África e Brasil: um diálogo em língua portuguesa e literatura

Gisele Ferreira da Silva

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Etnicorraciais (Cefet-RJ), graduanda em Letras (Unesa), graduada no Curso Normal Superior pelo Iserj, especialista em Psicopedagogia Institucional e Orientação Educacional/Pedagógica (UCAM), professora da SME-RJ, atuando em EJA

Introdução

A Lei nº 10.639/03 determina que o currículo escolar deve contemplar a “História e Cultura Afro-Brasileira, a História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”. A partir de então, tornou-se Lei que as práticas pedagógicas abranjam esse tema em todo o currículo, mas principalmente nas áreas de História, Artes e Literatura.

Nos últimos anos o assunto vem sendo abordado em muitas redes de ensino e abrangendo algumas políticas para atender a essa demanda.

É necessário refletir sobre por que uma Lei, ou seja, um instrumento com força oficial legal, determina que se estude a África. Podemos concluir que, antes, pouco havia sobre o tema nos currículos e livros didáticos e muito ainda está para ser feito. “Nos anos 1980 podíamos contar nos dedos de uma das mãos o número de brasileiros das áreas de Humanidades, aí incluídas as Literaturas e Artes, que se dedicavam aos estudos africanos” (Zamparoni, 2012, p. 257).

A questão não é apenas privilegiar um tipo de conhecimento, mas sim que se dê oportunidade de acesso a outros, principalmente quando estes apresentarem ligação direta com o Brasil.

É muito difícil falar de África no singular ou de uma África no Brasil. São muitas as sociedades, diversas em seu desenvolvimento, diversas em sua origem, diversas em sua cultura. (...) Para descobrir essas Áfricas, também há que se despertar a curiosidade, aguçar o interesse, estimular a admiração. Portanto, é preciso trazer essas Áfricas para dentro de espaços culturais e educativos. Ler sim, mas também escutar, ver, assistir, participar (Lima, 2004, p. 6-7).

Nós, professores, em nossa experiência diária, precisamos fazer essa mediação na construção de um referencial mais crítico; destaco esta como a questão mais relevante, pois não se deve ser um mero transmissor de tais conteúdos sem minimamente refletir sobre eles. O professor continuamente observa os alunos frente os temas trabalhados e, dessa forma, é possível dar uma contribuição embasada.

Políticas públicas

Antes da Lei nº 10.639/03, alguns documentos, como os Parâmetros Curriculares Nacionais e a Lei de Diretrizes e Bases, por exemplo, já abordavam a diversidade e indicavam possibilidades de inserções sobre a África. Conforme acrescenta Oliva (2009, p. 145), “Todos esses documentos apontavam para a importância ou para a obrigatoriedade da introdução do estudo da História Africana nas escolas brasileiras de Ensino Fundamental e Ensino Médio”. Contudo, após 2003, o debate se tornou mais contundente.

No entanto, esse debate sobre o reconhecimento de ações afirmativas inicia-se tardiamente no Brasil, se compararmos a outros países e refletirmos sobre desdobramentos de uma ideia iniciada em outro século: a ideia de uma democracia racial.

A academia brasileira, da medicina à história, passando pelas emergentes ciências sociais, produziu desde meados do século XIX uma avalanche de teses e argumentos que por vezes nos soam disparatados acerca do tema. No passado, a produção acadêmica estava interessada na “questão negra”, no “problema negro”; hoje está interessada nas “relações raciais”, o que não deixa de ser a outra face da mesma velha moeda: o que interessou no passado e quase até os dias de hoje foram os negros e mestiços no Brasil com pouca ou nenhuma referência à África (Zamparoni, 2007, p. 46).

Todo esse processo, portanto, marca o imaginário e o inconsciente coletivo mesmo após todos esses séculos. Frequentemente é possível presenciar o debate de situações em que o negro, mesmo em funções parecidas com as do branco, recebe menor remuneração, os cargos de liderança ou tidos como de destaque ou importância ainda apresentam pouca participação e/ou presença negra, o acesso aos níveis mais elevados de estudo também sempre foi questão complexa.

O que se busca é o direito e a oportunidade de “os negros pleitearem seu reconhecimento como sujeitos para poderem impor sua efetiva participação num diálogo de culturas” (Bernd,1992, p. 270).

Afinal, “no interior de qualquer formação cultural as camadas dirigentes se valem de diversas formas discursivas e as transformam em ideologia para assegurar o seu domínio” (Reis, 1992, p. 66).

Assim, levantamos questões imprescindíveis sobre o que as políticas públicas valorizam. A quem interessa preservar certas memórias e não outras? Por que iniciar algumas políticas em determinadas épocas em detrimento de outras? “Durante muito tempo, a historiografia ocultou e ignorou a contribuição das sociedades e culturas africanas” (Lima, 2004, p. 2). Diante disso, encontramos atualmente um campo diverso em transformação.

