A Capoeira como prática pedagógica na Educação Infantil

Omri Ferradura Breda

Professor especializado em capoeira na Educação Infantil

A Capoeira, em 2014, foi reconhecida pela Unesco como Patrimônio Imaterial da Humanidade. Esse reconhecimento se deu parcialmente pelo fato de ele já estar inserida na educação brasileira, seja em escolas de Educação Infantil, seja nas universidades.

No entanto, o papel da arte na educação brasileira tradicionalmente é de “ferramenta”, de meio de facilitação no processo de aprendizagem dos conteúdos acadêmicos, estes sim considerados imprescindíveis. Essa subestimação do fazer artístico é perceptível no modo como são encaradas as artes plásticas e musicais nas escolas. A situação se torna tão mais grave quanto mais a expressão artística se aproxima do fazer popular, pois a arte popular não é sequer classificada como tal e sim, no máximo, como folclore. Dessa maneira, os professores de Capoeira têm seu potencial educacional limitado a somente suas aulas, diminuindo a influência que o conhecimento popular pode ter na escola.

Este trabalho visa representar a capoeira como um saber popular potencialmente transformador na formação dos professores que atuarão na Educação Infantil, faixa etária em que o corpo, a música e o ethos da capoeira vão ao encontro das necessidades básicas de movimento e descoberta.

Referenciais

Utilizamos como referencial teórico os trabalhos de Paulo Freire, Terry Orlick, Béziers, Peter Slade e Denise Sardinha, entre outros.

A cada tópico, exemplificamos uma atividade prática relacionada à teoria.

Introdução

A capoeira nasce no seio da população negra, escravizada ou descendente de escravizados, e carrega um estigma social que a faz ser proibida por lei no primeiro Código Penal da República. Passados 100 anos, ela se afirma como ferramenta educacional, mantendo um compromisso político de lutar contra as desigualdades, sejam elas étnicas, religiosas ou de gênero. Em uma aula de Capoeira típica, encontraremos pessoas de diversas faixas etárias, pesos, gêneros. O ethos da capoeira encoraja uma educação inclusiva e democrática.

A formação do professor de Capoeira

A formação acadêmica não influencia a qualificação para lecionar Capoeira. Na maior parte das vezes, o capoeirista dedicado – analfabeto ou doutor – se motiva a dar aula de forma “amadora”, no sentido de que “ama” o que faz e o faz por prazer. Com o aparecimento de oportunidades profissionais, muitos acabam por abraçar a docência como atividade principal. A partir daí, o novo professor costuma iniciar pesquisas autônomas sobre como melhor proceder com seu público-alvo, sejam crianças, jovens, adultos, idosos, sejam pessoas com qualquer tipo de incapacidade física ou mental. A razão pela qual a presença da Capoeira é tão forte em todas essas instâncias e a forma como os professores se especializam podem servir de estudo para os cursos universitários de formação de professores e sinalizam para o potencial sucesso do que Frei Betto defende como modelo de aprendizagem: “hoje a metodologia [nas escolas brasileiras] é teoria-prática-teoria, quando o correto seria prática-teoria-prática, ou seja, o ponto de partida e o ponto de chegada é a vida dos educandos” (Betto, apud Bologna, 2002).

Os mestres que primeiro fundaram escola foram os baianos Bimba e Pastinha, que organizaram seus saberes na Salvador da segunda metade do século XX. Nenhum dos dois tinha passado nem perto do ensino “superior”, numa universidade, nem dominavam a chamada “norma culta” da língua portuguesa, mas desenvolveram metodologias de ensino e filosofias pedagógicas que abriram caminho para a Capoeira se consolidar nacional e internacionalmente como prática pedagógica e artística.

Esses dois negros baianos tinham uma gama de universitários e intelectuais ao seu redor, buscando seu conhecimento – como Jorge Amado, por exemplo. Levantam-se aí questões sobre o saber “universal” em oposição ao “universitário”, ou, como interrogava Freinet: “a maior parte dessas ideias que os intelectuais julgam ter descoberto não correm desde sempre entre o povo?” (1985).

Pedagogia da Capoeira

Pensando numa Pedagogia da Capoeira que possa auxiliar professores da Educação Infantil a utilizar a cultura em sala de aula, dividimos a base fundamental do ensino da capoeira em quatro princípios:

a) Naturalidade do movimento;
b) Criatividade;
c) Cooperatividade;
d) Historicidade.

