Desafios na escolarização da criança com necessidades educativas especiais

Angélica F. B. Monteiro

Mestranda do Curso de Mestrado Profissional em Diversidade e Inclusão pela Universidade Federal Fluminense. Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Benjamin Constant (IBC). Membro do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Processos, Produtos e Inovação Tecnológica para o Ensino de Deficientes Visuais - NDVIS.

Glauca T. Aragon

Doutora em Geociências pela UFF, professora da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, do Curso de Mestrado Profissional e Diversidade e Inclusão da Universidade Federal Fluminense e do Curso de Atualização em Geografia da Fundação CECIERJ. Membro do Núcleo de Desenvolvimento de Produtos e Processos Inclusivos na Perspectiva da Surdez (NDPIS) e do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Processos, Produtos e Inovação Tecnológica para o Ensino de Deficientes Visuais - NDVIS.

Resumo

Neste estudo investigamos a escolarização da criança com necessidades educativas especiais (NEEs), em especial a inclusão de alunos com deficiência visual e surdez, além da formação de professores da Educação Básica para as práticas inclusivas. Pesquisas evidenciam dificuldades no fluxo escolar e no processo de inclusão, o que nos faz crer que muitos professores ainda não se consideram preparados para a promoção das práticas mencionadas. Foi observado que hoje a maioria dos currículos das licenciaturas já contemplam disciplinas sobre esse tema, todavia estas ainda são insuficientes para atender às demandas das escolas em relação ao processo inclusivo.

Palavras-chave: Inclusão; Formação inicial e continuada de professores.

Introdução

No Brasil, a conquista do direito à educação vem sendo uma luta histórica de grupos que veem a escola como alternativa para melhores condições de vida. No entanto, até hoje um dos maiores desafios da educação continua sendo sua oferta de qualidade a todos e, quando pensamos na garantia desses direitos à pessoa com deficiência, a situação fica ainda mais complexa.

A defesa do direito à educação para pessoa com necessidades educativas especiais (NEEs) no Brasil teve início basicamente em meados do século XX, com a Constituição Federal de 1946 (BRASIL, 1946), que reconheceu a educação como direito universal. A partir da década de 1970, o atendimento educacional ao aluno com NEEs foi institucionalizado e passou a fazer parte da “Educação Especial”, contudo esta se caracterizava como um sistema segregador (MAZZOTTA, 2012). Já na década de 1990, especialmente a partir das Declarações de Educação para Todos e de Salamanca (UNESCO, 1990; 1994), a cultura da inclusão se ampliou, tornando crescentes as legislações definindo o papel da escola e da sociedade frente a uma educação “para todos”.

Hoje, passados mais de 20 anos das referidas declarações, escolas ditas inclusivas ainda enfrentam dificuldades no atendimento aos alunos com NEE. E como superar tais dificuldades? Como estabelecer estratégias para uma inclusão mais efetiva? Propomos repensar os percalços que envolvem a inclusão de fato e a formação docente para práticas inclusivas, relacionando as dificuldades destas às insuficiências da formação inicial e continuada de professores.

Inclusão

A inclusão é um direito constitucional, e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996) a enfatiza ao garantir o atendimento educacional especializado a estudantes com NEEs preferencialmente na rede regular de ensino. Mas o conceito de inclusão está além do que determina a legislação; não significa a simples inserção de pessoas no mundo do qual têm sido alijadas, é um processo contínuo de absorção do aluno com NEEs pela escola regular, o que pressupõe adaptação da instituição e da cultura escolar (GLAT; BLANCO, 2009, p. 32).

A Educação Inclusiva propõe um novo pensar e agir da escola, alterando práticas discriminatórias e excludentes exercidas até então. Para que a escola avance em seu processo inclusivo de forma a acolher todos os seus alunos, ela precisa investir em formação, rever seus recursos didáticos, metodologias e práticas avaliativas (GLAT; BLANCO, 2009, p. 16). Tais atitudes implicam o respeito às diferenças de forma que as necessidades de cada um sejam atendidas. Mas e o professor? Será que sua formação o “preparou” para as demandas referentes aos alunos com NEEs? E a formação continuada? Qual seu papel nesse contexto?