Um dos ganhos trazidos pela Lei nº 10.639/03 é a abertura ao debate, uma vez que o tema precisa ser discutido nos mais diversos níveis (Ensino Básico, formação de professores, pesquisas acadêmicas etc.). Tudo isto se mostra importante. É possível avançar e refletir, levando os alunos à conscientização, a uma análise crítica da sociedade em que vive e à compreensão de que a escola reflete essa sociedade.

Entretanto, sabemos que “não é simples pensar o ‘como fazer’ quando a questão envolve séculos de desconhecimento e distanciamento” (Lima, 2004, p. 5).

Inúmeras transformações, complexidades, diferenças, diversidades refletem na escola, que faz parte da sociedade, em que encontramos um cenário plural de formação de culturas, valores, hábitos, ideologias.

A escola é um espaço institucional e, em muitos currículos presentes nesses espaços, determinadas histórias e contribuições não são incluídas ou, quando são, apresentam-se de forma menor se comparadas aos outros conteúdos tidos como cânones no processo escolar. Conforme elucida Reis (1992, p. 70),

nas artes em geral e na literatura, (...) cânon significa um perene e exemplar conjunto de obras – os clássicos, as obras-primas dos grandes mestres –, um patrimônio da humanidade (e, hoje percebemos com mais clareza), essa “humanidade” é muito fechada e restrita.

Questiona-se então por que valorizar uns e não outros, passando-se assim por uma pluralidade epistêmica, conforme defende Mignolo (2004). Nos espaços escolares, aparecem conflitos de diversas ordens: cognitivos, emocionais, relacionais, corporais; muitas vezes, professores e alunos constroem, de acordo com sua maneira de pensar, diferentes modos de agir ao fazer suas escolhas.

A área de Língua Portuguesa e Literatura

No trabalho pedagógico, os temas de trabalho perpassam muitas vezes de forma interdisciplinar, sem que seja necessário privilegiar um campo em detrimento de outro. Entretanto, o trabalho com os primeiros anos de escolaridade do Ensino Fundamental tem representado a etapa em que deveriam se consolidar os aspectos e habilidades relacionados à leitura e escrita competente, ou seja, a formação de um leitor consciente e crítico. Por isso, este trabalho caminha em direção a área de Língua Portuguesa, um campo do conhecimento que objetiva ampliar essa competência linguística e tem contato privilegiado e necessário com a literatura.

Vivemos em uma sociedade em que as práticas de leitura e escrita se fazem presentes, em que é necessário que os sujeitos apresentem domínio dessas práticas para que possam exercer sua cidadania de forma plena (Soares, 2002).

A entrada na escola representa essa aquisição formal, evidentemente articulando os saberes e vivências trazidos pelo educando.

Durante os primeiros anos do Ensino Fundamental, as habilidades relacionadas à leitura e à escrita vão se desenvolvendo em processo contínuo. Além disso, a Literatura é uma das áreas previstas pela Lei nº 10.639/03.

Para além dos textos e reflexões realizadas pelo viés do historiador, outros especialistas – na maioria das vezes ligados à Antropologia e à Literatura – também têm se dedicado a lançar questões e formular propostas acerca do tema (Oliva, 2009, p.159).

Busca-se que o educando tenha contato com diferentes tipos de textos, como músicas, histórias, lendas e contos africanos, entre outros, que permitam uma reflexão crítica, trazendo elementos sobre vida, costumes, cultura, política e realidade africana. Saindo, portanto, de uma visão estereotipada, como coloca Sansone (2002): “estar atento ao uso e abuso da África ou estereótipos fabricados de uma África no Brasil”.

Deste modo, este trabalho apresenta uma sugestão de atividade pedagógica possível a partir da perspectiva exposta.

O projeto

Tema:

Realidades sociais: preconceitos, semelhanças e diferenças
Conto escolhido: “A fronteira de asfalto”, do livro A cidade e a infância, de José Luandino Vieira

Por que José Luandino Vieira?

A justificativa da escolha desse autor está ligada ao fato de que ele discorre sobre temas que envolvem a realidade social angolana.

A própria biografia do autor permite refletir e debater questões de engajamento político, pertença e identificações, uma vez que, português de nascença, passou grande parte de sua vida Angola, ajudando inclusive na luta pela libertação.

Dessa forma, o autor se identifica como angolano. Luandino é um pseudônimo que se refere a Luanda, tamanho seu carinho pelo país onde cresceu e se desenvolveu como ser, cidadão e escritor.

Objetivos:

  • Trabalhar com o gênero textual conto.
  • Apresentar um texto em língua portuguesa de um autor que vive em Angola.
  • Refletir sobre a questão da variedade da língua portuguesa falada no Brasil e em outro país.
  • Explorar elementos de um texto que trata de uma das várias realidades africanas, percebendo o que ele traz sobre seu lugar de enunciação.
  • Trabalhar intertextualidade entre a obra (o conto) e a biografia (do autor).