Princípio da naturalidade do movimento

O uso da capoeira para estimular as crianças a manter, aprimorar e, em muitos casos, recuperar movimentos próprios do corpo humano é ponto essencial do trabalho de corpo e movimento para a Educação Infantil.

Após o parto, para atingir a postura ereta, passamos por diversos estágios. Primeiramente rastejamos, posteriormente engatinhamos, passamos para o agachamento e finalmente ficamos eretos. Segundo Keleman (1992), rastejar “é equilíbrio. Empurrar para longe da superfície, incorporar a nova superfície”; o engatinhamento “aproxima das funções típicas dos mamíferos, como agachar, cair, usar os braços para equilibrar e ter a estabilidade necessária aos primeiros estágios do andar”.

De acordo com Béziers (1992), é importante que antes mesmo de andar a criança consiga “se arrastar, engatinhar, subir degraus de gatinhas etc.”. A capoeira possibilita às crianças um reencontro com posições corporais recém-utilizadas no seu desenvolvimento como humanos: rastejar, acocorar, engatinhar ou andar nos quatro apoios, preparando o corpo de modo orgânico para novas experiências corporais.

Com o passar dos anos, a criança tende a imitar os padrões corporais adultos, passando a abandonar gradativamente algumas habilidades motoras. O sofá, as cadeiras e carteiras escolares, a televisão, os jogos eletrônicos, as restrições sociais ao movimento (“para de rastejar, vai sujar sua roupa!”) e até o excesso de deveres escolares as levam a permanecer por longos períodos do dia em posições estáticas. O resultado disso são adultos sedentários, com inúmeros encurtamentos musculares resultantes de longos anos de inatividade. Na escolas para crianças de 1 a 6 anos, a cada movimento mais ousado de um aluno seguem-se os avisos de “Você vai cair! Vai quebrar a perna! Para de correr!”. Segundo Sardinha (2004),

a deterioração da condição física da criança começa logo que ela é imobilizada por longas horas nas carteiras escolares nos primeiros anos do Ensino Fundamental e, em alguns casos mais graves, já na Educação Infantil. A mudança da quantidade de movimento que ela fazia antes da escola e que faz na escola é enorme. A escola, então, estimula o sedentarismo?

Em Educação muito se fala na educação bancária, conceito utilizado por Paulo Freire para definir a simples transferência de informações por parte do professor, sem que haja conhecimento significativo por parte do aluno. Porém, outra “educação bancária” tão perniciosa quanto a primeira e muitíssimo menos debatida é aquela que acorrenta os alunos ao “banco” escolar por horas e horas a fio, diariamente, durante anos.

A Capoeira aparece nesse cenário como uma alternativa para a prevenção de doenças e para a manutenção do bom funcionamento corporal.

Execução das atividades: história corporal

Os movimentos da Capoeira fascinam as crianças por sua semelhança com o mundo animal. Nomes como “coice do cavalo”, “rabo de arraia”, “caranguejo” têm apelo forte para a imaginação infantil.

O professor tem a possibilidade de trabalhar a naturalidade do movimento infantil utilizando uma gama de animais, que vão de caracóis a gaviões, de gorilas a sapos, de ursos a leões, proporcionando um ambiente de descoberta corporal para as crianças.

Soler (2003) afirma que

o jogo simbólico é a representação corporal do imaginário, havendo nele o predomínio da fantasia, mas estabelecendo uma ligação com o mundo real por meio de atividades psicomotoras, que prendem a criança a realidade.

Um jogo simbólico de fácil execução é a “história corporal”: o professor inicia contando uma história e pedindo para as crianças interpretarem corporalmente o que está sendo dito. Por exemplo: “Um sapo vinha pulando lentamente pela floresta quando, de repente, viu um enorme leão correndo muito rápido. O jacaré, que estava deitado no chão, começou a gritar: ‘pula, sapo, pula!!!’, e o sapo deu um pulo tão alto que caiu com o bumbum no chão!”. A história continua com diversos animais, enquanto cada criança interpreta corporalmente a forma como imagina ser o pulo do sapo, o correr do leão etc.

Princípio da cooperatividade

Morris (1967) afirma que toda a nossa evolução, em termos genéticos, se deu em função das soluções cooperativas para as questões essenciais de alimentação, sexo, crescimento e conforto social. Orlick (1978) diz que a noção darwinista de sobrevivência dos mais aptos está relacionada à habilidade deles em cooperar, formando grupos sociais coesos.

