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"Garantindo a todos o direito de aprender": uma visão socioconstrutivista da aprendizagem de linguagem escrita no ensino básico

Roxane Helena Rodrigues Rojo

Professora doutora do Departamento de Linguística e coordenadora do Programa de Estudos Pós-Graduandos em Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas (PUC-SP)

Introdução

O Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Estado da Educação e da Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), está implantando o Programa de Classes de Aceleração, uma “proposta de reorganização da trajetória escolar no Ensino Fundamental”. O principal objetivo da proposta é, segundo o Perfil dos Professores das Classes de Aceleração, "eliminar a defasagem em relação à idade regular de matrícula dos alunos do CB à 4ª série, por meio da criação de classes voltadas para o desenvolvimento de um trabalho pedagógico de aceleração de suas aprendizagens, reintegrando-os ao percurso regular do ensino fundamental". Trata-se, pois, de um projeto que visa interferir diretamente nos processos de retenção e evasão da rede pública, fazendo face ao problema crucial do dito "fracasso escolar". E intenciona fazê-lo "através da adequação da proposta de ensino à clientela, propiciando uma aceleração dos processos de aprendizagem dos alunos, a fim de que possam retornar ao ensino regular com sucesso", de acordo com o Perfil.

Tomei como título deste artigo justamente a formulação presente no folheto informativo da implantação das classes de aceleração – "garantindo a todos o direito de aprender" – porque, a meu ver, tal formulação configura o principal mérito da proposta e, ao mesmo tempo, expressa com exatidão seu principal ponto de contato com uma perspectiva socioconstrutivista vygotskiana de ensino/aprendizagem.

Além disso, creio que as questões relativas ao letramento, isto é, à apropriação e à mestria da linguagem escrita pela população, estão crucialmente envolvidas nos mecanismos de retenção e evasão escolar; logo, no "fracasso" escolar no Ensino Básico.

Por essas razões, proponho-me, neste texto, num primeiro momento, a discutir as reflexões teóricas de Vygotsky e dos vygotskianos sobre a escrita e seu processo de construção e, a partir dessas reflexões, num segundo momento, retirar consequências para a prática pedagógica socioconstrutivista de ensino da linguagem escrita, tentando delinear o que julgo ser consequência necessária de suas posturas para as intervenções pedagógicas sintonizadas com a construção do cidadão.

Claro está que o ponto zero desta reflexão, seu ponto de partida, encontra-se no valor determinante que é dado por Vygotsky e pelos vygotskianos à interação social – e, logo, no caso da escola, às intervenções pedagógicas e à instrução ­na construção de todo e qualquer conhecimento, incluídos o uso e o conhecimento sobre a escrita.

Algumas reflexões de Vygotsky esparsas em sua obra, como a lei da dupla formação ou a noção de ZDP (Zona de Desenvolvimento Proximal), são testemunho suficiente do valor atribuído pelo autor às interações sociais (e, logo, às intervenções pedagógicas) na construção do cidadão.

Segundo a Lei da Dupla Formação, "todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez, nas atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsíquicas; a segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas do pensamento da criança, ou seja, como funções intrapsíquicas" (VYGOTSKY, 1933, p. 714).

Zona de Desenvolvimento Proximal é "a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar por meio da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado pela solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes" (VYGOTSKY, 1933b, p. 97).

Talvez seja desnecessário relembrar, uma vez mais, que a marca principal, o traço diferencial da teoria vygotskiana da aprendizagem em relação a outras teorias da aprendizagem ou do desenvolvimento seja justamente a crença de que é na interação interpessoal que primeiramente se constrói o conhecimento que virá a ser intrapessoal (desenvolvimento real, autonomia, apropriação).

Creio que foram justamente esses aspectos da teoria vygotskiana – os mais debatidos, conhecidos, explorados e reafirmados nos últimos doze anos – que nos separaram da primeira edição brasileira de uma obra de Vygotsky. Assim sendo, vou tomar os pressupostos básicos da teoria socioconstrutivista sobre o papel fundamental da intervenção e da interação na construção do conhecimento como pano de fundo deste texto. Mas, ao invés de meramente reafirmar esse papel determinante, vou colocar uma questão mais específica para o tema deste texto: a partir das reflexões de Vygotsky sobre a escrita e sua socioconstrução, o que podemos dizer sobre quais serão as intervenções pedagógicas eficazes na construção e no domínio da linguagem escrita?

Vygotsky, a escrita e sua construção

No Brasil, o texto mais popular de Vygotsky sobre a construção da escrita é "A pré-história da linguagem escrita". Trata-se de um ensaio publicado postumamente, em 1935, numa coletânea intitulada O desenvolvimento mental das crianças e o processo de aprendizado. O texto começa justamente por uma crítica, já bastante conhecida e, a meu ver, ainda muitas vezes atual, às formas de intervenção no processo de alfabetização escolar:

Até agora, a escrita ocupou um lugar muito estreito na prática escolar em relação ao papel fundamental que ela desempenha no desenvolvimento cultural da criança. Ensina-se as crianças a desenhar letras e a construir palavras com elas, mas não se ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica de ler o que está escrito que se acaba obscurecendo a linguagem escrita como tal. (...) E o resultado é a produção de uma fala morta (VYGOTSKY, 1935, p. 119).

