O tratamento dado ao texto literário no campo educacional: o que mudou?
Silvio Profirio da Silva
Graduando em Letras - Português-Literatura (Universo); auxiliar de Desenvolvimento Infantil (Prefeitura da Cidade do Recife)
Resumo
Colocamos em discussão as modificações paradigmáticas e pedagógicas construídas em relação à Didática do Ensino da Literatura. Isso tem carreado modificações no espaço e/ou tratamento dado ao texto literário nas unidades educacionais brasileiras. Para concretização desses objetivos, recorremos a autores ligados ao campo da Linguística Aplicada, da Pedagogia e da Teoria da Literatura.
Palavras-chave: Didática da literatura; Texto literário; Tratamento no campo educacional.
Abstract
In this work, we put in discussion the paradigmatic changes and pedagogical constructed in relation to the Didactics Teaching of Literature. This has caused changes in space and/or treatment of the literary text, in Brazilian educational units. To achieve these objectives, resorted theoretically to the authors related to the field of Applied Linguistics, Pedagogy and Literary Theory.
Keywords: Teaching literature; Literary text; Treatment in the educational field.
No dizer de Cosson (2009), o texto literário vem, ao longo dos anos, tendo abordagem inadequada nas unidades de ensino. Ora servindo para subsidiar práticas normativas – leia-se análise e classificação gramatical (ALBUQUERQUE, 2002; 2006; BARBOSA; SOUZA, 2006) –, ora tendo sua abordagem erradicada em prol de outros registros textuais. O fato é que tais posicionamentos didáticos erradicam um trabalho pedagógico que envolva a abordagem dos efeitos de sentidos carreados pela linguagem literária, bem como a formação de leitores literários. O presente trabalho tem por objetivo colocar em discussão as modificações paradigmáticas construídas em prol da Didática do Ensino da Literatura, o que vem ensejando modificações no espaço e/ou tratamento dado ao texto literário no campo educacional.
Consoante Aguiar e Suassuna (2013), a partir dos anos 1960 uma gama de teóricos – como é o caso de Hélder Pinheiro, Lígia Chiappini de Moraes Leite, Maria da Glória Bordini, Marisa Lajolo, Regina Zilberman, Rildo Cosson e Vera Teixeira de Aguiar, entre outros – passa a colocar em pauta a Didática do Ensino de Literatura, dando destaque a diversas temáticas correlatas à prática pedagógica do ensino desse componente curricular.
Suassuna e Pereira (2013), em seus pressupostos teóricos, colocam em debate os postulados da Linguística da Enunciação, os do socionteracionismo de Vigotsky, os das Teorias da Crítica Literária e os das Teorias do Discurso, a fim de dar destaque às colaborações teóricas desses campos do saber frente ao ensino desse componente curricular.
Em meados dos anos 1980, o ensino de língua portuguesa começou a passar por grandes transformações e questionamentos, devidos principalmente ao avanço dos estudos linguísticos, que passaram a ver a linguagem, para além de mera forma ou estrutura, como interação, prática social e discursiva. É marco desse momento histórico a publicação, em 1984, do livro O texto na sala de aula – leitura e produção, organizado por João Wanderley Geraldi, o qual já continha alguns questionamentos sobre a concepção e o ensino da literatura (SUASSUNA; PEREIRA, 2013, p. 40-41).
Segundo Aguiar e Suassuna (2013), a Didática do Ensino da Literatura passa, agora, a conceder primazia à formação de leitores literários. Em outras palavras, formar leitores que consigam construir e produzir sentido frente ao texto literário. A escola, então, passa a trabalhar a linguagem literária colocando em destaque os múltiplos e diversificados sentidos carreados por essa linguagem. A perspectiva polissêmica e plurissignificativa da linguagem literária é colocada como objeto de debate nas unidades escolares brasileiras.
Esses autores efetuam uma bem sucedida retomada histórica da Didática do Ensino da Literatura. As autoras citam os postulados de Zilberman (2008) a fim de demonstrar que bem antes do despontar dessa nomenclatura – Literatura – o ensino desse componente curricular já se fazia presente na sociedade grega. Recebia, entretanto, a nomenclatura “arte poética”, concedendo primazia ao ato de ditar modelos comportamentais que abarcavam as instâncias pessoal, social e política das pessoas da época. As autoras evidenciam que, no período medieval, a Literatura emergiu de forma articulada com outros componentes curriculares – Gramática, Lógica e Retórica; no período do Renascimento, a linguagem literária assumiu o posto de padrão no que concerne à didática do ensino das línguas grega e latina.
De acordo com elas, com o passar dos movimentos revolucionários de caráter burguês, as literaturas nacionais eram inclusas nas propostas curriculares da época. Foi nessa época que a linguagem literária passou a ser trabalhada nas escolas, com a finalidade de proliferar a língua vernácula. Na fala das autoras, “a língua vernácula presente nas obras literárias passou a ser tomada como modelo de língua homogênea e nacional a ser difundido pela escola” (p. 8). Dizendo de outra forma, não havia o objetivo de abordar os efeitos de sentido acarretados pela linguagem literária, mas sim de trabalhar as normas linguísticas (regras da gramática). Tal postura é corroborada por Silva et al. (2012a; 2012b), Silva (2013), Silva e Luna (2013a; 2013b), Suassuna e Pereira (2013).
