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Quando chegar o momento...

Luiz Alberto Sanz

Lars Säfströmautor


Este artigo foi publicado quando da produção e distribuição do filme Dora na Europa; esse filmeserá exibido na mostra Arquivos da Ditadura, no Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio de Janeiro nesta semana.

Quantas pessoas na Suécia refletem sobre o fato de o Brasil corresponder a um terço do conceito América Latina tanto no que se refere à população quanto à superfície? Que 100 milhões dos 300 milhões de latino-americanos têm o português e não o castelhano como idioma materno?
Apesar de um vigoroso debate sobre a América Latina, tendemos facilmente a esquecer o Brasil.
(Da escravidão à escravização,
Magnus Mörner)

Seu nome era Maria Auxiliadora Lara Barcellos, mas a chamavam Dora. Tinha 31 anos, nascida e criada no Brasil. No dia primeiro de junho de 1976, atirou-se e morreu sob um trem de metrô em Berlim Ocidental. Por quê?

Muitas pessoas migram de um país para outro, em fuga, buscam um lugar para viver e dali trabalhar pela liberdade de seu povo. Os cineastas Luiz Alberto Sanz e Lars Säfström querem mostrar no seu filme um pedaço do mundo que essas pessoas encontram.

“Quando chegar o momento,
este meu sofrimento,
vou cobrar com juros...”

Assim diz uma estrofe do samba Apesar de Você, escrito pelo mundialmente famoso compositor brasileiro Chico Buarque de Hollanda. O samba não pode ser cantado no Brasil. Está proibido pela Censura brasileira que reprime duramente qualquer tentativa de descrever corretamente a situação no país.
Dessa estrofe tiramos o título de um filme sobre uma jovem brasileira que se matou há cerca de dois anos. O filme trata dela e do que a levou à morte.

Dora nasceu em 1945 na cidade de Antonio Dias, Minas Gerais, Brasil, filha de um agrimensor. Seu pai era obrigado a viajar muito, levando a família junto. Dessa maneira, Dora entrou cedo em contato com as condições aberrantes que predominam no interior brasileiro. Ela conta no filme como, aos 14-15 anos, trabalhou como professora em uma favela miserável e como, dessa forma, tentou pagar uma dívida. Tinha podido estudar e agora queria ensinar o que aprendera na escola. Foi também por esse tempo que ela decidiu se tornar médica. Ela achava que, como médica, talvez pudesse ajudar mais do que como educadora.

As entrevistas com Dora foram filmadas durante seu exílio no Chile, entre 1971 e 1973, e são trechos de dois filmes que tratam, ambos, da tortura nas prisões brasileiras. O primeiro, Brazil, report on torture, foi realizado por dois cineastas americanos, Saul Landau e Haskell Wexler; o outro, No es hora de llorar, é dos cineastas Pedro Chaskel, chileno, e Luiz Alberto Sanz, brasileiro. Sanz também correalizou e participou de Quando chegar o momento...

Dora entrou na Faculdade de Medicina em Belo Horizonte em 1965. Um ano antes, em 1964, os militares tinham derrubado o presidente progressista João Goulart e transformado o país em uma ditadura militar.

Na universidade, Dora vai encontrar a polícia e os militares. O Governo queria controlar as atividades das entidades estudantis. Contra isso e pela recuperação das liberdades democráticas, o movimento estudantil se reorganizou em todo o País. Dora participou desse trabalho.

A 28 de março de 1968, a Polícia Militar atacou o restaurante, policlínica e escola para adultos que os próprios estudantes administravam no Rio de Janeiro. O governo não podia tolerar iniciativas que dessem aos pobres a oportunidade de forçar as barreiras que impediam o povo de ter acesso à cultura e à tecnologia.

A repressão que estudantes e trabalhadores receberam como resposta às suas reivindicações empurrou parte do movimento de resistência para a ação armada direta. Assim nasceu a guerrilha urbana no Brasil.