A questão aqui é saber o que Vygotsky está chamando de "a linguagem escrita". Ainda nesse mesmo texto, podemos obter algumas pistas quando o autor compara esse ensino mecânico de escrita, por um lado, com o ensino da linguagem falada para surdos-mudos, centrado na pronúncia e na articulação de fonemas, sem que se ensine a linguagem falada, e, por outro, com o ensino de piano, em que se desenvolvem a destreza dos dedos e a leitura e execução das notas da partitura, sem entretanto ensinar-se música.

Vygotsky está aí contrapondo a ideia de uma linguagem escrita (ou falada ou musical) à mera materialidade fônica, gráfica ou sonora (notas) dessas linguagens. O que, para ele, faz então destas materialidades linguagens?

Nesse texto ele prenuncia a resposta, definindo "linguagem escrita como tal" como: "um sistema particular de símbolos e signos cujo domínio prenuncia umponto crítico em todo o desenvolvimento cultural da criança" (p. 120).

Sim, mas particular em relação a quê? Obviamente, em relação a outros sistemas semióticos... O mais imediatamente citado por Vygotsky para comparação é o sistema semiótico da fala, quando prossegue no texto ao qualificar a linguagem escrita como um sistema simbólico de "segunda ordem que gradualmente torna-se um simbolismo direto", i.e., de primeira ordem. Segundo o autor (1935, p. 120),

a linguagem escrita é constituída por um sistema de signos que designam os sons e as palavras da linguagem falada, os quais, por sua vez, são signos das relações e entidades reais. Gradualmente, esse elo intermediário (a linguagem falada) desaparece e a linguagem escrita converte-se num sistema de signos que simboliza diretamente as entidades reais e as relações entre elas.

Se pudéssemos, sem pecado, ler Vygotsky a partir de diagramas saussurianos, ele estaria dizendo que:


Figura 1: Simbolismo de primeira ordem na fala

Figura 2: Simbolismo de segunda ordem na escrita

A importância atribuída à fala como sistema contrastivo privilegiado para a escritura e como sistema de base para sua construção vai reaparecer somente ao fim do texto, quando Vygotsky, concordando com Hertzer, diz que:

Achamos que Hertzer está muito certo ao afirmar que a representação simbólica primária deve ser atribuída à fala e que é utilizando-a como base que todos os outros sistemas de signos são criados (p. 128).

Em A pré-história da linguagem escrita, Vygotsky segue comparando o sistema particular de signos que é a linguagem escrita com outros sistemas simbólicos ou semióticos, como o gesto, o jogo simbólico e o desenho, tidos pelo autor como pré-história da escrita.

Esse é um texto dos mais conhecidos do autor sobre a escrita e sua construção, traduzido e publicado em português já há alguns anos. Justamente por essa razão – a acessibilidade e o grau de divulgação que este texto obteve – ­comecei por ele. Mas o que nele me surpreende é que Vygotsky tenha caído na mesma armadilha que critica nas práticas escolares: centrar-se na materialidade do significante escrito e não na escrita como o que ele chama de linguagem. Claro está que esse texto, publicado postumamente, pode ter "ficado na gaveta" porque ele não queria publicá-lo, porque não gostasse dele... Mas, mesmo assim, passar a discutir os primeiros momentos da construção da escrita pela criança como passando pelo gesto, pelo gesto que reinterpreta o objeto no jogo simbólico e pelo desenho é justamente privilegiar na escrita os aspectos ligados a seu caráter gráfico: da mão que marca simbolizando, da "mão que fala", como diziam Ajuriaguerra e Auzias, numa perspectiva associacionista, em 1975.

Além disso, começar a discussão pela diferença na forma de representação do significado (grafia referindo-se ao fônico, primeiramente), pelo nível do significante, é continuar privilegiando o que ele vem de criticar: o centramento nos aspectos gráficos ou ortográficos (ou ainda "alfabéticos", como diria Ferreiro).

O que há, então, aí, de diverso que possa acarretar diferenças numa prática socioconstrutivista? Aparentemente muito pouco. O melhor desse diverso vai aparecer exatamente nas indicações práticas (Implicações Práticas), ao final do texto, às quais me referirei na segunda metade deste texto. Mas aí, surpreendentemente, essas indicações práticas não decorrem da discussão teórica, mas se acrescentam a ela.

