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Mercúrio na Amazônia: a bomba relógio bioquímica
Juliana Silva Souza
Graduada em Ciências Biológicas (Unigranrio), especialista em Ensino de Ciência (UFRJ)
Gabriela Batista
Mestre em Química Ambiental, graduada em Química (UERJ), professora do IFRJ
Any Bernstein
Doutora em Biotecnologia Vegetal, mestre em Bioquímica, professora da Fundação CECIERJ
Este artigo é fruto da reunião de dois trabalhos de conclusão do curso Sustentabilidade no Contexto das Ciências, oferecido pela Diretoria de Extensão da Fundação CECIERJ. O objetivo foi levar para a sala de aula a conscientização de como se dá o processo de incorporação desse elemento nos organismos vivos e os sintomas de intoxicação. Os dois estudos de caso relatam impactos negativos do mercúrio na saúde humana, tanto no solo quanto nos rios da Amazônia. Este artigo inclui um vídeo, alguns artigos veiculados na mídia impressa e pode ser usado em sala de aula de iências.
Atualmente, a contaminação do solo e das águas superficiais e subterrâneas por metais pesados é um problema ambiental preocupante, principalmente em áreas sob influência de atividades antrópicas. Isso se explica não só pelo fato de a água ser utilizada para consumo humano, mas também por os organismos aquáticos serem uma das principais fontes de proteína em áreas costeiras.
Os metais pesados geralmente são encontrados no ambiente em pequenas concentrações e, por isso, são genericamente chamados de elementos traço. No entanto, organismos aquáticos apresentam alta capacidade de acumular metais, entre eles chumbo (Pb), mercúrio (Hg) e cádmio (Cd), que se combinam com macromoléculas difusoras ou ligantes presentes em membranas e se acumulam nos organismos superiores que não desenvolveram mecanismos bioquímicos para eliminá-los. Isso muitas vezes lhes confere persistência e bioacumulação nas teias alimentares de ambientes aquáticos (BOCHER et al, 2003). A dieta é um dos mais importantes meios para incorporação desses elementos pelos organismos com efeitos em longo prazo, mesmo depois de interrompida a ingestão.
Mercúrio: espécies químicas, características e ciclo biológico
Dentre todos os metais pesados, o mercúrio (Hg) é um dos que representa maior risco à saúde humana. Tem peso molecular 80 e é classificado como metal pesado pela sua alta densidade específica (3,9g/cm3) se comparada à água (1g/cm3) e a outros metais.
O Hg metálico e seus derivados ocorrem normalmente em pequenas concentrações nos vários compartimentos da natureza: hidrosfera, litosfera, atmosfera e biosfera (Figura 1). Surpreendentemente aparece inclusive em regiões não emissoras e remotas, como a Antártica, e a circulação entre os compartimentos se dá pelo ar e pela água. A distribuição do metal no solo depende do potencial redox, pH, drenagem e outros fatores. Era classificado como um elemento-traço porque, quando derivado exclusivamente de fontes naturais como o vulcanismo, erosão de rochas e deposição atmosférica em solo, sua concentração normalmente estava abaixo dos níveis de detecção pelos métodos analíticos. Entretanto, as principais fontes desse elemento para a biosfera nos últimos anos passaram a ser fábricas, garimpo, mineração, queima de combustíveis fósseis, produção de cimento. A incineração de resíduos contribui significativamente para o aumento dos atuais níveis ambientais de mercúrio na atmosfera, que passaram a ser
Figura 1: O ciclo global do mercúrio
Fonte: Souza (2000)
Espécies químicas do Hg
A exposição ao mercúrio pode ocorrer por inalação de vapores de mercúrio metálico em ambientes ocupacionais, como consultórios odontológicos, fundições e locais onde houve derramamento ou liberação de mercúrio. O mercúrio pode ser ainda usado como conservante de vacinas, em cosméticos, sabões clareadores e na forma de agrotóxicos. Esses usos estão proibidos no Brasil, sendo apenas permitido o uso de mercúrio como antisséptico, na forma de timerosal (etilmercuriotiossalicilato de sódio) para conservação de algumas vacinas.