A formação dos professores para as práticas inclusivas

É unânime a opinião de pesquisadores a respeito da necessidade de mudanças na formação inicial de professores. Entre esses especialistas pode-se citar Bueno (1999), Glat; Pletsch (2012), Pletsch (2009). Os autores citados concordam que, de modo geral, os professores não se acham capacitados para receber os alunos com deficiência, transtornos globais, altas habilidades/superdotação. Para eles, pensar uma formação que valorize a inclusão como cultura capaz de garantir a participação e o acesso ao saber passa pela compreensão do espaço escolar como lugar onde trabalhar e formar atuem de forma articulada, onde os atores se comportem como profissionais cujo objetivo seja valorizar a presença, a participação e a construção do conhecimento junto a todos os estudantes.

Não é possível transformar práticas pedagógicas tradicionais em oportunidades reais de acesso, participação e aprendizagem sem que haja formação de um professor consciente de seu papel e da importância de repetidas e incansáveis reflexões sobre seu próprio trabalho. As Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica recomendam que “os sistemas de ensino matriculem todos os alunos, cabendo às escolas se organizar para esse atendimento” (BRASIL, 2001, p. 39). Mas o que tem acontecido a esses alunos após sua entrada na escola? Será que esta tem conseguido fazer com que eles tenham êxito em seu processo de escolarização?

Escolarização dos alunos com necessidades educativas especiais

Ao pesquisar os dados sobre a escolarização dos alunos com NEEs, percebemos que ainda estamos bem distantes do que determinam as legislações voltadas a esse grupo. Laplane e Caiado (2012), ao investigar os dados de matrícula de alunos com deficiência no Brasil pós LBD/96, relatam que houve um aumento de 107% no período entre 1998 e 2006, contudo evidenciam que eles não têm tido acesso ao aprendizado dos conteúdos escolares. Monteiro e Aragon (2014), após pesquisar os resultados do censo escolar de 2013 (INEP, 2014), observaram redução no número de matrículas entre os anos iniciais e finais do Ensino Fundamental (EF) da ordem de 6% para estudantes sem NEEs, enquanto para estudantes com NEEs essa proporção é da ordem de 76%. Estes resultados indicam que, embora os estudantes com NEE se matriculem nos anos iniciais do EF, não têm conseguido manter fluxo escolar regular, esvaziando significativamente os segmentos que se sucedem.

Atender um aluno com NEEs na sala de aula é um desafio para muitos professores, e essa situação é bastante compreensível se considerarmos que para o acesso à informação esses alunos dependem de recursos da área de tecnologia assistiva, estratégias e metodologias diferenciadas, voltadas ao atendimento de suas especificidades.

Para um aluno deficiente visual, isto é, com cegueira e baixa visão, são inúmeras as variações das suas necessidades. Laplane e Batista ressaltam que a diversidade da natureza humana soma-se à variabilidade das condições dos diferentes tipos de deficiência visual (DV) e seus efeitos no desenvolvimento e na comunicação com os outros (LAPLANE; BATISTA, 2008). Pesquisadores indicam o quanto é fundamental considerar que a imagem ou o conceito não são constituídos somente a partir do que veem nossos olhos, e sim de maneira integrada, utilizando outros sentidos e funções do organismo (MAZZARINO et al., 2011), e dessa forma os recursos e metodologias específicas são essenciais para atenuar as dificuldades provenientes da DV e facilitar o trabalho escolar e o acesso ao conhecimento.