Para não demonstrar total má-vontade para com esse ensaio, é preciso admitir que Vygotsky semeia, ao longo dele, algumas ideias diversas, como a de que

a história do desenvolvimento da linguagem escrita (...) não segue uma linha única direta na qual se mantenha algo como uma continuidade clara de formas. Ao invés disso, ela nos oferece as metamorfoses mais inesperadas, isto é, transformações de algumas formas particulares de linguagem escrita em outras (VYGOTSKY, 1935, p. 135).

No entanto, não é no texto em questão que vamos encontrar pistas sobre quais são esses pontos de viragem e estas transformações. Em minha opinião, os textos privilegiados de Vygotsky, para seguir o fio deste tema, são "Pensamento e Palavra" – o último capítulo de Pensamento e Linguagem (umde seus últimos textos, se não o último) – e um texto semiesquemático de um ano antes (1933), constituído por notas para uma reunião de trabalho e que prepara a escrita final do último capítulo de Pensamento e Linguagem: "O problema da consciência". Também no sexto capítulo de Pensamento e Linguagem, sobre a "Formação de conceitos", aparecem indicações sobre o que Vygotsky pensava acerca da escrita e sua construção que preparam as conclusões de "Pensamento e Palavra".

Lembremos que a questão que aqui nos ocupa, no momento, é o que, para Vygotsky, faz da escrita não somente uma grafia, um gesto que marca, representando um som da fala, mas, além disso, uma linguagem particular, diversa da fala e capaz de significar. Será a partir daí, em minha opinião, que poderemos elaborar indicações claras para intervenções pedagógicas socioconstrutivistas.

Gostaria de começar a comentar estes novos textos com uma citação do que julgo ser uma das mais belas falas de Vygotsky, a respeito da relação entre o pensamento e a linguagem; está em "Pensamento e Palavra":

o pensamento, ao contrário da fala, não consiste em unidades separadas. Quando desejo comunicar o pensamento de que hoje vi um menino descalço, de camisa azul, correndo rua abaixo, não vejo cada aspecto isoladamente: o menino, a camisa, a cor azul, a sua corrida, a ausência de sapatos. Concebo tudo isso em um só pensamento, mas me expresso palavras separadas. Um interlocutor em geral leva vários minutos para manifestar um pensamento. Em sua mente, o pensamento está presente em sua totalidade e num só momento, mas na fala tem que ser desenvolvido em uma sequência. Um pensamento pode ser comparado a uma nuvem descarregando uma chuva de palavras. Exatamente porque um pensamento não tem um equivalente em palavras, a transição do pensamento para a palavra passa pelo significado (Vygotsky, 1934, p. 128-129).

Nas notas de 1933, essa ideia aparece como:

o pensamento que uma pessoa intenta expressar não coincide nem com o aspecto fásico da fala tampouco com o semiótico. Exemplo: o pensamento ‘não tenho culpa’ pode ser expresso nos sentidos: ‘Só queria tirar o pó'; ‘não toquei nas coisas'; ‘o relógio caiu sozinho' etc. O próprio ‘não tenho culpa’ tampouco expressa em absoluto um pensamento (não é igual a ele?); essa mesma frase tem já sua sintaxe semiótica. O pensamento é uma nuvem, da qual a fala se desprende em gotas. O pensamento está estruturado de maneira diferente de sua expressão pela fala. (...) O pensamento não é algo acabado, pronto para ser expresso. O pensamento precipita-se, realiza certa função, certo trabalho. Esse trabalho do pensamento é a transição das sensações da tarefa – através da construção do significado ao desenvolvimento do próprio pensamento. (...) O pensamento não só se expressa na palavra, mas realiza-se nela (VYGOTSKY, 1933, p. 25).

Nesse sentido é que um pensamento é um processo interno mediado; um discurso ou uma fala interna. E é a partir desse insight sobre diferentes linguagens, discursos ou falas (interna, externa oral, escrita) – que se organizam material, semiótica e sintaticamente de modos diversos, por razões diversas, e que se relacionam de maneira complexa – que Vygotskyvai, em minha opinião, desenvolver sua discussão mais rica sobre a escrita e sua construção.

Em Pensamento e Linguagem, tanto no sexto capítulo como em "Pensamento e palavra", o autor faz um esforço de comparação entre essas três formas de linguagem, de discurso ou de fala: o discurso interno ou pensamento verbal; o discurso oral ou fala comunicativa; e o discurso escrito. Há uma nota no texto preparatório de 1933 que pode, em minha opinião, guiar nossa leitura desses dois textos.

Fala escrita. [Dificuldades da fala escrita: carece de entonação, de interlocutor. Representa uma simbolização de símbolos; nela, a motivação é mais difícil. A fala escrita está em outra relação com a fala interna, surge depois dela e é a mais gramaticalizada. Mas está mais perto da fala interna que da externa; associa-se aos significados, descartando a fala externa] (p.127).