A cooperação é o que diferencia a capoeira das outras artes marciais. Os jogadores, os músicos, os componentes da roda e o público são todos atores sociais participantes.

Na aula de Capoeira na escola, as crianças se alternam em todos esses papéis, interpretando em grupo um pequeno teatro social.

No mundo moderno a competição e o treinamento para ela são muitas vezes partes estruturantes das funções assumidas pelas instituições escolares. A Capoeira se baseia em outro paradigma, firmando a ideia de que o jogo, o prazer e a aprendizagem devem nascer em um ambiente de harmonia e cooperação.

Tomemos como exemplo o jogo da “dança das cadeiras”: o objetivo é sentar-se na pausa de uma música, retirando as cadeiras e diminuindo o número de jogadores sucessivamente. Esse jogo, aparentemente inocente e muitíssimo difundido, esconde em sua essência agudos questionamentos. Senão vejamos: como se sente a criança que perde primeiro e tem que esperar sentada o resto do jogo? E se essa criança for desatenta e for sempre uma das primeiras a perder? E se tiver TDAH ou surdez parcial? A necessidade de perder e se frustrar é essencial para a criança, mas o que acontece com aquela que, segundo Soler (1997), vira uma “especialista em perdas”?

Execução das atividades: dança da cadeira-capoeira

O objetivo da aula é apresentar às crianças uma nova forma de jogar um jogo já conhecido por elas, baseado no paradigma da cooperação. Ao iniciar uma atividade com conhecimentos prévios dos alunos, modificados por uma nova ótica, facilitamos a aquisição de conhecimentos significativos e promovemos a reflexão sobre o modo de vida moderno, baseado na competição desenfreada.
O jogo que propomos consiste em fazer exatamente a mesma coisa da dança das cadeiras tradicional, entretanto é pedido aos alunos que rodem em volta das cadeiras utilizando movimentos da capoeira e que, ao se retirar uma cadeira, todos, sem exceção, tenham que conseguir sentar nas restantes. Mais nada deve ser dito, para que os próprios jogadores descubram como realizar tal tarefa, que consiste em ceder um espaço para os companheiros que não conseguiram sentar, seja liberando um lado da cadeira, seja convidando-os para ficar no colo dos que conseguiram.

A cada rodada, uma cadeira é retirada, até que sobre somente uma, onde todos devem sentar juntos, organizando-se para não cair.

Princípio da historicidade

As músicas da capoeira são uma verdadeira biblioteca oral, perpetuando saberes, mitos, ritos e valores históricos caros à cultura popular, podendo levar o educando a perceber que ele é um novo elo numa corrente histórica que envolve personagens como Zumbi dos Palmares e Besouro Cordão de Ouro.

A possibilidade de vivenciar dramaticamente os personagens que se interpreta pode auxiliar na aprendizagem e na capacidade de reflexão. Silva (apud Munanga, 2001) sugere que o professor conte “a história de Zumbi dos Palmares, dos quilombos, das revoltas e insurreições” para aguçar o pensamento crítico. A forma como a Capoeira conta essas histórias é sempre em forma de narrações míticas, muitas vezes musicais. O jogo dramático que a Capoeira propõe permite ao educando, mais do que ouvir, vivenciar no seu próprio corpo a sensação de “ser” Zumbi dos Palmares.

Execução das atividades: Zumbi e os quilombolas

Após contextualizar a importância de Zumbi e a história dos quilombos, o professor propõe uma atividade corporal. O jogo consiste num pique-pega: numa área determinada para a brincadeira, uma criança é escolhida para ser Zumbi dos Palmares, tendo que salvar os companheiros quilombolas que serão perseguidos pelos invasores. O invasor deve encostar em qualquer criança para que ela fique congelada com as pernas abertas. Para salvá-la, Zumbi tem que passar por baixo de suas pernas. Zumbi não pode ser pego, pois é um guerreiro “mágico”.

Princípio da criatividade

Ciavatta (2009), ao falar do ensino de Música, afirma a necessidade de buscar “quase que obstinadamente a autonomia do aluno”. Na Capoeira, acredita-se que essa autonomia só pode nascer num ambiente que favoreça a criatividade e a livre expressão artística, tendo o corpo e a música como veículo dessas forças.

