Cidadania e internet

Cândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

O IBGE acaba de divulgar dados sobre o tamanho da inclusão/exclusão no Brasil num campo particularmente estratégico para a cidadania neste início do século XXI, a internet. Em 2013, praticamente metade da população brasileira acima de 10 anos de idade teve acesso à internet, algo a celebrar. Mas, ao mesmo tempo, temos que reconhecer que temos outra metade excluída, vivendo ainda no século passado. Essa divisão mostra a força da desigualdade social brasileira presente em todos os campos. Estamos diante de grandes desafios para a cidadania e a democracia, pois se trata do fundamental direito à comunicação, do espaço público de troca e circulação de informações e conhecimentos, da cultura, enfim, bens comuns essenciais que cimentam a vida coletiva.

Em termos de novas tecnologias de informação e comunicação (NTIC), não sou nenhum especialista. Por sinal, sou um migrante em termos de alfabetização digital. Tenho dificuldades de explorar todas as possibilidades que oferecem a internet e os smartphones até hoje. Mas a luta pela democratização da informação e a comunicação é parte essencial de meu ativismo e do Ibase. Por sinal, a visão, a ousadia e a determinação de Carlos Afonso (parceiro do Betinho e cofundador do Ibase) levaram à criação do Alternex, operacional a partir de 1989, primeiro provedor de acesso à internet de entidades da sociedade civil brasileira.

O analfabetismo é uma odiosa exclusão do acesso pleno aos códigos de leitura e escrita e, portanto, ao conhecimento, um comum criado cooperativamente pela humanidade. O analfabetismo digital significa a reprodução da mesma exclusão na era das NTIC. Porém o acesso à internet é apenas uma condição necessária; ela por si só não democratiza a informação e a comunicação. Mas o acesso a ela se torna fundamental e indispensável para quebrar a quase total privatização da comunicação entre nós e a presença de verdadeiros grupos monopolistas que controlam a grande mídia. Pelos dados do IBGE, em 2013 a televisão estava presente em praticamente todos os domicílios brasileiros, só que os controladores de emissoras de TV que contam não são mais do que um pequeno punhado, menos que os dedos da mão. Felizmente, na luta por um marco civil da internet a neutralidade no acesso está assegurada no Brasil, derrotando os grandes grupos das teles e da mídia.
O grande desafio para avançar na democratização nesse campo estratégico é enfrentar a mercantalização do bem comum da comunicação, da troca de informações e conhecimentos. Na própria internet a mercantilização é a maior ameaça em seu potencial democratizador: começo lembrando o mais básico, o software, aquele conhecimento que organiza o sistema operacional de computadores e smartphones, sem o que internet não existiria. Ao menos desde os 80 do século passado existe uma luta pelo software livre, em nome da democracia e da liberdade de produção intelectual e de comunicação. Aliás, foi devido ao controle por propriedade intelectual do código fonte pela Microsoft, fornecedora de grande parte dos sistemas operacionais normalmente usados, inclusive pelo governo brasileiro, que a tal espionagem cibernética pelos EUA, descoberta dois anos atrás, foi possível. Mas o problema da mercantilização não se limita a isso. Tem a publicidade que invade a rede e, sobretudo, tem a venda do perfil da gente, usuária, para fins comerciais em aplicativos e sistemas apresentados como livres. E não dá para ignorar a utilização da internet pelo crime organizado, pedofilia, e tudo o mais.

A internet é, sim, sinônimo de liberdade, apesar de todos os problemas apontados acima e outros mais. Para a questão democrática da quebra dos monopólios privados de comunicação e da organização de redes sociais livres a internet representa uma grande possibilidade e um desafio. Considero inigualável a possibilidade que a internet oferece em termos de horizontalidade de troca de informação e conhecimento, de simultaneidade com o que ocorre no momento em qualquer parte, de sentir-se parte do planeta e da humanidade inteira, bastando poder traduzir linguagens de nossa imensa diversidade. Trata-se de liberdade; esta é a melhor definição, mas liberdade totalmente anárquica, pois não existem hierarquias e representações na internet. Podemos seguir e ser seguidos, podemos nem ser notados ou levados em consideração. Mas podemos dizer, comunicar o que queremos. Mesmo na China e em todos os regimes autoritários controladores do bem mais essencial das democracias e da cidadania ativa, sempre é possível comunicar-se por meio da versátil internet. Jeito, na internet, sempre se acha; claro, inventando e reinventando sempre, até criando códigos.

Muitas insurgências e resistências pelo mundo estão se organizando via redes sociais que a internet permite. Foi assim na Primavera Árabe, na Turquia e no Brasil, naquela explosão cidadã de 2013. Abaixo-assinados e campanhas mundiais se organizam via internet. O Fórum Social Mundial não teria se tornado mundial sem a internet.

Como ativista cidadão pela radicalização democrática, a questão mais intrigante – que me dá insônia até – é como incidir mais estrategicamente nesse novo espaço público mundial criado pela internet e as redes sociais digitais. Será que não é aí que será possível disputar sentidos da vida em comum, do como mudar para modos de produção e de viver social e ambientalmente sustentáveis, de maior liberdade e igualade cidadã, de participação, de respeito à diversidade e de solidariedade? Penso que novos imaginários mobilizadores e a criação de movimentos cidadãos planetários irresistíveis dependem do uso inteligente das possibilidades da internet e das redes sociais digitais. A quebra dos monopólios privados na grande mídia só se completará se soubermos inventar pela internet um processo cooperativo e disputado democraticamente de construção de alternativas ao desenvolvimento.

Como fazer isto sem criar estruturas e representações? Como valorizar a enorme diversidade e tê-la como parâmetro para mudanças e alternativas necessariamente diversas como somos nós, os humanos, e o planeta, bem comum único? Como manter liberdade e horizontalidade como essenciais para a igualdade cidadã planetária?

Enfim, com a espantosa expansão da internet e das redes, tais questões continuam em aberto. Talvez porque ainda estamos muito enquadrados por modos formais e representativos de prática democrática, sem a radicalidade da participação, por velhas soberanias nacionais que nos separam ao invés de nos unir como humanidade, por dificuldades de traduzir nossa diversidade social e cultural. Claro, temos uma globalização homogeneizadora pela frente, colonizadora a seu modo, impondo um sistema mundial de extração e concentração de riquezas e, junto, valores de sucesso individual, de consumo mais do que felicidade, e, o que é pior, um mesmo sistema de ver e encarar o mundo. Para a nossa emancipação social e cultural como humanidade precisamos enfrentar tudo isso. O meio, a internet, está ao alcance da mão. Lutemos por democracia total nela, de todo mundo, para todas e todos, sem exclusões, controles, espionagens e manipulações. Talvez sonho impossível, mas vale ousar.

Publicado em 26 de maio de 2015

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