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Diabruras da literatura infantojuvenil

Rodrigo da Costa Araujo

Professor de Literatura Infantojuvenil e Teoria da Literatura (Fafima), mestre em Ciência da Arte e doutorando em Literatura Comparada (UFF), coautor de Literatura e interfaces, leituras em Educação (Opção, 2011), Saberes plurais: educação, leitura & escola, Literatura infantojuvenil: diabruras, imaginação e deleite (Opção, 2012)

O pai da literatura infantil no Brasil

José Bento Renato Monteiro Lobato (Taubaté, 18 de abril de 1882 - São Paulo, 04 de julho de 1948) foi um dos mais influentes e representativos escritores brasileiros do século XX. Foi um relevante editor de livros e autor de importantes traduções. Seguindo ao precursor Figueiredo Pimentel (Contos da Carochinha) da literatura infantil brasileira, ficou popularmente conhecido pelo conjunto de sua obra de livros infanto-juvenis, que constitui aproximadamente metade da sua produção literária.


José Bento Renato Monteiro Lobato

Antes de Lobato, a literatura para crianças e jovens no Brasil despontou no final do século XIX e utilizava várias traduções e adaptações de contos de fadas europeus e clássicos universais aqui chegados via Portugal.

Lobato foi o primeiro a dedicar-se à literatura infantil e a libertar o gênero da tutela escolar e didático-moralizante para alçá-lo à categoria de arte maior. A começar pelas traduções, Lobato não só se propunha a refazê-las, levando em conta “o linguajar” brasileiro, como a adaptar as obras à realidade das crianças.

Em 1921, publicou Lúcia ou A menina do narizinho arrebitado e O Saci; em 1922, Fábulas e O Marquês de Rabicó; em 1924, A caçada da onça; em 1932, Viagem ao céu; em 1933, História do mundo para crianças e Novas reinações de Narizinho; em 1935, Aritmética da Emília e Geografia de Dona Benta; em 1936, Memórias de Emília; em 1937, Serões de Dona Benta, Histórias de Tia Nastácia e O Poço do Visconde; em 1939, O Minotauro e O Sítio do Picapau Amarelo; em 1942, A chave do tamanho; e, em 1944, Os doze trabalhos de Hércules.

Sem dúvida nenhuma, Lobato – conhecido como pai da literatura infantojuvenil brasileira – foi o primeiro escritor brasileiro a acreditar na inteligência da criança, na sua curiosidade intelectual e capacidade de compreensão. Autor engajado, comprometido com os problemas de seu tempo, tinha um projeto definido: influir na formação de um Brasil melhor por meio das crianças.

Pela abrangência e significação de sua obra, Lobato deixou inúmeros seguidores e até hoje influencia muitos autores que se consideram seus herdeiros. Sem dúvida, ao criar o Sítio do Picapau Amarelo deu ambiência brasileira às histórias; povoou-o com personagens tipicamente tropicais, instaurando um ciclo de criação norteada pelo nacionalismo, pelo humor e pela ironia que estão presentes em todas as direções tomadas pelo conjunto de sua obra: o folclore, os mitos, as lendas, a fantasia, os domínios do inconsciente, a informação e o realismo, além da tradução de clássicos universais, sempre procurando resgatar criticamente o real.

Literatura infantil ou apenas literatura?

Literatura é uma maneira de ir exorcizando tanta coisa vista, sentida e – sobretudo – reprimida.
Lygia Bojunga

Toda a função da arte consiste em inexprimir o exprimível, em arrebatar à língua do mundo, que é a pobre e poderosa língua das paixões, uma fala outra, uma fala exata.
Roland Barthes

Pensar a literatura infantil é, primeiramente, pensar em algumas reflexões. O que é uma literatura voltada para o público “infantil”? O que distingue esse gênero da literatura destinada ao público adulto? Qual a ideologia por trás da obra dita infantojuvenil? Essas são, dentre várias, algumas perguntas plurais que podem circular num primeiro contato com textos literários ou livros voltados para o público “infantojuvenil”.

Refletindo sobre essas perguntas, a literatura infantil configura-se enovelada nas questões que envolvem a educação, na intenção (e tensões) das relações adulto/criança, no texto e no leitor, na dependência infantil em relação ao adulto, na emancipação do receptor, nas intricadas relações em que predominam o didatismo do texto e os valores estéticos.