As diferentes formas do Hg no ambiente são classificadas em espécies, sendo esta forma de estudo denominada especiação. O Hg é um metal de transição encontrado na natureza em três estados de oxidação: 0, +1 e +2, com diferentes propriedades, aspectos e toxicidades: Hg° (mercúrio elementar ou mercúrio metálico), Hg+2 (mercúrio inorgânico, mais comum) e HgCH3+ (composto orgânico de mercúrio metilmercúrio) (AZEVEDO, 2003).
O mercúrio metálico tem coloração prateada; é o único metal encontrado na forma líquida em condições de temperatura e pressão normais, formando vapores incolores e inodoros. É muito utilizado em termômetros, como fluido manométrico no instrumento de medir pressão, nos garimpos para amalgamar o ouro e em alguns processos industriais, especialmente os eletroquímicos.
Os compostos inorgânicos de mercúrio se formam naturalmente no ambiente quando há combinação entre o mercúrio e outros elementos, como enxofre e oxigênio, resultando na formação de sais. Os sais de mercúrio mais importantes são: cloreto de mercúrio (II); cloreto mercuroso (Hg2Cl2), chamado calomelano, que foi empregado como purgativo e vermífugo e utilizado no curtimento do couro, na proteção de madeira e como fungicida no tratamento de sementes e brilhos vegetais; o fulminato de mercúrio [Hg(CNO)2], utilizado como detonador em explosivos; o tiocianato de mercúrio [Hg(SCN)2], utilizado na produção de fogos de artifício, na fabricação de espoletas e como detonante de explosivos para emprego militar ou industrial e como intensificador de imagens na indústria fotográfica; e sulfeto de mercúrio (HgS), pigmento vermelho muito utilizado até meados do século XX (CETESB, 2012).
Os compostos orgânicos de mercúrio são formados quando há combinação de mercúrio com carbono, chamados compostos organomercuriais. São os mais importantes sob o ponto de vista toxicológico, sobretudo os que contêm radicais de cadeia curta metil, etil e propil. Podemos citar: cloreto de metilmercúrio, iodeto de metilmercúrio, nitrato de metilmercúrio, cloreto de etilmercúrio e hidróxido de fenilmercúrio (CETESB, 2012, ACPO, 2006).
Toxicologia do mercúrio
Um episódio que merece atenção foi a morte, em 1997, de uma conhecida professora de química de 48 anos, Karen Wetterhahn, da Faculdade de Dartmouth (EUA), devido a uma gota de dimetilmercúrio absorvida através de luvas convencionais de látex que ela usava durante a experimentação. Isto prova que muitos compostos orgânicos conseguem passar facilmente por alguns tipos de borracha, o que é extremamente preocupante.
A toxicidade do mercúrio varia nos seus diferentes compostos. Os organismos de níveis tróficos superiores, dentre os quais os seres humanos, se expõem quando fazem uso do pescado como fonte proteica (KEHRIG et al, 2011; RODRIGUES et al, 2010). A forma mais tóxica é o metilmercúrio (CH3Hg), devido ao radical orgânico, que permite a entrada rápida na corrente sanguínea, causando danos irreparáveis ao Sistema Nervoso Central. Em acidentes por intoxicação de mulheres grávidas, pode ser transferido da mãe para o feto, provocando problemas neurológicos graves e danos cerebrais, uma vez que ele parece interferir nos processos de divisão celular, agindo como agente neurotóxico e teratogênico.
As principais portas de entrada do mercúrio elementar são a inalação e a absorção pela pele e olhos. É muito pouco absorvido pelo trato gastrointestinal, porém seus vapores, quando inalados, podem facilmente atravessar a membrana alveolar até atingir a circulação sanguínea. Nos tecidos, o mercúrio é oxidado a íon mercúrico pelo complexo hidrogênio peróxido catalase e, uma vez oxidado, não retorna à corrente sanguínea, acumulando-se nos tecidos nervosos.
