A etnociência na busca de saberes de um agricultor no assentamento agrícola em Lucena, Paraíba
Eduardo Beltrão de Lucena Córdula
Doutorando no Prodema (UFPB)
Iniciando o diálogo
A etnociência busca estudar e registrar saberes e práticas de pessoas e comunidades, com registro do patrimônio imaterial das populações (Albuquerque; Lucena; Cunha, 2010). Com base nessa premissa, o presente relato foi registrado no Assentamento Oiteiro de Miranda, criado em 12 de dezembro de 1999, localizado no município de Lucena, litoral Norte do Estado da Paraíba (Figura 1). Possui área total de 650,38ha, distribuídos em 82 lotes para 90 famílias, tendo uma população total de aproximadamente 360 pessoas de todas as faixas etárias.
Figura 1: Localização geográfica do Assentamento Oiteiro de Miranda, em Lucena-PB.
Fonte: Soares et al. (2012).
A metodologia utilizada foi a etnografia, com técnicas da entrevista gravada com roteiro semiestruturado (Agrosino, 2009; Albuquerque; Lucena; Cunha, 2010), para aquisição dos conhecimentos do público dessa comunidade, onde o estudo levou dois anos; um agricultor em especial se destacou. Todo o projeto e os dados obtidos tiveram autorização do presidente da Associação do Assentamento, por meio do Termo de Anuência (TA) e assinatura individual do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) dos participantes. Foram adotadas as Normas de Ética na Conduta da Pesquisa com Seres Humanos, em conformidade com a Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2012).
O local da (re)descoberta
No Assentamento Oiteiro de Miranda, a vida passa devagar. Todos os dias os agricultores saem com o sol nascendo, por volta das cinco horas da manhã. Trabalham sob o calor do dia, só parando para almoçar. Seus lotes nem sempre ficam próximos às suas moradias na agrovila; por isso, alguns caminham centenas de metros e outros alguns poucos quilômetros. Utilizando enxada, foice, cavador e outros instrumentos, limpam, aram e cultivam o solo, para colocar sementes, brotos, ramos e manilhas.
O cultivo sempre ocorre antes das primeiras chuvas de verão (dezembro a fevereiro) e no início da estação chuvosa (de maio a agosto). Nesse local de solo arenoso, trabalhando muito, respeitando a natureza, em se plantando nasce de tudo um pouco: feijão verde, hortaliças, frutas (maracujá, manga, mangaba, mamão, coco, caju, goiaba), macaxeira, inhame, cará e ainda há espaço para alguns poucos animais da criação (galinhas, caprinos, tilápia em tanque de lona, abelhas melíferas, muares e bovinos). Quem busca a terra para sobreviver, respeitando-a, trabalhando de sol a sol, com o suor do rosto, com as dores do corpo, cansaço e sem a devida valorização, consegue seu sustento e dos familiares em seus cerca de 5,7ha que compõem sua parcela do assentamento. Mas, para os agricultores de Oiteiro, o sonho é de dias melhores, de uma vida menos árdua e de um futuro promissor para seus filhos, longe da terra, pois esta vida, para eles, é difícil demais, como um fardo a cumprir e carregar diariamente, e não desejam o mesmo para seus filhos e filhas.
Um cidadão de físico aparentemente frágil mostra uma força fenomenal de luta e conquistas nesse local. O agricultor por vida e aprendizado herdado de gerações passadas, conhecido na comunidade como Seu Chau, teve trajetória especial no Assentamento Oiteiro de Miranda, e não pode ser esquecida nem apagada pelo tempo. Sua vida, revelada em um único momento de espontâneo desprendimento e compartilhamento, no dia 4 de abril de 2014, aproximadamente às 20h, abriu as portas de sua casa e de sua história. Uma vida dura, semelhante à de milhões de brasileiros e brasileiras que como ele cultivam e colhem nossos alimentos, nutrem nossos filhos e ajudam a manter a nossa tão paradoxal sociedade contemporânea.
A origem e a história do Assentamento se miscigenam com a de Seu Chau, já que ele é um dos últimos líderes fundadores atualmente vivos. O nascimento do Assentamento retoma uma reivindicação de três moradores locais que estavam, desde o início da desapropriação da Fazenda Oiteiro de Miranda pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), em 1995, e se tornaram os fundadores da associação do assentamento e iniciaram a organização da vida na localidade.
O líder vivo
Seu Chau (Figura 2) nasceu em 1929 no município de Mamanguape, Paraíba, um município próximo de Lucena. A cidade tem o nome do rio que a corta. Na língua tupi, há duas hipóteses: mamã-guaba-pe, que significa "onde se reúne para beber; e mamangûape, que quer dizer "enseada de mamangás" ou mangabas, árvore que produz frutos comestíveis, segundo a Wikipédia, pesquisada em 08 de agosto de 2015.
Seu Chau teve 11 filhos de dois casamentos; seu apelido vem da sua aparência asiática e, apesar da sua idade, é um agricultor ainda ativo, porém aposentado, que continua a manter a lavoura no seu lote, que frequenta diariamente. Já participou do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) na década de 1970, mas acabou sendo preso duas vezes durante o regime militar, enquanto estava participando das ações do movimento. Com o tempo, se desvinculou do MST, porque integrantes começaram a praticar vandalismo, o que o entristeceu, já que estas atitudes se opunham às suas crenças e valores.