Nesse fragmento, Vygotsky estabelece uma comparação entre as três formas de linguagem, baseado nos seguintes quatro critérios:

  1. o que poderíamos chamar hoje a situação de produção dessas linguagens, quando se refere à relação com o interlocutor e à entonação;
  2. a natureza da simbolização envolvida nos sistemas;
  3. a motivação ou o universo de necessidades que leva à enunciação dos diversos discursos;
  4. a relação que cada um dos dois sistemas (oral e escrito) mantém com a fala interna ou com o pensamento (verbal).

É a partir destes critérios que vou passar a discutir a especificidade da linguagem escrita e de sua socioconstrução para Vygotsky, nos textos de 1934.

Diferenças quanto à situação de produção dos discursos

A relação enunciador-destinatário é o elemento básico que, para Vygotsky, diferencia a fala interna da fala externa e da fala escrita no que se refere à situação de produção desses discursos. Para ele, a escrita

é uma fala sem interlocutor, dirigida a uma pessoa ausente ou imaginária ou a ninguém em especial – uma situação nova e estranha para a criança. (...) Na escrita, somos obrigados a criar a situação ou a representá-la para nós mesmos. Isso exige um distanciamento da situação real (VYGOTSKY, 1934, p. 85).

Ou

[A comunicação por escrito] dirige-se a um interlocutor ausente, que muito poucas vezes tem em mente o mesmo assunto que o escritor. Portanto, deve ser muito mais desenvolvida: a diferenciação sintática deve chegar a seu ponto máximo e devem-se usar expressões que soariam artificiais na conversação. A expressão de Griboedov ‘ele fala como escreve' refere-se ao efeito cômico das construções elaboradas na fala quotidiana. (...) Na escrita, como o tom da voz e o conhecimento do assunto são excluídos, somos obrigados a utilizar muito mais palavras e com maior exatidão. A escrita é a forma de fala mais elaborada. (...) O monólogo é, na verdade, a forma mais elevada e complexa de desenvolvimento histórico posterior (VYGOTSKY, 1934, p. 122-124).

Portanto, a ausência do interlocutor não é importante por si mesma, mas porque acarreta a necessidade de imaginar, de representar no discurso escrito o grau de conhecimento compartilhado desse mesmo interlocutor sobre o tema, porque acarreta a impossibilidade de significar pelo tom da voz ou pela entonação, exigindo outros mecanismos mais complexos de expressão; porque acarreta a impossibilidade de resposta imediata, fazendo com que o discurso assuma uma estruturação mais complexa, à maneira do monólogo (monologizada, diria Bakhtin).

Todas essas diferenças na situação de produção do discurso escrito são novas e estranhas para a criança e exigem novas construções, seja de formas do discurso (a que chamaremos gêneros mais adiante – mais complexas em termos de vocabulário e sintaxe e monologizadas), seja de maneiras inéditas de lidar com a comunicação, tendo de representar ou criar para si própria a imagem de uma situação abstrata e a partir disto planejar ("rascunhar", diz Vygotsky) um texto.

Diferenças quanto à natureza da simbolização

Já esmiucei um pouco esse aspecto, quando falei da escrita inicial como exigindo um simbolismo de segunda ordem. Para Vygotsky, a escrita está para a fala assim como a álgebra está para a aritmética. Nesse sentido é que ele a qualifica como a "álgebra da linguagem":

[a escrita] é a fala em pensamento e imagens apenas, carecendo das qualidades musicais, expressivas e de entoação da fala oral. Ao aprender a escrever, a criança precisa se desligar do aspecto sensorial da fala e substituir palavras por imagens de palavras. Uma fala apenas imaginada, que exige a simbolização de imagem sonora por meio de signos escritos (isto é, um segundo grau de representação simbólica), deve ser naturalmente muito mais difícil para a criança do que a fala oral. (...) Nossos estudos mostram que o principal obstáculo é a qualidade abstrata da escrita, e não o subdesenvolvimento de pequenos músculos ou quaisquer outros obstáculos mecânicos (VYGOTSKY, 1934, p. 85).

Diferenças quanto à motivação

A abstração da escrita reaparece na discussão das diferenças de motivação. Diz Vygotsky:

Nossos estudos mostram que, quando começamos a ensinar uma criança a escrever, deparamo-nos com uma fraca motivação por parte dela. Não sente nenhuma necessidade da escrita e só tem uma vaga ideia de sua utilidade. Na conversação, todas as frases são impelidas por um motivo. O desejo ou a necessidade levam aos pedidos, as perguntas conduzem às respostas, e a confusão à explicação. Os motivos variáveis dos interlocutores determinam a todo instante o curso da fala oral. Ela não tem que ser conscientemente dirigida – a situação dinâmica se encarrega disso. Os motivos para escrever são mais abstratos, mais intelectualizados, mais distantes das necessidades imediatas (VYGOTSKY, 1934, p. 85).