A absorção dos sais de mercúrio ocorre principalmente por via gastrintestinal – por exemplo, pela ingestão de alimentos ou água contaminada, pois são mais lipossolúveis e menos corrosivos ao trato intestinal. Sua polaridade faz com que não atravesse com facilidade a barreira hematoencefálica ou placenta. O mercúrio na forma iônica acaba sendo excretado pela urina e fezes.
Os compostos de metilmercurados penetram a barreira hematoencefálica e a placenta com facilidade.
Uma vez no organismo, o mercúrio se deposita nos tecidos, podendo causar lesões graves, principalmente nos rins, fígado, aparelho digestivo e Sistema Nervoso Central. Os efeitos sobre a saúde humana relacionados com a bioacumulação, a transformação e o transporte mundial do mercúrio inorgânico se devem quase exclusivamente à conversão dos compostos de mercúrio em metilmercúrio (SOUZA; BARBOSA, 2000).
Indicativos | Hgo (metálico, elementar) | Sais inorgânicos | Compostos orgânicos |
Vias de exposição preferências | Inalação (via oral eventualmente) | Digestiva | Digestiva, dérmica |
Distribuição tecidual preferencial | SNC Rins | Rins | SNC Rins SNP |
Excreção predominante | Renal | Renal |
|
Sinais e Sintomas
| Tremor + eretismo Mercurialentis Pneumonite química - Insuficiência renal crônica BAL; DMPS; DMSA | - - - Irritação, corrosão, sangramento Insuficiência renal aguda (necrose tubular) BAL; DMPS; DMSA | Tremor, ataxia, disartria, parestesias Visão tunelar - - Lesão tubular crônica DMSA; resinas tióis |
Caso clássico de intoxicação por Hg - Doença de Minamata
A agressão antrópica ao ambiente pelo uso indiscriminado do mercúrio é normalmente mostrada como um dos exemplos mais representativos do que o homem pode causar aos ciclos naturais com o despejo de metais pesados no meio ambiente. O primeiro desastre ambiental de repercussão mundial que expôs o risco iminente do mercúrio ocorreu por volta de 1953, na Baía de Minamata, sudoeste do Japão, em uma planta química da Chisso Corporation para a produção de ácido acético; o metilmercúrio era um subproduto dessa síntese. O metilmercúrio que era despejado no efluente contaminou a biota marinha e águas de sua vizinhança, chegando até a população pela ingestão de peixes e frutos do mar, que eram a dieta básica da população.
A Doença de Minamata foi oficialmente descoberta em 1956, quando uma criança de cinco anos foi hospitalizada por apresentar distúrbios neurológicos, como problemas de fala e locomoção, além de dificuldades na ingestão de alimentos. Nos dias seguintes, vários casos similares surgiram, parecendo ser uma epidemia, assustando a população e as autoridades governamentais, que pensavam que a doença fosse contagiosa.
A doença desconhecida, cujos sintomas eram distúrbios nervosos caracterizados por paralisações dos membros, entorpecimento de dedos, lábios e língua, foi então denominada Doença de Minamata. Os sintomas recorrentes da intoxicação mostravam o comprometimento do Sistema Nervoso Central, provocando dormência e sensibilidade diminuída nas extremidades – pés e mãos –, dificuldades de coordenar os movimentos dos pés e das mãos, dificuldade para articular as palavras – até a perda da fala –, dificuldade de concentração, fraqueza e fadiga constantes, perda gradual da visão e audição, coma e morte. Por volta de 1960, no mínimo 111 pacientes já haviam sido identificados com a doença. A mortalidade foi de cerca de 20%, e os sobreviventes ficaram permanentemente incapacitados.
A pesquisa para caracterizar e determinar suas causas levou mais de dez anos, até confirmar que o problema estava sendo causado pelos efluentes da fábrica, que continham metilmercúrio, apesar de se em baixas concentrações, nas águas da Baía de Minamata. O Hg estava sendo concentrado ao longo da cadeia alimentar e chegou a atingir 40ppm nos peixes.
Mais de 50 pessoas morreram e cerca de 500 apresentaram desordens neurológicas, e as indenizações pagas às vítimas da doença ultrapassaram US$ 60 milhões. Acidentes no Irã, no Paquistão e na Guatemala causados pelo uso de metilmercúrio como fungicida para tratamento de sementes de grãos, permitem confirmar o problema decorrente do uso intensivo do mercúrio, principalmente na forma de compostos orgânicos.