Figura 2: Entrevista com Seu Chau em sua residência, na agrovila do Assentamento Oiteiro de Miranda, em Lucena-PB.
Fonte: Foto de Glória C. C. Nascimento, 15 de abril de 2014.
Ele teve uma vida de trabalho na lavoura e em fazendas, migrando de Mamanguape até chegar ao município de Lucena, onde passou a residir na localidade de Fagundes; lá continuou como agricultor por 23 anos. Trabalhava de sol a sol, como dizia. O sol nascia e ele levantava; saía com um gole de café na barriga, a enxada no ombro, um saco de farinha e um pedaço de rapadura. A água para beber pegava nos córregos próximos da lavoura. Calçava uma "pregata" (alpercata, alpargata, sandália) de couro, que fazia quando encontrava um boi morto e retirava um pedaço do couro dele. Relatava que houve época em que pobre não tinha documento, não era dono de terra e trabalhava para os coronéis; só eles eram donos de terra. Só tinha direito de sofrer e apanhar. Tinha hora para acordar, mas não tinha pra deitar. E quando deitava era com o "lombo partido de dor, o corpo moído" de tanto esforço físico. Seu sonho de ter um "pedaço de chão" para plantar e colher, ser o seu "próprio patrão", veio com o assentamento. Por isso, lutou tanto e se envolveu até a "alma" para alcançar esse objetivo. Está no assentamento desde a sua criação, em 12 dezembro de 1999, sendo um dos seus fundadores.
A luta pela desapropriação, porém, começou bem antes, em 1993, e distante do local. Junto com o Incra, assim relata esse agricultor de alma e coração, houve a primeira reunião no município de Rio Tinto, na comunidade de Pacaré, que também é próximo de Lucena (Figura 3). Foi então fundada uma associação chamada Apipal (Associação dos Pequenos Produtores Agrícolas de Lucena-PB), com mais três outros agricultores, para solicitar ao Incra a vistoria sobre a fazenda que, na época, já estava improdutiva. Foram feitas duas vistorias: uma aérea e outra por terra. Após a análise pelos técnicos, foi solicitada a desapropriação; os proprietários herdeiros não faziam objeção. Foi indicado que a fazenda se chamava Caboclo, mas no Incra não constava essa propriedade. Um conhecido na localidade indicou que procurassem nos registros do Incra pelo nome Oiteiro de Miranda. No início, só iriam desapropriar 150 hectares, o equivalente aos impostos devidos ao Incra pelos proprietários da fazenda. Mas, verificando toda a área, e após uma nova contagem, foi verificado que a Oiteiro de Miranda possuía 633 hectares para serem desapropriados. No ato de posse, eram dez proprietários, e ficariam 63 hectares para cada um. Porém muitos agricultores apareceram e se associaram à Apipal após saberem da dimensão real da fazenda e que poderia ser parcelada em muitos lotes. Foram então cadastrados 82 agricultores, que passaram a ter direito a possuir um lote no assentamento. Os 663 hectares foram divididos então entre 82 associados, ficando cada um com lote de aproximadamente 5,4 hectares, totalizando 442,8ha. Os demais 220 hectares da fazenda eram constituídos de ilhas de Mata Atlântica, matas ciliares e rios que existiam dentro da área.
Figura 3: Estado da Paraíba e os municípios de Lucena, Mamanguape e Rio Tinto em destaque.
Fonte: Adaptado de: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/39/Paraiba_Micro_LitoralNorte.svg. Acesso em: 07 ago. 2015.
E como em todo assentamento há problemas a serem resolvidos e melhorias a serem postas em prática, a preocupação de Seu Chau quanto ao Oiteiro de Miranda são os problemas socioambientais na área:
· Degradação/depredação dos recursos naturais locais: solo, águas e matas;
· Redução da biodiversidade local;
· Uso inadequado das fontes hídricas locais (de superfície e subterrâneas), o que leva a desperdício, escassez e poluição;
· Uso excessivo de produtos químicos na prática agrícola (adubos e agrotóxicos);
· Deposição e destino inadequados dos resíduos sólidos nos lotes e na agrovila;
· Queimadas indiscriminadas dentro dos lotes, que podem atingir as áreas de mata;
· Falta de investimento do governo e de facilidade para o pagamento de empréstimos para o agricultor poder produzir.
Na sua concepção, ainda não houve de verdade uma reforma agrária de fato na Paraíba, pois sua condição de vida pouco melhorou ao longo das décadas, e os esforços do governo poderiam ser ainda maiores, para trazer qualidade de vida à sua gente.
Ao entrevistá-lo, Seu Chau nos presenteou com valorosos conhecimentos da geografia local, da situação da conservação da Mata Atlântica no município, da luta e lida do agricultor no seu dia a dia, de sua percepção de tudo que está à sua volta, sobre cultura e folclore, lendas, mitos e superstições, além de um traçado histórico da política e dos avanços da modernização da sociedade brasileira.
Educação e etnociência
Buscar valorizar as comunidades tradicionais, seus especialistas e mestres de tradições, cultura, saberes e técnicas artesanais é preservar os remanescentes de atividades em vias de extinção (pescadores, extrativistas, artesãos, curandeiros, rezadeiras ou benzedeiras, entre outras) (Diegues; