência da República pelo PSB, todo mundo é levado a pensar sobre a vida e seus porquês, como mortes prematuras e tragédias que ela carrega como segredos. Quando a tragédia ceifa a vida de alguém que de algum modo está muito presente no cotidiano, nas notícias e nos debates, ela catalisa de algum modo a atenção da coletividade, atinge a todos, vira um grande fato político. A tragédia, no caso, nos muda porque muda a própria política, esse cimento que funciona como liga invisível das relações e contradições que nos fazem um povo.

Gostaria de compartir, com esta minha crônica, algumas reflexões que tenho feito ao longo de meus anos. Tenho 69 anos, completados dois dias antes da tragédia que sofreu Eduardo Campos. No final das minhas férias, estava animado para escrever sobre o dom da vida. Era para ser uma celebração, pois me considero um agraciado por chegar até aqui com vontade de ir desfrutando do dom de viver que me foi passado por pessoas muito queridas, o pai e a mãe, o avô e a avó, compartido com meus irmãos mais novos, entes que já se foram mas estão em mim ao mesmo tempo. Eles são anônimos para o círculo maior em que vivo, em que todos e todas vivemos. Aliás, a vida se realiza sempre em coletividade, em círculos, do familiar, dos amigos, do lugar comum em que vivemos no dia a dia até a sociedade mais ampla com quem compartimos identidade e língua, cultura e história, projetos, sonhos e políticas, cidadania. Hoje, depois da fantástica experiência do Fórum Social Mundial, sinto-me um privilegiado membro da nascente cidadania planetária. O meu círculo, como relação efetiva e experiência prática, abarca o planeta Terra. Outro dia, a pedido da neta e dos netos, peguei um mapa-múndi e sinalizei os países onde já estive. São mais de 80! Até eu me espantei com essa cruzada de cavaleiro andante por outro mundo possível. Mas não sou nem pretendo ser uma pessoa que “sintetiza o seu tempo”, como meu inspirador Gramsci considerava as figuras públicas com capacidade de condensar os grandes desafios de sua época, os formuladores de ideias capazes de mobilizar multidões e formar hegemonias na sociedade.

Diante da tragédia da semana passada, minha crônica ficou mais focada na relação entre vida e tragédia com implicações políticas. Limito-me à minha experiência, desde meus primeiros passos na política e no meu tempo histórico, algo de meados de 1950 para cá. Vivi e testemunho – com olhar do meu tempo pessoal e de onde eu estava, claro – alguns acontecimentos trágicos que marcaram e marcam profundamente a política até hoje.

Minha primeira experiência política como tragédia marcante foi o suicídio de Getúlio Vargas, também num mês de agosto do meu aniversário, em 1954. A tragédia no meu caso tem um fato antecedente. Criança ainda – sou de 1945 – eu pouco sabia da grande política, a não ser o fato de que meu pai, lá no interior de Erechim, Rio Grande do Sul, ouvia rádio todas as manhãs e comentava com a mãe e visitantes da casa as notícias. Em 1953, toda a família viajou mais de 40km na boleia de um caminhão de segunda mão de meu pai para participar, na cidade, da primeira Festa Nacional do Trigo. A produção do trigo foi instituída como política nacional de substituição de importações por Vargas, e Erechim era um dos principais centros produtores. Isso eu aprendi muito depois. Mas a festa do trigo foi de tal importância que o próprio presidente se fez presente. Lembro dele discursando na praça central; não do que disse, mas do entusiasmo da multidão aplaudindo o líder emblemático – gaúcho, por sinal. O ato seguinte, já em 1954, foi seu suicídio, o fim trágico daquele homem que tanta energia despertou naquela, até então, para mim, multidão. Acho que me tornei parte da política, sem saber, nessa introdução e desfecho. Hoje sei que Vargas tem um antes e um depois dele na nossa história. Mas que tragédia marcante em minha vida!

Limito-me a algumas tragédias de grande impacto político que também me impactaram em particular. Criado em casa como católico e posto no seminário capuchinho com 13 anos, estava lá quando o papa João XXIII apareceu com o seu aggiornamento e a convocação do Concílio Vaticano II. O impacto desse papa de passagem muito rápida na vida da Igreja Católica foi monumental. Lá na ponta onde eu estava, chegou a Teologia da Libertação e toda uma motivação para engajar-se na transformação da sociedade. Eu mudei radicalmente e devo a esse momento meu engajamento por direitos e igualdade social que carrego até hoje. A morte do papa João XXIII não foi numa tragédia, mas foi como se fosse. Eu deixei o seminário em 1966, ao completar 21 anos, mas o legado desse papa moldou-me como cidadão do mundo.

Aí veio Che Guevara. A Revolução Cubana e o emblemático líder Che Guevara são marcantes em minha geração. Sua prisão e assassinato na Bolívia foram trágicos para a nossa geração. Em 1968, foi publicado o Diário de Che, que li emocionado no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro. Como militante estudantil de base, tomei aquele fim como o preço do sonhar por um mundo melhor. Hoje não concordo com os métodos de transformação social praticados por Che Guevara, mas mais que os métodos era o sonho de um mundo mais justo que movia minha geração, sobretudo no meio estudantil universitário em que eu estava. Até hoje a generosidade exalada pela fantástica militância de Che me emociona.

Seguindo por aí, fiquei profundamente chocado com o golpe de Estado de Pinochet e o fim trágico de Allende, no Chile. Aí não era só uma morte; acabava uma tentativa de instaurar o socialismo – o grande sonho trágico e frustrado do século XX, na versão do escritor cubano Leonardo Padura – por via democrática. Estive no Chile na celebração dos 30 anos do fim de Allende, em 2003. Visitei o estádio, convertido em campo de concentração pelo regime ditatorial de Pinochet, e me emocionei com as vela acessas no seu entorno lembrando os muitos mortos. Na verdade, Allende simboliza uma tragédia coletiva, um massacre coletivo.

Ainda lembrando algumas tragédias de impacto político que eu vivi muito como minhas tragédias de vida, lembro aqui a de Fernando Ferrari, candidato à sucessão de Brizola no Governo do Rio Grande do Sul. Ele era um jovem líder, como Eduardo Campos, mas muito regional. Também morreu num acidente aéreo. Lembro do fato porque era a primeira vez que eu estava participando da disputa, com 17 anos, sem direito de votar. Mas sofri muito!

Participei, sem conseguir me controlar, daquela comoção coletiva que cercou o fim de Tancredo Neves. Após as Diretas Já – na minha avaliação, a maior campanha cívica vivida pelo Brasil no tempo de minha geração até agora – e o fim da ditadura, a doença e morte do catalisador político da transição do regime foi um golpe duro para o sentimento hegemônico na sociedade brasileira de então. Apesar de Sarney, sobrevivemos e até avançamos.

Por outro ângulo, lembro de mortes trágicas que, sim, mudaram a política mas não tiveram a mesma carga emocional sobre minha vida. Destaco aqui o assassinato de John Kennedy, o fim trágico da princesa Diana, o falecimento de Brizola e a morte prematura por câncer do líder venezuelano Chávez. Desses todos, tenho algo pessoal de Brizola e algo mais de Chávez. Brizola me lembra aqueles tempos de adolescência e juventude, em primeiro lugar, e depois a vitória emocionante para o Governo do Rio, em 1982. Em 1958, nos meus 13 anos, montei na boleia do caminhão, em Erechim, com o candidato Brizola para o Governo do Rio Grande do Sul. Depois, já me iniciando na participação política, vivi aquela momento mágico do Movimento pela Legalidade, defendendo a posse de Jango após a renúncia de Jânio Quadros.

Lembro de Chávez aqui, para além de sua imagem pública de líder e referência para muitos na sua Venezuela e na América Latina, por causa do Fórum Social Mundial. Fui pessoalmente apresentado a Chávez em Porto Alegre, em 2005. Participei de um almoço, sentado à sua frente, e depois no evento público no Gigantinho, com mais de 15 mil participantes. Descobri dois Chávez: o primeiro, menos público, mais pensador, no almoço, longe de multidões. Tratava-se de um líder bem informado e preparado, querendo compartir e receber ideias. No ato público, vi de bem perto o líder populista, que pouco diz, mas emociona o público. Num segundo ato, organizei o debate entre os cinco presidentes latino-americanos no Fórum Social Mundial, em Belém, em 2009. Aí descobri o Chávez afetivo. Chegou perguntando sobre meus netos e minha esposa, como se fosse alguém muito próximo. Durante o evento, na mesa ao meu lado – eu fiquei como facilitador e representante da sociedade civil –, ficou comentando com bom humor a fala dos outros presidentes. Sua morte bateu em mim como perder um amigo próximo, mas com quem convivi muito pouco. Essas pessoas públicas são personagens fantásticas, concordemos ou não com elas.

Há pessoas que nos deixam sem ser tragicamente – como Betinho e Mandela –, mas que são como partes de nós que se vão também. Eles sintetizaram o que se pode chamar de imaginário coletivo do bem-viver, do ser bom, do lutar por ideais universalizantes. Seu fim parece perda, mas acaba não sendo. São as figuras que marcam profundamente a história com o seu legado. Pode não ser para a humanidade inteira, mas para grandes contingentes humanos eles funcionam como inspiração do bem-viver, do viver com sentido humano profundo, como exemplos a serem seguidos.

Por que estou lembrando de tudo isso? Estou refletindo sobre a emoção coletiva que cercam as tragédias públicas. Mas, em última análise, as comoções com a morte, ainda mais trágica, seja no grande círculo público, seja no menor da nossa família e amigos, nos afetam igualmente. O efeito na sociedade como um todo é diferente, pois tragédias com personagens públicos afetam a coletividade inteira em questão. No centro está o dom da vida.

Viver é, radicalmente falando, conviver, compartilhar e cuidar. A vida é e não é individual. Individual é para nós. Mas nós carregamos um dom coletivo, pois a vida nos foi dada e a vivemos pelo cuidado dos demais, por compartir com os demais, por conviver e, além do mais, por passar o dom da vida adiante, de pais e mães para filhos e filhas, numa sucessão que não sabemos onde vai acabar, se vai e como vai acabar. Essas são questões que fazem parte dos porquês. A morte é condição da vida, como o nascimento. Vai acontecer. Não sabemos quando e como. Mas, cá entre nós, não precisa ser tragicamente.

Pessoas públicas sintetizam modos coletivos de conviver, de compartilhar e de cuidar. Personificam modos de bem-viver, na bela e profunda expressão indígena. Pessoas assim nos fazem pensar sobre, afinal, como vivemos. Obrigado a elas pelo legado que nos deixam. O fato real é que a vida continua, apesar de sua morte.

Publicado em 19 de agosto de 2014.

Publicado em 19 de agosto de 2014

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