Como vemos, novamente aqui as diferenças na motivação (ou na "vontade enunciativa", como diria Bakhtin) fazem parte, mais uma vez, das diferenças na situação de produção: em geral, exceto em gêneros escritos muito próximos da oralidade (como a carta ou o bilhete), os motivos que tenho para me dirigir a um interlocutor ausente, muitas vezes uma audiência ampla, são mais complexos do que aqueles que tenho na situação face a face. Dar prazer, envolver, fazer imaginar, debater, argumentar, informar, expor, requerer são claramente motivos mais complexos e abstratos do que brincar ou divertir, discordar ou opinar, explicar, pedir ou ordenar. Logo, esses motivos ou razões para discursar serão também construções novas para a criança que adentra o universo da escrita.

Diferenças quanto à relação dos discursos (oral e escrito) com o discurso interno/pensamento verbal

Como vimos, para Vygotsky a face do signo estruturante do pensamento verbal ou do discurso interno é o significado. A nuvem do pensamento condensa significados/sentidos em gotas de fala interna que, achando sua expressão nos significantes sonoros, pode (ou não) expressar-se em fala externa (oral). No entanto, é claro que hoje estas afirmações de Vygotsky – historicamente situadas numa época pós-revolucionária, em que se tratava de escolarizar uma população agrária rural iletrada, sobrevivente de guerras e revoluções – poderiam ser revistas e relativizadas à luz de pesquisas etnográficas sobre letramento. Isso, entretanto, não invalida as conclusões que ele tira de suas análises conjunturais.

A escrita exige um trabalho consciente porque a sua relação com a fala interior é diferente da relação com a fala oral. Esta última precede a fala interior no decorrer do desenvolvimento, ao passo que a escrita segue a fala interior e pressupõe a sua existência (o ato de escrever implica uma tradução a partir da fala interior). Mas a gramática do pensamento não é igual nos dois casos. Poder-se-ia até mesmo dizer que a sintaxe da fala interior é exatamente oposta à sintaxe da escrita, permanecendo a fala oral numa posição intermediária (VYGOTSKY, 1934, p. 85-­86).

Por quê? Novamente, pela situação de produção e pela relação entre os interlocutores, que é diversa no discurso interior e no discurso escrito. Na fala interior, falo "comigo mesma"; desdobro-me. Ora, quem é mais presente, no sentido de compartilhar a situação e o conhecimento, comigo do que eu mesma? Isso determina que para "falar comigo mesma" eu precise de muito poucas palavras; que eu possa elaborar um discurso extremamente "abreviado e predicativo", como diz Vygotsky. Condensado. Por isso,

a passagem da fala interior, extremamente compacta, para a fala escrita, extremamente detalhada, exige o que se poderia chamar de semântica deliberada – a estruturação intencional da teia do significado (VYGOTSKY, 1934, p.86).

Em outras palavras, controle e consciência.

No entanto, ambas – fala interna e fala escrita – prescindem da materialidade sonora; fundam-se nos significados; são monologizadas, no sentido de que não há empiricamente diálogo com o outro (presente). Isto é, são monogestionadas (SCHNEUWLY, 1988).

Como podemos ver, em todas estas comparações – talvez com exceção daquela que diz respeito à natureza da simbolização –, o que é especialmente relevante para Vygotsky são as diferentes situações de produção do(s) discurso(s) – a relação entre os interlocutores – que determinam diferentes estruturações em nível dos temas e significados; em nível das motivações; em nível do vocabulário; em nível da organização (ou da "composição", como diria Bakhtin).

Portanto, aqui sim, aprender a escrever, alfabetizar-se, é mais do que aprender a grafar sons; ou mesmo mais do que aprender a simbolizar graficamente um universo sonoro já por si mesmo simbólico. Aqui, aprender a escrever é aprender novos modos do discurso (gêneros); novos modos de se relacionar com interlocutores, muitas vezes virtuais; novos modos de se relacionar com temas e significados; novos motivos para comunicar em novas situações. Aprender a escrever é, aqui sim, construir uma nova inserção cultural.

Finalmente podemos então vislumbrar mudanças numa prática de intervenção socioconstrutivista no processo de construção da escrita. De saída, essas reflexões implicam alfabetização/letramento centrados na construção do(s) discurso(s) (ou do(s) texto(s)) e de sua(s) situação(ões) de produção (o que inclui motivação) e não uma alfabetização meramente centrada na grafia ou ortografia ou mesmo na representação gráfica do universo sonoro da linguagem.

Ainda nos textos de 1934, Vygotsky faz algumas reflexões de caráter teórico sobre esse processo de construção, mostrando que, por tudo que vimos, o desenvolvimento da escrita não repete a história do desenvolvimento da fala. A criança que começa a aprender a escrever é quase sempre já proficiente em atividades espontâneas e inconscientes (tais como as envolvidas na fala e no diálogo), mas apenas inicia sua construção das habilidades necessárias para a atividade deliberada e abstrata. Não se trata de uma transferência ou de um deslocamento no qual o estágio posterior repete a trajetória do anterior. Não se trata de transferir do som para a grafia, de transcrever simplesmente ou de representar um sistema isomorfo a outro. Trata-se de sistemas análogos – mas não idênticos – que se desenvolvem em direções opostas, dialeticamente: cada sistema influencia o outro e se beneficia de seus pontos fortes, mas também o transforma e modifica.