No dia 21 de novembro de 1969, Dora foi presa e levada para o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) no Rio de Janeiro. Ali, foi duramente torturada, assim como seus camaradas. Vários amigos de Dora morreram na prisão.

Em janeiro de 1971, setenta presos políticos foram trocados pelo embaixador suíço no Brasil, Enrico Bucher. Viajaram para o Chile, banidos e proibidos de voltar ao Brasil. Dora era uma desses 70. No grupo estavam também Luiz Alberto Sanz e Reinaldo Simões. Reinaldo viveu com Dora até a sua morte, e o filme se baseia, parcialmente, no seu relato. Tanto Luiz quanto Reinaldo moram agora na Suécia e trabalham pela anistia no Brasil. É sua única possibilidade de voltar.

No Chile, Dora retomou seus estudos de Medicina. Depois do golpe militar de setembro de 1973, ela e Reinaldo conseguiram, com grandes dificuldades, sair do Chile por meio da Embaixada do México. Foram primeiro ao México, que não lhes deu asilo. Com vistos de turista, viajaram para a Bélgica, depois a Paris e daí, via Colônia e Bochum, chegaram a Berlim Ocidental.

No filme, Luiz e Reinaldo visitam os lugares na França e na Alemanha onde Reinaldo e Dora viveram. A viagem mostra, juntamente com cartas e anotações deixadas por Dora, um pedaço da Europa que é o que cabe aos refugiados políticos. É uma Europa que, apesar dos belos discursos sobre direitos humanos e solidariedade com os perseguidos políticos, está longe de ser o refúgio que muitos exilados imaginam.

Dora e Reinaldo encontraram essa Europa na forma, entre outras, de permanentes provocações da polícia e das autoridades. Em Bochum, onde graças à atuação de uma entidade religiosa frequentaram um curso intensivo de alemão, foram obrigados a apresentar-se três vezes ao dia à delegacia de polícia mais próxima. Isso durante todo o período da Copa do Mundo de Futebol de 1974, realizada na Alemanha Ocidental.

Em Berlim Ocidental, Dora recomeçou a estudar Medicina. Ela havia terminado seus estudos no Chile, mas, em consequência do golpe, não tinha recebido o diploma. Sem documentos, não havia como comprovar a graduação.

Logo foram acusados de terem entrado ilegalmente na Alemanha Ocidental e proibidos de deixar Berlim Ocidental. Seu pedido de asilo só foi respondido depois da morte de Dora.

Durante a estada em Berlim, um dos amigos mais próximos de Dora, Angelo Pezzutti, morreu num acidente de motocicleta em Paris. Dora queria ir a Paris encontrar Carmela, a mãe de Ângelo, ser solidária, mas a polícia proibiu-a de deixar a cidade.

Uma compacta incompreensão sobre sua participação no Brasil e no Chile, um permanente e crescente isolamento, uma identificação constante como terrorista, tudo isso acabou por quebrar Dora. Ela não suportou a pressão inerente ao o exílio em um meio tão inamistosamente construído. Foi isso que matou Dora.

“O refugiado político é sempre um estrangeiro”, diz Reinaldo no filme. Talvez o filme possa contar um pouco do que significa viver excluído de sua terra natal, ter seus amigos mais chegados espalhados pelo mundo todo, ser obrigado a adaptar-se a uma nova cultura sem saber se e quando poderá voltar.

Ficha técnica do filme:

  • Luiz Alberto Sanz (direção, roteiro e participação)
  • Lars Säfström (direção, roteiro e produção/SL&S Film - och Videoproduktion)
  • Reinaldo Simões (argumento, roteiro e participação)
  • Staffan Lindquist (fotografia, câmera e produção/SL&S Film - och Videoproduktion)
  • Leonardo Céspedes (som direto)
  • Elisabeth von Horn (direção de produção)
  • Duração: 58’

Publicado em 09 de setembro de 2014

Publicado em 09 de setembro de 2014

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