No entanto, essa não foi a única maneira como a Literatura foi abordada nas escolas da época. É nesse contexto também que a Didática do Ensino da Literatura assumiu o posto, ou melhor, uma perspectiva historicista. Em outras palavras, esse componente curricular passou a ser abordado de forma conjunta/articulada com história cronológica dos fatos. Isto é, não se estudava a linguagem literária, mas sim os acontecimentos ocorridos nas sociedades da época (AGUIAR; SUASSUNA, 2013).
Nas escolas brasileiras, esse posicionamento foi utilizado por muito tempo. A Literatura era abordada no campo educacional concedendo primazia a objetivos que deixavam de lado sentidos ensejados pela linguagem literária, dando destaque a outros fatores. No dizer de Aguiar e Suassuna (2013), no Ensino Fundamental a linguagem literária, ou melhor, o texto literário tinha o propósito de simplesmente retratar, disseminar normas gramaticais e propagar princípios de natureza moral e cívica. No Ensino Médio, essa linguagem também tinha o objetivo de divulgar as regras da Gramática Normativa e propagar a cronologia dos acontecimentos/fatos advindos do campo social brasileiro.
Sobre isso, Albuquerque (2002; 2006) e Barbosa e Souza (2006) tecem argumentos opinativos contrários à maneira como a linguagem literária era abordada nas escolas brasileiras. Dito de outro modo: o texto literário era colocado em pauta com a finalidade de abordar regras de cunho gramatical. Desses textos eram retiradas frases e palavras que, posteriormente, seriam analisadas e classificadas gramaticalmente. Isso está em consonância com Silva et al. (2012a; 2012b), Silva (2013), Silva e Luna (2013a; 2013b). Sobre isso, Aguiar e Suassuna (2013) registram em seus postulados o fato de “o texto literário ser alvo de exercícios mecânicos de fixação da norma culta e ampliação do vocabulário, e ponto de partida para a produção de redações escolares” (p. 9). Essa posição é ratificada por Suassuna e Pereira (2013).
Havia ainda outra posição didática no que se refere à Literatura. A Didática do Ensino da Literatura dava primazia à abordagem de autores canônicos e suas respectivas escolas literárias, propagando em especial suas características. Dizendo de outra forma: as escolas literárias, as características de tal escola e os seus autores eram colocados como objeto de debate nas aulas desse componente curricular. Essas duas posturas são denominadas por uma gama de autores da Linguística Aplicada e da Teoria da Literatura como “Ensino Tradicional de Literatura”, como salientam Aguiar e Suassuna (2013).
Suassuna e Pereira (2013), acerca do papel dado à Literatura nas propostas curriculares brasileiras, consideram que a esse componente curricular foi concedida uma perspectiva secundária, a qual se efetivava mediante o pouco contingente de aulas durante o decorrer semanal e, em especial, pelo ato de fazer uso do texto literário como adereço para a realização de análises e classificações linguageiras/normativas de fragmentos e trechos frasais provenientes de tal texto.
Aguiar e Suassuna (2013) mencionam os postulados da Linguística, da Teoria da Literatura e da Psicologia da Aprendizagem e seu papel no ato de ensejar modificações na Didática do Ensino da Literatura. No dizer das autoras, a partir dos postulados desses campos do saber a didática do ensino desse componente curricular passa a primar pela formação de leitores literários, erradicando, desse modo, a postura anterior, que tinha como propósito formar alunos que simplesmente recebessem e reproduzissem informações relativas a autores e a características provenientes de escolas literárias. Suassuna e Pereira (2013) aderem a esse posicionamento teórico, mencionando os postulados da Enunciação, os sociointeracionistas, os da Crítica Literária e os do Discurso com o fim a trazer à tona os contributos teóricos desses campos de investigação perante a Didática do Ensino da Literatura.
Os anos 1980 foram uma época marcada pela redemocratização do país e, por extensão, pela elaboração de inúmeras propostas curriculares de estados e municípios, as quais contaram, em maior ou menor grau, com a ampla participação dos professores. Há, inclusive, estudos importantes sobre as mudanças conceituais trazidas por esses documentos. Entretanto, o que esses estudos mostram é que as transformações foram mais evidentes no tratamento da língua propriamente dita do que na literatura. Na última década do século XX, as perspectivas epistemológicas de tratamento da linguagem se ampliaram e se diversificaram. Exemplo disso são os estudos no campo da Análise do Discurso, da Pragmática, da Teoria Literária (incluindo a Estética da Recepção), do Funcionalismo, da Análise da Conversação, da Linguística Textual, entre outros (p. 41).
Aguiar e Suassuna (2013) evidenciam que, hoje, a Didática do Ensino da Literatura prima pelo ato de formar leitores literários. Para realizar essa faceta, o texto literário e os distintos/diversificados efeitos de sentido carreados pela linguagem literária são colocados como objeto de debate nas unidades escolares, a fim de levar os alunos a dar sentido a esse tipo de texto. Na ótica das autoras, a linguagem polissêmica e plurissignificativa, ou melhor, as particularidades e especificidades do texto literário passam a ser trabalhadas no campo educacional, com o propósito de formar leitores literários.
Referências
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Publicado em 18 de novembro de 2014
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