Bioacumulação e biomagnificação
A bioacumulação é o processo pelo qual os seres vivos absorvem e retêm substâncias químicas no seu organismo quando a taxa de ingestão é maior ou igual à taxa de eliminação. O grau de bioacumulação de um poluente é influenciado por uma série de fatores que dependem do ecossistema. A biomagnificação é a propagação desse efeito resultante do acúmulo do contaminante nos tecidos dos organismos vivos, quando há a passagem por cada nível trófico da cadeia alimentar (Figura 2).
Figura 2: Transporte e bioacumulação do Hg
Fonte: Rocha (2009)
Quando o Hg metálico é lançado na água como resíduo de atividades de mineração ou agrícolas, esse metal se deposita no fundo de ambientes aquáticos, onde bactérias e fungos residentes promovem sua metilação e o eliminam sob a forma de dimetilmercúrio. Ao ser absorvido pelos tecidos animais e vegetais, o Hg pode sofrer processos de bioacumulação e biomagnificação ao longo da cadeia alimentar.
Sempre que um organismo contaminado por mercúrio ocupa um nível inferior em uma cadeia trófica, seu predador absorverá aquele mercúrio orgânico, mas revelará concentrações comparativamente aumentadas – biomagnificação. Os organismos de topo de cadeia (aves, mamíferos marinhos e peixes predadores) apresentam maiores concentrações em seus tecidos (FILHO, 2003; KEHRIG et al, 2009).
Em um estudo que avaliava a presença de Hg em diversos tipos de peixes em ambiente contaminado, observou-se que o metal se concentrava mais intensamente à medida que se crescia na cadeia alimentar: os peixes vegetarianos apresentavam 6,64 ppm (partes por milhão); os peixes que se alimentavam de invertebrados, 12,4 ppm; os onívoros, 26,6 ppm; e os piscívoros, 40,2 ppm (BOENING, 2000).
A forma orgânica metilmercúrio (CH3Hg) é a mais tóxica, atuando como agente neurotóxico e teratogênico, sendo transferido da mãe para o feto e apresentando, assim, grande risco para organismos de níveis tróficos superiores, dentre os quais os seres humanos quando fazem uso do pescado como fonte proteica (KEHRIG et al, 2011; RODRIGUES et al, 2010).
Mapeamento dos problemas em território brasileiro
No Brasil, o problema dos metais pesados pode ser dividido em duas categorias, distribuídas geograficamente:
- As regiões Norte e Centro-Oeste, onde a população é escassa e o acesso é difícil, apresenta como mais proeminente problema dos metais pesados aquele relacionado com a contaminação por Hg e sedimentos antropogênicos, gerados pelas atividades de garimpo; neste caso, mercúrio não é o único metal pesado presente nessa região; outros metais pesados podem também estar presentes, como cádmio no Rio Madeira; todavia, o mercúrio é de longe o mais conhecido poluidor;
- As regiões Nordeste, Sudeste e Sul, onde o mercúrio é apenas um entre outros, como cádmio, cromo, zinco, cobre. Essas duas categorias têm que ser atacadas de diferentes maneiras operacionais, exigindo aplicação específica na condução dos estudos de campo e análise dos dados. Estudar a contaminação de mercúrio na Amazônia é fundamental para o entendimento de seu ciclo global, pois ele foi amplamente utilizado na região, em particular no Rio Madeira, para a recuperação de ouro de aluvião. Além disso, a fonte de contaminação de mercúrio na Amazônia também pode ser natural, proveniente de intemperismo de rochas e corpos aquáticos.
O garimpo na Amazônia
A exploração de ouro no Brasil é descrita desde o período da colonização. Em Rondônia, a mineração de ouro teve início em 1739, após a descoberta de ouro no Rio Corumbiara. No ano de 1978 iniciou-se o processo de extração de ouro por meio do método manual, ou seja, utilizando Hg no processo de recuperação de ouro por amalgamação. Logo em seguida surgiram as primeiras balsas e em 1980 foram registradas as primeiras dragas, período no qual se intensificou a exploração aurífera em todo o trecho que compreende o alto Rio Madeira.