O fazer musical nas aulas de Capoeira na Educação Infantil é tradicionalmente iniciado de forma espontânea, despadronizada, baseada na pesquisa sonora improvisada. Posteriormente, segue-se em frente para o ensino de padrões musicais específicos da Capoeira, desenvolvendo conceitos musicais básicos, como intensidade, timbre, altura etc. Como, na tradição africana, o corpo é, segundo Sodré (2002), uma unidade com o fazer musical, sempre ritualizado em sociedade, a Capoeira o trabalha simultaneamente ao aprendizado da técnica dos instrumentos musicais, desenvolvendo um pensar músico-corporal que engloba holisticamente as duas dimensões.

Partindo do mesmo paradigma de descoberta criativa, no ensino de movimentos é priorizado o falar o que fazer, ao invés de mostrar como fazer. Em lugar de ensinar sequências e movimentos fixos, o professor de Capoeira se atém a fornecer modelos e regras gerais a partir dos quais cada criança pode desenvolver, de forma autônoma, sua própria interpretação da Capoeira. Mensagens amplas, como “passar o pé”, “passar por baixo”, “rodar” são interpretadas de maneira muito pessoal, auxiliando no desenvolvimento de um repertório corporal individual. Dessa forma, a cada aula um golpe pode ser “inventado”, “descoberto”, por uma criança.

Um dos maiores mestres de Capoeira do passado foi Vicente Ferreira Pastinha, que nos deixou o seguinte ensinamento: “A Capoeira Angola só pode ser ensinada sem forçar a naturalidade da pessoa. O negócio é aproveitar os gestos livres e próprios de cada um” (Decanio Filho, 1997). Seguindo esse pensamento, o professor pode facilitar a aprendizagem incentivando cada um a expressar sua própria versão da Capoeira, no lugar de mecanizar os movimentos em prol de uma suposta “técnica”.

A dança da Capoeira permite a criação de uma forma individual de movimento. Segundo Slade (1978), “o estilo individual na dança é tão importante quanto o estilo na letra escrita. Levantam-se aí questões sobre a desejabilidade de se impor cedo demais formas especializadas de movimento”.

No decorrer das atividades da Capoeira as crianças exercitam valências físicas, musicais e intelectuais de forma autônoma e criativa. Por conseguinte, podemos presumir que atividades geradoras de experiências criativas auxiliam no desenvolvimento da autonomia, e esta, por sua vez, é componente fundamental do processo ensino-aprendizagem em uma concepção democrática.

Execução das atividades: o animal silencioso

O jogo da Capoeira pode servir como mola-mestra para um jogo dramático representativo do mundo da criança. Considerando a não necessidade de dominar um estilo considerado “certo”, os professores podem utilizar elementos que trabalhem a espontaneidade, a improvisação, o fazer coletivo e o prazer imediato, o sentido de aqui e agora que realmente interessa aos jogadores numa roda de capoeira.

Apresentamos agora um jogo que facilita a compreensão desses conceitos: uma criança é escolhida para ser o “animal silencioso” (elefante, leão, onça etc.) e deitar no centro da roda, fingindo dormir. As demais, com instrumentos na mão, irão circular ao redor dela, tocando os instrumentos de forma suave, acompanhando um padrão rítmico determinado pelo professor. Ao sinal deste, todos irão tocar bem forte, “acordando” o animal, que irá tentar pegar os amigos. Quem for pego tem que fazer uma interpretação do animal escolhido e passa a ser o pegador.

Conclusão

A Capoeira, como ferramenta educacional, pode servir tanto aos professores especializados na atividade quanto aos educadores formais, leigos na arte, bastando para isso que se conscientizem da necessidade de incluir esses conhecimentos em suas práticas. Isso pode ser difícil devido à formação dos professores, pois, como afirma Silva (apud Dayrell, 1996): “Se atentarmos para os currículos dos cursos de formação de professores, todos eles (são) elaborados e desenvolvidos unicamente a partir de teóricos ocidentais que organizam seu pensamento em base eurocêntrica”.

Uma visão que respeite a cultura brasileira como parte fundamental na formação de professores e no currículo na Educação Infantil tem o potencial de criar uma pedagogia transformadora, tendo a Capoeira como uma das bases dessa nova educação.

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Site pesquisado

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Publicado em 23 de junho de 2015

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