Etapas:

Inicial

  • Realizar a leitura individual e depois coletivamente.
  • Dialogar sobre a história trazida pelo conto.
  • Refletir criticamente sobre realidade social dos envolvidos, aceitação da amizade deles pelas famílias, as mudanças trazidas pela vida adulta e outros elementos que possam ser trazidos pelos alunos.
  • Analisar como o personagem Ricardo é visto socialmente, pela classe e pela cor.
  • Promover debate sobre tipos de preconceito.
  • Refletir sobre o fechamento do conto.
  • Ouvir a opinião dos alunos: se já passaram por situações semelhantes às dos personagens envolvidos, se já viram outras pessoas nessas situações ou notícias sobre esses fatos.
  • Caso já tenham vivido e conheçam pessoas que já tenham vivido situações semelhantes ou já tenham visto notícias, traze-las ou escrever relato de como foi a situação.
  • Articular se há pontos do conto semelhantes ou diferentes da realidade vivida por eles.

Aprofundamento

  • Situar a origem do conto.
  • Analisar a língua falada e escrita, mostrando aos alunos que há outros países em que a língua portuguesa também é falada/escrita.
  • Identificar o continente africano no globo terrestre, especialmente Angola.
  • Pesquisar e contextualizar hábitos, costumes, línguas, política, história etc.
  • Refletir sobre a questão África-Brasil, que os alunos poderão trazer.
  • Apresentar a biografia de José Luandino Vieira.
  • Utilizar a internet e vídeos como ferramentas de pesquisa.
  • Realizar intertextualidade entre a história de vida do autor e o conto.
  • Identificar nas falas dos alunos como se veem na questão racial, como veem sua identidade (com o que se identificam), se acreditam que haja preconceitos ou não em suas vivências.
  • Analisar suas reações perante os frutos das pesquisas referentes a Angola.

Outros desdobramentos e possibilidades

  • Promover dramatização do conto.
  • Promover júri em que serão discutidos os caminhos possíveis para o destino do personagem Ricardo, o que foi correto ou não, justo ou injusto.
  • Reescrever um novo final para o conto.
  • Promover a contação do conto original ou da reescrita para outros alunos da escola.

Conclusiva

  • Fazer entrevista com os alunos da escola sobre o tema.
  • Escrever textos em formato de notícias sobre a questão do preconceito.
  • Confeccionar um jornal da turma com as entrevistas realizadas, as notícias produzidas, as opiniões e as conclusões das pesquisas feitas sobre a África.
  • Fazer livro da turma com os recontos.
  • Debater na turma o que foi aprendido, possíveis mudanças e construções de novos conceitos.

Outras sugestões

Sites:

Considerações finais

Na condição de profissionais da Educação sabemos que esse é um processo contínuo, em que variadas vozes e sujeitos se encontram num diálogo permeado por diferentes vivências. Conforme acrescenta Lima (2004, p. 8), “a resposta não é simples, (...) mas é possível sim apresentar breves sugestões”.

Esta proposta, portanto, destina-se a todo profissional interessado no tema, podendo trazer inúmeras outras possibilidades e autores, de forma a abranger novas perspectivas, levando o aluno a traçar novos conceitos e reflexões, entendendo de forma mais crítica algumas questões sociais do mundo que o cerca.

Este trabalho teve o intuito de servir como fonte de informação e sugestão nesta área do conhecimento e contribuir para essa temática sem a pretensão de apresentar estudos totalizantes, uma vez que a riqueza do processo está justamente em participar de uma construção recíproca e coletiva.

Referências

BERND, Zilá. Literatura negra. In: JOBIM, José Luís (org.). Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 267-275.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 2002.

______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/96). Brasília, 1998.

______. Lei no10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira" e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, 10 de janeiro de 2003a, p. 1. Disponível em :http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm. Acesso em 12/12/2013.

Bittencourt, Marcelo; CORREA, Sílvio Marcus de Souza. Entrevista com o historiador Valdemir Donizette Zamparoni. Métis: história & cultura, nº 10, nov. 2012.

LIMA, Mônica. Fazendo soar os tambores:o ensino de História da África e dos africanos no Brasil. Cadernos PedagógicosPenesb, Niterói, Editora da UFF, nº 4, p. 65-77, 2004.

MIGNOLO, Walter. Os esplendores e as misérias da “ciência”: colonial: idade, geopolítica do conhecimento e pluriversalidade epistêmica. In: Santos, B. de S. (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2004. p. 667-709.

OLIVA, Anderson Ribeiro. A história africana nas escolas brasileiras: entre o prescrito e o vivido, da legislação educacional aos olhares dos especialistas (1995-2006). História, 2009, v. 28, nº 2, p. 143-172.

REIS, Roberto. Cânon. In: JOBIM, José Luís (org.). Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

SANSONE, Lívio. Da África ao afro: uso e abuso da África entre os intelectuais e na cultura popular brasileira durante o século XX.Centro de Estudos Afro-Asiáticos. Universidade Candido Mendes, p. 249-269, 2002.

SOARES, Magda Becker. Português: uma proposta para o letramento. São Paulo: Moderna, 2002.

VIEIRA, José Luandino. A cidade e a infância. São Paulo: Companhia da Letras, 2007.

ZAMPARONI, Valdemir. A África e os estudos africanos no Brasil: passado e futuro. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 59, nº 2, abr./jun.2007.

Publicado em 18 de agosto de 2015

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