"O que se deve fazer é ensinar às crianças a linguagem escrita, e não apenas a escrita de letras"

Na parte de "A pré-história da linguagem escrita" que Vygotsky intitula Implicações Práticas, ele chega a três decorrências de caráter prático para as intervenções no processo de alfabetização ou de construção da escrita: a primeira diz respeito a quando se deve começar essas intervenções e as outras duas dizem respeito a como elas devem ser.

Vygotsky aí concorda com Montessori que "seria natural transferir o ensino da escrita para a pré-escola" (VYGOTSKY, 1935, p. 132). Essa idéia aparece mais bem sustentada em Pensamento e Linguagem, em que Vygotsky discute o que Montessori e outros denominaram "período sensível" e relata as experiências montessorianas que mostram que, se ensinarmos uma criança a escrever muito cedo, por volta dos quatro ou cinco anos de idade, sua resposta será uma explosão de escrita: “um uso abundante e imaginativo da escrita que nunca será repetido pelas crianças mais velhas" (VYGOTSKY, 1934, p. 90).

O autor toma este fato como um importante exemplo da grande influência que o aprendizado pode ter quando as funções correspondentes ainda não amadureceram; quando se encontram no Desenvolvimento Potencial, em que o aprendizado em cooperação com os pares mais desenvolvidos (adultos ou colegas) é determinante da construção de um novo domínio de conhecimento e de novas funções.

O interessante aqui é ver que essas constatações de Montessori que Vygotsky reinterpreta, podem ser reencontradas nas pesquisas atuais sobre letramento emergente, muitas delas feitas com crianças pequenas (de dois anos em diante) que têm histórico pontilhado de ricas experiências de interação sobre textos escritos e portadores de textos (livros de histórias, rótulos etc.) na família e na pré-escola. Delas, em geral, diz-se que se "autoalfabetizam". É o caso de Santiago (FERREIRO, 1986); de Lia (MAYRINK-SABINSON, 1987, 1990); de Helena (ROJO, 1993; 1995; 1996). Casos semelhantes são abordados nos trabalhos americanos, por exemplo de Teale (1982; 1984) e de Bissex (1980).

Portanto, não se trata meramente de antecipar (ou postergar ou acelerar) o processo de construção da escrita (entendido mecanicamente) para anos escolares anteriores (ou posteriores ou especiais), mas de reconhecer que um processo de construção da escrita, i.e., uma história de interações que envolvam textos e portadores de textos em ambientes ricos em eventos de letramento, seja na família, na pré-escola, na escolaridade básica (regular ou especial), encarada como qualidade de interação e eficácia de intervenção, pode ser responsável por aquilo que Montessori denominou "escrita explosiva": um uso significativo, frequente e rico da linguagem escrita.

É neste mesmo sentido que vão as reflexões subsequentes de Vygotsky:

Não negamos a possibilidade de se ensinar leitura e escrita às crianças em idade pré-escolar; (...) No entanto, o ensino tem de ser organizado de forma que a leitura e a escrita se tornem necessárias às crianças. Se forem usadas apenas para escrever congratulações oficiais para os membros da diretoria da escola ou para qualquer pessoa que o professor julgar interessante (e sugerir claramente para as crianças), então o exercício da escrita passará a ser puramente mecânico e logo poderá entediar as crianças; suas atividades não se expressarão em sua escrita e suas personalidades não desabrocharão. A leitura e a escrita devem ser algo que a criança necessite (...), uma atividade cultural complexa (VYGOTSKY, 1935, p. 133).

Necessidade, atividade, desejo (motivação) estão aqui colocados em primeiro lugar, mas acompanhados da noção de gênero ("congratulações oficiais"). Cabe-nos, portanto, fazer uma primeira pergunta fundamental para esse novo tipo de intervenção baseado no discurso escrito: quais são os gêneros (ou modos do discurso escrito) necessários à criança, para os quais ela é motivada ou que despertam seu desejo de ler/escrever?

Sabemos que as crianças têm uma motivação mágica, imaginária, grande prazer na leitura e na construção e reprodução de histórias de fadas e de contos maravilhosos. Sabemos também que elas têm outras necessidades de ordem mais prática, comunicativas ou de registro, que envolvem gêneros dependentes da escrita, como bilhetes, receitas, registros ou exposições de experiências escolares, organização de listas ou agendas etc. Em qualquer dos casos, a conclusão de Vygotsky é de que

a escrita deve ser ‘relevante à vida' (...), deve ter significado para as crianças, uma necessidade intrínseca deve ser despertada nelas e a escrita deve ser incorporada a uma tarefa necessária e relevante para a vida. Só então poderemos estar certos de que ela se desenvolverá não como um hábito de mão e dedos, mas como uma forma nova e complexa de linguagem (1935, p. 133).