As complexas questões relacionadas ao bilinguismo na educação de surdos estão também inseridas no contexto da Educação Inclusiva. Em uma perspectiva histórica, o oralismo foi oficializado por ouvintes como método para a educação de surdos no Congresso de Milão (1880), em detrimento das línguas de sinais. Durante um século, crianças surdas foram obrigadas a aprender e a falar línguas orais, a despeito de sua incapacidade orgânica para tal. A partir de 1990, com o movimento multiculturalista, teve início o movimento surdo brasileiro, defendendo a educação de surdos em escolas especiais, bem como o reconhecimento e a regularização da língua de sinais para ser usada em escolas e órgãos públicos (FERNANDES; MOREIRA, 2014). A Língua Brasileira de Sinais (Libras) foi reconhecida no Brasil em 2002, pela Lei no 10.436 (BRASIL, 2002), que tornou obrigatório o ensino dessa língua nos cursos de Educação Especial, Fonoaudiologia e Magistério. Entretanto ainda não é uma realidade o direito das crianças surdas à aquisição da Libras como primeira língua (L1) e a aquisição do português escrito como segunda língua (L2). Muitas vezes as crianças surdas são oriundas de famílias de ouvintes que não conhecem Libras, vivenciando grandes barreiras linguísticas e comunicativas que se aprofundam quando se inicia a escolarização formal. A realidade encontrada é de professores que não dominam Libras e intérpretes com formação deficiente, muitos deles utilizando Libras de modo bimodal, isto é, sinalizando e falando em português ao mesmo tempo. Com isso, a estrutura da Libras fica prejudicada, com a sinalização atrelada à estrutura da língua portuguesa (FERNANDES; MOREIRA, 2014). A aprendizagem das crianças surdas faz uso da língua portuguesa como língua de interação e instrução.

Os desafios da formação inicial

A escola deve se adaptar às diferentes realidades que chegam a ela; assim, em 2002 o Conselho Nacional de Educação instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica(BRASIL, 2002), conjunto de princípios, fundamentos e procedimentos a serem observados na organização institucional e curricular de cada estabelecimento de ensino e aplicados a todas as etapas e modalidades da Educação Básica. E os cursos de formação? Eles se reestruturaram para o atendimento a essas determinações? Estão conseguindo formar o professor de acordo com os pressupostos teórico-metodológicos previstos para as práticas inclusivas?

Monteiro e Aragon (2014), ao analisar as grades curriculares dos cursos de pedagogia e algumas licenciaturas de universidades do Rio de Janeiro, constataram que, apesar da oferta de disciplinas ligadas à área de Educação Especial, a maioria dos cursos limita-se a cumprir o Decreto nº 5.626 (BRASIL, 2005), oferecendo a disciplina de Libras durante um semestre, além de um ou outro crédito optativo. Os currículos de Pedagogia ampliam um pouco a gama de opções, oferecendo mais algumas disciplinas. Pode-se citar como exemplo o fato de apenas uma universidade oferecer um crédito voltado ao atendimento de alunos com DV e, ainda assim, optativo.

A partir dos resultados obtidos, as autoras sugerem a formação continuada como alternativa viável para o preenchimento de lacunas deixadas pela formação inicial e como espaço favorável à reflexão das demandas das escolas.

Considerações finais

As queixas dos professores quanto à precariedade ou inexistência de acessibilidade são comuns: falta de capacitação e impossibilidade de um trabalho mais individualizado devido ao grande número de alunos por turmas. Estudos apontam que a melhor alternativa para que as escolas superem essa realidade é construir seus projetos político-pedagógicos considerando suas dificuldades e criar espaços para a discussão delas, de forma a articular teoria e prática (GLAT; PLETSCH, 2012). Investimentos na formação inicial do professor são indispensáveis; no entanto, não pode ser o único caminho, faz-se necessário pensar sobre a prática, estabelecer estratégias de reflexão e ação no próprio ambiente escolar.

Desse modo, a formação continuada de professores pode ajudar a resolver muitos entraves presentes nas escolas. Por meio dela é possível estabelecer uma relação dialógica entre professores e gestores no intuito de alcançar práticas mais acolhedoras e eficazes no atendimento a todos aqueles presentes no espaço escolar. No que se refere à pessoa com NEEs, está claro que apenas incluí-la não é garantia de participação e aproveitamento escolar; é preciso mudar conceitos e atitudes. A formação continuada de professores se apresenta como mais um mecanismo para a conquista de uma participação mais efetiva no espaço escolar, além de ser um espaço para troca de experiências, fazendo com que o professor perceba que não está sozinho no enfrentamento dos desafios surgidos no contexto escolar.

Referências

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Publicado em 18 de novembro de 2014

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