Crianças também podem curtir programas sérios
Mariana Cruz
Tenho um casal de amigos franceses cujo filho estuda na mesma sala que minha filha (foi justamente daí que surgiu a amizade). Pelo nosso convívio percebi que eles parecem valorizar mais certos aspectos de nossa cultura que nós mesmos (o que não é exclusividade deles, pois já conheci vários gringos assim, como a inglesa que me ensinou a fazer tapioca). Graças e eles comecei a prestar mais atenção em muitas coisas que antes me passavam despercebidas. Passei a visitar com frequência o Jardim Botânico; admirar a beleza da alameda de paus mulatos que existe lá (e que antes eu sequer olhava); conheci a feirinha orgânica do bairro; provei os deliciosos brigadeiros inusitados (brancos com capim limão) feitos por eles e levei minha filha para aprender a patinar na orla aos domingos (o que sempre evitara por achar que seria um tumulto). Esses são apenas alguns exemplos singulares, mas típicos de quem realmente vivencia o lugar onde mora, e, quem diria, precisei olhar com os olhos deles para valorizar. Mas não foi só isso, passei a observar certos hábitos muito interessantes que eles trouxeram do Velho Mundo e que pretendo incluir na minha rotina. Um deles é o valor que dão à comida feita em casa. Observei que, nos piqueniques, em vez de levarem um pacote de Cheetos ou um bolo pronto comprado no supermercado – como a maioria dos comensais –, preparam o que vão levar (uma quiche, uma poção de sonhos, uma torta etc.) – e invariavelmente o prato deles é eleito a "estrela" do convescote.
A última empreitada para que eles me chamaram foi para um show de MPB instrumental. O evento será 20h30min da noite, e eles iriam levar o filho deles, de sete anos. Eu nem cogitei de levar a minha filha. Primeiro, devido ao horário; segundo, por considerar que tal show é de "música de adulto". Isso me fez ver o quão condicionada estou a esse sistema atual em que as atenções estão cada vez mais voltadas para o público infantil. Aqui no Brasil, quem tem filho deve saber do que estou falando. Cinemas, restaurantes, shows, peças, festas tudo direcionado para o entretenimento dos pequenos, até a música que se escuta no carro são os pequenos que escolhem. Que mal faz se, vez ou outra, colocarmos MPB, jazz ou música clássica para escutarmos juntos? É uma ótima oportunidade de refinar o gosto musical da meninada.
Claro que é muito importante que os pais possam acompanhar os filhos nos momentos de diversão; o ruim é quando vira só isso. Os filhos também podem e devem acompanhar os pais no entretenimento destes: ver um show de música (desde que em um ambiente sem aglomeração e sem um volume ensurdecedor); ir a um museu ver obras de arte ou comer em um restaurante que não tenha parquinho do lado de fora são atividades que não vão deixar nenhuma criança infeliz. Ah, mas as crianças ficam agitadas, dirão alguns. Claro, estão acostumadas a ser o centro da programação dos adultos. Parece que estamos vivendo no extremo oposto da Idade Média, quando "a criança era vista como um adulto em miniatura e, por isso, trabalhava nos mesmos locais, usava as mesmas roupas, era tratada da mesma forma que o adulto" (Portal da Educação). Mas nem precisamos ir tão longe no tempo: na minha própria infância, nos anos 70/80, sempre acompanhei meus pais nos programas deles: graças a isso tive a chance de assistir a Tom Jobim no Canecão, pude saborear diversas vezes o fetuccine do extinto restaurante Luna, no Leblon (depois das sessões de filmes-cabeça – como Derzu Uzala; Gandhi, Carruagens de fogo etc.) e vi vários balés e concertos no Theatro Municipal (programas que hoje em dia seriam considerados "de adulto", mas que deram um verniz todo especial à minha muito bem-vivida infância).
Além disso, sobrevivi a uma televisão que só tinha quatro ou cinco canais cujos programas infantis só passavam em pouquíssimos horários e só fui ter Atari muito tempo depois do boom (pois era muito caro). Graças a tais restrições, pude desenhar, jogar, inventar histórias, brincar com outras crianças até não poder mais...
P.S. Pensando bem, vou já ligar para o teatro ver se ainda consigo duas entradas para ir com minha filha ao show do Yamandu Costa e do Richard Galliano.
Publicado em 27 de janeiro de 2015
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