A terceira implicação prática retirada por Vygotsky é de que é necessário que a escrita seja ensinada "naturalmente", o que, para ele, está ligado à necessidade:

métodos naturais de ensino da leitura e da escrita implicam operações apropriadas sobre o meio ambiente das crianças. Elas devem sentir a necessidade do ler e do escrever no seu brinquedo (1935, p.134).

O próprio Vygotsky admite que essas indicações são ainda extremamente gerais e vagas, mas adverte os educadores para a necessidade de organizar um conjunto de ações pedagógicas para intervir nesse "complexo processo de transição de um tipo de linguagem escrita para outro" (1935, p.134), ou seja, de um gênero a outro.

As implicações práticas de Vygotsky terminam aí. Incorporam, portanto, quatro pontos fundamentais para a elaboração de intervenções pedagógicas, que poderíamos enunciar como:

  1. A escrita construída em interação com a criança deve ser motivada: relevante para a vida, necessária para a atividade em curso, desejada pela criança.
  2. A escrita construída em interação com a criança deve ser uma prática, um uso significativo de leitura e produção de textos, mais do que um ensino ou uma técnica.
  3. Como tal, ela deve constituir-se como discurso (texto) significativo, inserido numa situação de produção significativa, formatado num gênero, ao invés de manipular letras, sons e palavras.
  4. Os diversos discursos escritos (gêneros) construídos em interação com a criança devem ser pensados em sua transição, num processo contínuo de construção social.

Vygotsky limitou-se a retirar decorrências; entretanto, de apenas um (ou dois) desses quatro critérios: o da motivação e o da situação de produção. Podemos hoje, no entanto, com a ajuda de nossa experiência e de nossas reflexões e com o apoio de outras experiências e reflexões de autores como Smolka, Schneuwly e Dolz, tentar ampliar esse conjunto de implicações práticas para a organização de intervenções no processo de construção da escrita, chegando talvez a algo semelhante ao que Pasquier e Dolz (1996) denominaram "um decálogo para ensinar a escrever".

Para entendermos melhor o ponto IV e explorarmos um pouco mais as reflexões de Vygotsky sobre a situação de produção dos diferentes modos de linguagem ou de discurso (inclusive dos diferentes tipos de discurso escrito ou gêneros), podemos pensar que estabelecemos diferentes relações com nossos interlocutores ausentes e virtuais; temos diferentes motivações para escrever e logo estruturamos (em vários níveis) nossos discursos escritos de maneira diversa, caso estejamos escrevendo uma carta para o primo no interior ou para o namorado no exterior; uma receita que a vizinha nos pediu; um relatório de avaliação para os pais de nossos alunos; uma ata de reunião para arquivo e consulta de nossos pares; um requerimento para nossos superiores; um panfleto reivindicando aumento de salário; uma carta para o jornal denunciando um abuso; um diário íntimo; um conto; um romance etc.

Teremos diferentes relações com esses interlocutores virtuais: de maior ou menor familiaridade e conhecimentos compartilhados – de graus de hierarquia/formalidade ou familiaridade/intimidade diferentes – que vão determinar o que podemos ou não dizer, o que devemos ou não dizer e como e quando. Teremos também diferentes motivos ou intenções de efeito: comunicar e fazer contato; guiar a ação do interlocutor; informar e registrar; solicitar e obter algo; reivindicar ou protestar; registrar nossa vivência e nossas sensações; envolver; fazer imaginar; dar prazer etc. Isso implicará formas diversas de estruturar nossos discursos em formas de texto muito diferentes.

Nesse sentido, não se pode falar de escrita, mas de diferentes modos da linguagem escrita. É o que viemos, até aqui, chamando de diferentes "gêneros" (BAKHTIN, 1979).

Assim, na construção da escrita, a criança tem muito mais a aprender do que as letras: uma infinidade de gêneros viabilizados pela escritura se abrem à criança quando ela começa a adentrar o mundo da escrita. Uns mais complexos e abstratos do que outros. É, no meu entender, nesse sentido que Vygotsky adverte os educadores de que eles devem administrar a transição de uma forma de linguagem escrita a outra.

Schneuwly (1994) e Schneuwly e Dolz (no prelo), propondo os gêneros como grandes instrumentos para a aprendizagem do texto escrito, sugerem uma complexificação dos gêneros que vá organizar o currículo numa progressão discursiva, em que todos os tipos de texto (narrativos, expositivos, argumentativos) devem ser construídos das suas formas concretas (gêneros) mais primitivas e simples para as mais complexas e tardias.