Talvez por isso Carlos Drummond de Andrade tenha questionado esses aspectos:

o gênero “literatura infantil” tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá música infantil? A partir de que ponto uma obra literária deixa de constituir alimento para o espírito da criança ou do jovem e se dirige ao espírito do adulto? Qual o bom livro para crianças que não seja lido com interesse pelo homem feito? Qual o livro de viagens ou aventuras destinadas a adultos, que não possa ser dado a crianças, desde que vazado em linguagens simples e isento de matéria de escândalo? Observados alguns cuidados de linguagem e decência, a distinção preconceituosa se desfaz. Será a criança um ser à parte, estranho ao homem e reclamando uma literatura também à parte? Ou será a literatura infantil algo de mutilado, de reduzido, de desvitalizado, porque coisa primária, fabricada no pressuposto de que a imitação da infância é a própria infância? Vêm-me à lembrança as miniaturas de árvores, com que se diverte o sadismo botânico dos japoneses; não são organismos naturais e plenos; são anões vegetais. A redução do homem que a literatura infantil implica dá produtos semelhantes. Há uma tristeza cômica no espetáculo desses cavalheiros amáveis e dessas senhoras não menos gentis que, em visita a amigos, se detêm a conversar com as crianças de colo, estas inocentes e sérias, dizendo-lhes toda sorte de frases em linguagem infantil, que vem a ser a mesma linguagem de gente grande, apenas deformada no final das palavras e edulcorada na pronúncia... Essas pessoas fazem oralmente, e sem o saber, literatura infantil. [...] A literatura infantil se configura não só como instrumento de formação conceitual, mas também de emancipação da manipulação da sociedade. Se a dependência infantil e a ausência de um padrão inato de comportamento são questões que se interpenetram, configurando a posição da criança na relação com o adulto, a literatura surge como um meio de superação da dependência e da carência por possibilitar a reformulação de conceitos e a autonomia do pensamento.

A literatura infantojuvenil, não obstante as amplas conquistas na sociedade pós-moderna, ainda infelizmente tem sido vista por muitos leitores e pseudo-escritores de forma pejorativa ou simplesmente como mero instrumento de intenção didático-pedagógico-educativa. Muitas vezes isso leva a crer ou mesmo induz a pensar que o significante “infantil” assume, semanticamente, para muitos, o valor de infantilidade, como se a menoridade do leitor infantil fosse transferida (e transcrita) ao texto literário, tornando-se assim, erroneamente, uma espécie de pseudoliteratura ou uma literatura marginal.

Com esse pensamento, o lugar ocupado pela literatura infantojuvenil na arte literária reflete, de algum modo, o lugar ocupado pela criança na sociedade, já que ela, inserida na concepção de mundo regida pelo adulto, ocupa um lugar de “inferioridade social”.

Esse mesmo viés de leitura é estudado criticamente em Ligia Cadermatori ao refletir sobre o conceito de literatura infantil; por isso ela afirma: “a principal questão relativa à literatura infantil diz respeito ao adjetivo que determina o público a que se destina” (1994, p. 8). A literatura infantil, então, atrelada a um adjetivo, pressupõe que sua linguagem, seus temas e o seu ponto de vista objetivam um tipo de destinatário em particular, diz a estudiosa no assunto. A literatura, puramente enquanto substantivo, ao contrário, não predetermina seu público, supondo que este seja formado por quem quer que esteja interessado nela.

Por outro lado, como afirmam Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1984), apesar da depreciação com que o gênero é reiteradamente considerado, tem se tornado um relevante segmento da indústria editorial, além de integrar os currículos universitários. O fato é que, mesmo sendo considerada “menor” ou “marginal”, a obra infantil parece ainda mais difícil que a voltada para os adultos, uma vez que precisa superar o ranço pedagógico e utilitário e o comprometimento com as “facilidades sentimentais”.

Críticos como Khéde (1983) e Cadermatori (1994) observam, portanto, que essa adjetivação do gênero denota uma limitação em razão da escolha de um público específico – “infantil” e “juvenil” – como distinto e separado dos receptores da obra literária em geral. E isso, na opinião de Khéde, tem como causa o próprio contexto cultural em que se verifica a bipartição entre o mundo do adulto, com seus valores a serem alcançados, e o mundo infantil, com seus “defeitos” a serem “corrigidos”.

Nesse sentido, e contrariamente a todas essas limitações, pensar a literatura infantil é antes de tudo pensar literatura. Não podemos, de forma alguma, desvincular a literatura da literatura infantojuvenil. Elas não se opõem, muito pelo contrário. Dialogando e reforçando esse discurso, Ana Maria Machado, em Contracorrente (1999) e Texturas (2001), sublinha que o importante ao pensar a literatura infantil é o substantivo literatura e não o adjetivo infantil. Dessa forma, não se trata simplesmente de livros para crianças; antes trata-se de literatura, de textos, que, rejeitando o estereótipo, apostam na invenção, na criatividade e no valor estético.