Os minúsculos fragmentos de ouro (Au) ficam aleatoriamente espalhados pelo cascalho arenoso que o minerador retira do subsolo ou do leito dos rios. A esse material bruto é adicionado mercúrio (único metal líquido à temperatura ambiente) que agrega os pequeníssimos grãos dourados e forma uma liga metálica. Depois da etapa de amalgamação, a mistura Au-Hg em geral é então aquecida, queimada em retortas, mas frequentemente essa operação é feita ao ar livre, e, assim, emite vapor de mercúrio para a atmosfera; o mercúrio evapora e desse modo o ouro puro chega às mãos do minerador. Como é uma tecnologia muito rudimentar durante o processo de amalgamação, uma quantidade variável de mercúrio metálico também se perde nos rios e solos, pelo seu manuseio em condições de campo precárias e devido à vaporização. Além disso, descartam-se rejeitos ricos em mercúrio na maioria das áreas de garimpo.
Figura 3: Amálgama Au-Hg sendo queimado para a retirada do Hg
A utilização de mercúrio nos garimpos da região Amazônica tem sido amplamente divulgada pela imprensa. Veja os vídeos e as notícias veiculadas nos jornais pelos seguintes links:
Amazônia e o mercúrio: http://youtu.be/MP0sTHabkMg
Peixes da Amazônia apresentam alto nível de mercúrio: http://youtu.be/n54eUewWXtI
Agência da ONU vê risco de contaminação por mercúrio no Brasil – O Globo: http://oglobo.globo.com/pais/agencia-da-onu-ve-risco-de-contaminacao-por-mercurio-no-brasil-7247434
Mercúrio utilizado no garimpo causa contaminação no solo e em pessoas – Globo.com: http://redeglobo.globo.com/globoecologia/noticia/2013/09/mercurio-utilizado-no-garimpo-causa-contaminacao-no-solo-e-em-pessoas.html
MPF denuncia 34 pessoas envolvidas na Operação Xawara, em Roraima – G1: http://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2013/11/mpf-denuncia-34-pessoas-envolvidas-na-operacao-xawara-em-roraima.html
Curiosidade: metais pesados em bijuterias vindas da China. Produtos que seriam proibidos nos Estados Unidos e na Europa São vendidos aqui, porque não existe lei sobre o assunto. Veja a notícia em: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2013/11/laudo-alerta-para-alta-concentracao-de-substancia-toxica-em-bijuterias.html
Mercúrio em águas amazônicas - caso 1
A grande preocupação com o mercúrio na Amazônia surgiu em decorrência do aumento do processo de produção de ouro, pois o Hg metálico era utilizado no garimpo para formar amálgamas com ouro, facilitando sua separação. Em sequência, o amálgama era queimado para liberar o ouro e, consequentemente, o mercúrio era lançado para a atmosfera. Estima-se que a quantidade de mercúrio liberada no ambiente na região amazônica de 1970 até final dos anos 90 tenha sido de 2.000 mil toneladas (MALM, 1998). Além disso, a atividade garimpeira contribuiu para uma destruição significativa da cobertura vegetal e desestruturação do solo, com consequente eliminação da camada orgânica, abrindo em alguns locais enormes crateras, fazendo com que a recuperação para replantio ou agricultura ficasse impossibilitada (WASSERMAN et al, 2001). O garimpo então se tornou um assunto polêmico em função de questões sociais, políticas, econômicas e dos problemas ambientais envolvidos.
Calcula-se que 200 mil toneladas de mercúrio foram emitidas para o ecossistema Amazônico entre 1540 e 1900. Só nos últimos 20 anos, das 3 mil toneladas de mercúrio utilizadas nos garimpos de ouro da Amazônia, pelo menos 2 mil toneladas foram lançadas ao ambiente e vêm sofrendo oxidação e metilação nas condições propícias das águas e sedimentos dos rios, contaminando as populações ribeirinhas, pela ingestão de peixes (CIÊNCIA HOJE, 2013). As populações ribeirinhas que vivem às margens de rios e/ou baías contaminadas geralmente são as mais expostas, pelo fato de consumirem peixes provenientes desses locais e pela falta de informação e assistência médica, precariedade no transporte e por viverem afastadas dos centros urbanos (MARCO, 2007).