Poderíamos entender dessa maneira o que Vygotsky está sugerindo no item IV, sobre caber ao educador organizar essa transição. Mas essa discussão pode também acrescentar ainda três novos pontos a nosso "decálogo":

  1. A socioconstrução dos diversos modos de discurso escrito (gêneros), negociada na interação, deve sempre ser informada por uma situação de produção clara, explícita e, se possível, real (relevante para a vida) ou realista.
  2. A socioconstrução dos diversos modos de discurso escrito (gêneros), negociada na interação, deve levar em conta diferentes tipos de discurso e organizar-se dos gêneros mais simples para os mais complexos.
  3. Na prática social dos gêneros em leitura e produção, eles se constituem como grandes instrumentos para a construção de aspectos formais e estruturais próprios do discurso escrito (grafia; ortografia; vocabulário; sintaxe; tipos de texto).

Um desses aspectos formais e estruturais importantes para a escrita – contando com os instrumentos de escrita de que dispomos hoje, i.e., lápis e papel; mecanografia; softwares processadores de texto – é o que chamamos grafia e ortografia. Mas esse é apenas um dos muitos aspectos formais e estruturais envolvidos na escrita e, na minha opinião, não mais crucial do que outros.

Quando Vygotsky discute a natureza da simbolização na linguagem escrita, muito na direção do trabalho de Emilia Ferreiro, alerta-nos para o fato de que se trata da construção de uma simbolização (ou representação) de segunda ordem: trata-se de aprender a "desenhar a fala". Mas ele também nos alerta que esse apoio na fala deve desaparecer.

A meu ver – e discordando de Oliveira (1993) –, esse é um dos poucos pontos em que o trabalho de Vygotsky aproxima-se do de Ferreiro. No entanto, como transparece no nosso item VII, esse é um aspecto formal – dentre muitos outros – que faz sentido somente no uso significativo e na prática discursiva. Isso nos leva a destacar e enfatizar um oitavo ponto:

  1. A socioconstrução da (orto)grafia só não será mecânica e limitada a uma alfabetização apenas funcional se inserida em práticas discursivas e usos significativos de escrita.

Vygotsky ainda comenta um último critério, que é o da relação do(s) discurso(s) escrito(s) com o pensamento verbal; nessa discussão, ressalta o caráter abstrato (algébrico), consciente, deliberado e regulador das atividades de escrita. O que está em questão aqui, como já dissemos, é a consciência, o controle, a autonomia e a autogestão.

Novamente, autores como Schneuwly (1985), Smolka (1993), Pasquier e Dolz (1996) ajudam-nos na reflexão vygotskiana a esse respeito. Smolka (1993) faz uma análise detalhada das relações entre a fala interior e o discurso escrito por uma criança em sala de aula de alfabetização inicial, a qual nos ajuda a compreender como a fala interior funciona como um "rascunho" expandido do que é grafado pela criança no papel e, assim, a ter uma melhor compreensão tanto do que temos chamado "planejamento" como das marcas indecifráveis que aparecem nos textos da alfabetização inicial. Ajuda-nos a perceber que algo como

umvucmtvo auvtb

pode não estar meramente correspondendo a "hipóteses pré-silábicas ou silábicas", mas a

Era uma vez um bosque que mostrava bicho. Era uma vez bastante bicho vivo. Uma vez, nós...

Os trabalhos de Schneuwly (1985) e de Pasquier e Dolz (1996) sugerem que as atividades que exigem maior grau de consciência e de controle, como as atividades cooperativas de discussão, comparação e revisão de textos escritos pelas crianças, acarretam incremento na eficácia, na autonomia e na autogestão da produção.

Dessas reflexões podemos retirar os dois últimos pontos de nosso "decálogo":

  1. Na socioconstrução dos diversos modos de discurso escrito na interação, os produtos obtidos deverão ser interpretados em termos de processo, i.e., em relação com a fala interna/pensamento verbal que os originou.
  2. Na socioconstrução dos diversos modos de discurso escrito na interação, as atividades pedagógicas geradoras de consciência e controle devem ser praticadas e conduzidas no sentido da apropriação, da emancipação e da autonomia.

Portanto, posso agora concluir esta reflexão polifônica que vai "da teoria à prática", ainda uma vez polifonicamente dizendo, com Schneuwly (1985, p. 201), que:

Em resumo, uma abordagem vygotskiana do desenvolvimento da linguagem [escrita] deve se colocar questões e intervir ao menos em três níveis: no nível da análise das práticas sociais de escrita e da definição da atividade discursiva; no nível de suas origens interpsicológicas (pré-­história da escrita, situações de comunicação por escrito, relação com a linguagem) e no nível das mediações semióticas das atividades discursivas que permitem seu controle e sua transformação.

Originalmente publicado na década de 1980.

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Publicado em 11 de fevereiro de 2014

Publicado em 11 de fevereiro de 2014

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