Assim compreendido, o espaço textual da literatura infantil, como o da literatura, é formado por um conjunto de elementos semiambivalentes. O deciframento é sempre uma escolha. E se o texto ou obra infantil entendidos como jogo barthesiano da escritura-leitura só passarão a existir a partir de sua recriação numa leitura subjetiva e individual, a cada fruidor – seja infantil, juvenil ou adulto –, a obra se apresentará, diferentemente, entre si mesma e ao mesmo tempo completa e incompleta.

Nesse plano, o texto literário é entendido como objeto de prazer que está constantemente estruturando-se, mantendo-se num estatuto da enunciação. Essa estruturação infinita do texto, que Barthes chama significância – espaço específico onde se redistribui a ordem da língua –, faz-se sensorial: o sentido das coisas nasce de nossos sentidos, é o sentido produzido sensualmente, o corpo e sua vivência, a fragmentação e a cultura, disseminação de suas características segundo fórmulas desconhecidas.

De qualquer forma, é preciso pensar que o que importa para a qualidade na literatura infantil é o valor literário do texto, a sua literariedade, sem perder de vista os aspectos sociais, históricos, religiosos e filosóficos que perpassam o texto. Portanto, é sempre importante lembrar algumas reflexões sobre esse gênero:

1. A literatura infantojuvenil é, antes de tudo, literatura;

2. Ela deve ser conceituada pelos elementos internos na condição de obra literária, mas não pelo seu receptor ou pela intenção ideológica veiculada por uma escola ou autor;

3. O livro para crianças, inserido na sociedade pós-moderna, capitalista e altamente consumista, é um objeto sedutor, atraente e, por isso mesmo, utiliza recursos como ilustração, formato, funcionando como suporte ou intenção, muitas vezes, para fins mercadológicos. Outras vezes, por trás da aparência escondem-se valores distorcidos ou uma “falsa literatura infantojuvenil”;

4. O interesse da criança por alguma obra está relacionada a vários fatores, dentre eles o contexto social em que vive, o tipo de relação com o livro, seu estágio psicológico, o contato anterior com outros livros etc. Portanto, querer que a obra seja escolhida, definida e conceituada pelo receptor exclusivamente – a criança – pode gerar muitos conflitos ou fortalecer o mercado capitalista e a continuação de um sistema de dominação;

5. A literatura infantojuvenil deverá ser, na maioria das vezes, em primeiro lugar, a obra de um artista, um artesão da palavra, que provocará o prazer e o diálogo, a imaginação, o lúdico por meio do dramático de sua técnica, mas principalmente um trabalho que realiza com a linguagem pela palavra;

6. Os textos e a literatura infantil vivem no mundo discursivo da textualidade e dos diversos meios expressivos; portanto, é preciso ler esses recursos linguísticos com a organização de linguagens, na maioria das vezes como prática intersemiótica;

7. A literatura infantil contemporânea, semelhante às ideias levantadas por Lucrecia Ferrara em A estratégia dos signos (1981), deve refletir sobre questões essenciais da modernidade: o estranhamento, o distanciamento, a recepção, o dialogismo e a paródia; a dialética escritura-leitura;

8. A literatura infantojuvenil não pode desprezar a figura do receptor e seu processo de recepção, diferentes em qualquer outra produção-recepção artística;

9. O livro aparentemente ingênuo esconde outros discursos, outras linguagens, inúmeras leituras;

10. O texto, a leitura e o leitor e, muitas vezes, o autor estão intimamente relacionados no trabalho com a literatura infantojuvenil.

Enfim, apesar do forte apelo mercadológico que a escola apresenta, a literatura infantojuvenil tem se libertado do pedagogismo e do moralismo que a aprisionavam e a tornavam problemática. No entanto, permanece nesse gênero a dificuldade que lhe é inerente: a de ser escrita por adultos para crianças.

Ela, de qualquer forma, no contexto contemporâneo e influenciada pelos meios de comunicação, impõe uma reflexão sobre as diversas linguagens que interferem no código literário, obrigando-o a novas transformações. Do diálogo com o cinema e com as artes plásticas surgem obras que privilegiam a imagem, a fragmentação, a montagem, a intertextualidade, a citação dos diversos discursos, sem, contudo, perder o jogo lúdico e atraente. Desse recurso híbrido, a ilustração surge extremamente aperfeiçoada e integrada à narrativa, porém amplificada pelos diversos recursos, revitalizando a obra em si.

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Publicado em 26 de agosto de 2014

Publicado em 26 de agosto de 2014

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