De acordo com Souza e Barbosa (2000), em alguns estudos realizados com a população da Amazônia o teor médio de mercúrio encontrado foi de 19,1 microgramas/g, que é muito elevado e exige atenção especial por parte dos órgãos ambientais e de saúde. No trabalho de Malm (1998) com peixes piscívoros de nível trófico elevado, o teor médio obtido foi de 669µg/g, que está acima dos limites estabelecidos pela OMS (500µg.kg-1 peso úmido).
Recentemente, devido ao aumento do processo de desmatamento na região amazônica, o mercúrio encontrado naturalmente nos solos e protegidos pelas florestas vem sendo disponibilizado e carreado para rios e lagos pela ação de chuvas e processos de erosão. De acordo com Fadini e colaboradores (2001), em um estudo realizado em amostras de água do Rio Negro foram encontrados altos teores de mercúrio em locais onde o extrativismo mineral era raro, não justificando assim a presença do metal, o que sugere que o desmatamento local poderia estar causando a mobilidade do mercúrio acumulado por vários anos nos solos argilosos e profundos da região. A partir daí, várias pesquisas foram sendo desenvolvidas na região para tentar compreender o ciclo biogeoquímico do Hg e quais suas consequências para a saúde da população (MARCO, 2007).
Mercúrio em solos amazônicos - caso 2
Após a diminuição significativa do garimpo de ouro no Rio Madeira, a lixiviação do Hg presente em solos marginais desponta como uma das principais fontes do metal para sistemas aquáticos e, consequentemente, para peixes. A geologia e a composição dos solos e seus diferentes usos influenciam a concentração e mobilidade do Hg presente nos solos. Foram feitos estudos de sua variação com granulometria, tipo de solo e a relação com a matéria orgânica ao longo do Rio Madeira entre a cidade de Porto Velho (RO) até sua foz no Rio Amazonas.
A área em estudo compreende a calha do Rio Madeira da cidade de Porto Velho (RO) até a sua Foz no Rio Amazonas (AM) com cerca de 1.100km de extensão.
Figura 4: Área de estudo de concentração de mercúrio no Rio Madeira
Fonte: Lacerda, L.D. & Bastos, W.R. (2009)
Foram coletadas diferentes amostras de solos das margens do Rio Madeira, com profundidade variando de
O tipo e uso do solo, o índice pluviométrico e cursos de água são fatores importantes para avaliar a remobilização de Hg para outros ambientes. Os resultados dos estudos realizados por Almeida et al (2009) demonstraram que os teores de Hg variam de uma região para outra conforme a classe textural e os percentuais de matéria orgânica presente na camada. Portanto, os pesquisadores concluíram que a dinâmica da propagação do mercúrio em solos marginais da bacia do Rio Madeira depende muito mais da textura do solo do que do grau de umidade dele. O tipo de solo que apresentou o maior índice de contaminação de mercúrio foi o do tipo argiloso, que é pouco permeável.
Dentre as áreas analisadas, as que estavam próximas aos garimpos – como a região próxima ao garimpo de Belmonte, no município de Monte Velho – apresentaram o maior percentual de contaminação do solo. Nos outros tipos de solo os níveis de mercúrio acompanharam os níveis de matéria orgânica e teor de argila, exceto para as regiões situadas em áreas de enchente dos rios e que possuem drenagem interna facilitando o escoamento do mercúrio e evitando sua acumulação.
Este trabalho mostra a importância de mapear mais detalhadamente os pontos de contaminação do solo por mercúrio, a fim de determinar sua origem (natural ou antrópica), traçar estratégias para remediação, recuperação. Além disso, também permite uma ação mais incisiva junto às comunidades ribeirinhas no sentido de monitorar a saúde e de educação ambiental.
Ações sustentáveis
Existem algumas propostas relacionadas ao controle e remediação da poluição do mercúrio. No entanto, a questão do mercúrio passa antes por um processo de educação ambiental de todos os agentes envolvidos: garimpeiros, pescadores, índios, ribeirinhos e principalmente pela ação fiscalizadora da sociedade.
Como alternativas para sanar o problema propõe-se o uso de retorta e capelas nas casas de queima do amálgama, a criação de centrais de bateiamento, ou seja, reprocessamento dos rejeitos com altas concentrações de mercúrio. Além disso, existem métodos de extração de ouro que não empregam mercúrio, como a utilização de técnicas gravimétricas. São métodos que permitem ao garimpeiro separar o ouro do sedimento em uma espécie de mesa vibratória que, ao vibrar, separa o cascalho, que é leve, do ouro, mais pesado. O problema a ser contornado é que essas mesas funcionam melhor em terrenos estáveis, e não nas balsas usadas para dragar o leito dos rios. Apesar disso, há casos de sucesso. Em Humaitá (AM), a Cooperativa dos Garimpeiros da Amazônia (Coogam) já usa essa tecnologia em algumas balsas. Os riscos ambientais são minimizados por se tratar de uma separação mecânica, e não química.
Quase nada ainda foi feito em relação à remediação e recuperação dessas áreas. Alguns estudos mostram a possibilidade de fitorremediação de solos e aquíferos contaminados com mercúrio. Em um dos projetos, desenvolvido pelo Instituto de Geociências da Unicamp, utilizam-se dois modos de fitorremediação: a natural e a induzida. Na fitoextração natural, são plantadas no local contaminado espécies chamadas hiperacumuladoras, que possuem capacidade natural de capturar para si os elementos contaminantes. Essa vegetação remove os metais do solo e, com a colheita e o replantio, o solo é gradualmente descontaminado.
Na fitoextração induzida são utilizadas plantas não hiperacumuladoras, mas que possuem crescimento rápido e elevada produção de biomassa. Nesse caso, são adicionados ao solo substâncias químicas que reagem com os metais presentes no solo, reduzindo sua toxidade e permitindo o desenvolvimento da vegetação no ambiente contaminado. Dessa forma, a poluição é controlada, impedindo que desça até os lençóis freáticos ou que seja dispersada pelo vento, por exemplo. Esse método, além de ecologicamente correto, também é economicamente viável.
Segundo Souza e Barbosa (2000), as propostas de controle e remediação da poluição por mercúrio no Brasil devem envolver:
- a educação ambiental dos agentes envolvidos, como garimpeiros, pescadores, índios, ribeirinhos;
- uma ação fiscalizadora da sociedade;
- uma calha adequada para que o trabalho de garimpagem seja mais eficiente;
- a criação de centrais de bateamento em aluviões;
- reprocessamento dos rejeitos com elevadas concentrações de mercúrio;
- recuperação das áreas degradadas;
- recomendação da ingestão de peixes de baixo nível trófico; e
- monitoramento da contaminação nos diversos compartimentos ambientais.
Considerações finais
A condução das atividades econômicas que emitem resíduos químicos no ambiente deveria ter atenção especial, principalmente devido ao potencial dos impactos ecológicos de longo prazo ou retardados. No entanto, os acidentes químicos espetaculares cujos efeitos se manifestam no curto prazo é que recebem tratamento prioritário. Será isso o mais correto?
A literatura está repleta de referências a reservatórios definitivos para produtos sintetizados pelo homem contendo metais pesados e outros produtos químicos de longa duração. Exemplos desses reservatórios são os solos argilosos bem compactados, terras alagadas e os sedimentos de águas doces, estuários e áreas marinhas costeiras. A imagem associada à palavra reservatório é a de um poço sem fundo no qual produtos químicos poderiam ser lançados para nunca mais serem encontrados. Entretanto, existem provas cada vez maiores que sugerem que, na realidade, esses reservatórios assemelham-se mais a esponjas do que a poços sem fundo. Ou, para expressá-lo de outro modo, esses produtos químicos estão longe dos olhos, mas certamente não devem estar longe do pensamento. Essa percepção é de importância crucial em termos da maneira como encaramos as consequências de longo prazo das emissões químicas no meio ambiente.
Assim como uma esponja encharcada perde sua capacidade de absorver mais líquido, a imagem de reservatório como uma esponja sugere que, embora os sistemas ambientais muitas vezes tenham grande capacidade de absorver e imobilizar produtos químicos tóxicos e prejudiciais ao ambiente, essa capacidade pode eventualmente ficar saturada com os rejeitos químicos acumulados. Quando os efeitos finalmente se manifestam, em geral estão temporalmente deslocados da atividade que originou o problema. Além disso, os efeitos podem também estar deslocados espacialmente. Os efeitos retardados e os deslocados no espaço devem ser levados em conta nos lugares onde os produtos químicos são usados e os resíduos lançados no ambiente. Isto ocorre quando os produtos químicos são transportados pelos rios, pelos lençóis freáticos ou pela atmosfera para ambientes onde eles se tornam mais móveis e/ou biodisponíveis. A saturação dos reservatórios é definida com relação ao impacto sobre o ecossistema ou aos critérios relativos à saúde humana. Portanto, uma liberação lenta e gradual de produtos químicos (por exemplo, crescentes taxas de metilação de mercúrio) terá efeitos prejudiciais, afetará o ecossistema quando atingir determinado limite.
No caso em estudo, é o limite estipulado para concentrações de mercúrio nos peixes, tal como definido por lei na maioria dos países.
No Brasil, o assunto tem sido negligenciado, a despeito dos riscos para as populações ribeirinhas da Amazônia em função da ampla utilização do produto nas atividades de garimpo realizadas. No Congresso Nacional, inacreditavelmente, tramita há 25 anos o projeto de Lei nº 740/88, que trata do controle do uso, da comercialização e da importação do mercúrio e do cianeto em processos de extração de ouro, fundamentando-se nos prejuízos que eles causam à saúde humana, ao meio ambiente e à economia.
Não existe legislação que regulamente os teores de mercúrio aceitáveis no solo. As atividades com mercúrio são permitidas nos garimpos desde que notificadas e que sigam as normas da lei que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010).
Infelizmente, muitas atividades de mineração são clandestinas, visando escapar do fisco. Juntamente com isso, não existe fiscalização por parte das agências ambientais e do Ministério do Trabalho; tais leis são ineficazes na regulamentação da utilização do mercúrio nos garimpos brasileiros.
Fica claro que a conscientização ambiental deve ser iniciada pelos garimpeiros, que são os principais agentes poluidores, e que se deveria ter alguns cuidados no processo de recuperação do ouro para evitar deixar resíduos de Hg no solo e no leito de rios, procurando queimar o amálgama em retortas para que o vapor de mercúrio não vá para a atmosfera, evitando assim a degradação do meio ambiente na área de garimpo (SOUZA; BARBOSA, 2000).
Referências
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AZEVEDO, F. A. Toxicologia do mercúrio. São Paulo: RIMa/InterTox, 2003.
BRAGA, T. M. B. Aspectos preliminares da contaminação de mercúrio em peixes comercializados na praia de Mucuripe, Fortaleza e no estuário do Rio Jaguaribe, Ceará. Monografia. Universidade Federal do Ceará, Centro de Ciências Agrárias, Departamento de Engenharia de Pesca, 2006.
BOCHER, P. et al. Influence of the diet on the bioaccumulation of heavy metals in zooplankton – eating petrels at the Kerguelen archipelago,
CETESB, 2012. Mercúrio e seus compostos - Ficha de informação toxicológica. Disponível em: http://www.cetesb.sp.gov.br/userfiles/file/laboratorios/fit/mercurio.pdf. Acesso em janeiro 2014.
DOREA, J. G.; BARBOSA, A. C; SILVA, G. S. Fish mercury bioaccumulation as a function of feeding behavior and hydrological cycles of the Rio Negro, Amazon. Comp Biochem Physiol Toxicol Pharmacol, v. 142(3-4), p. 275-283. 2006.
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Publicado em 4 de fevereiro de 2014
Publicado em 04 de fevereiro de 2014
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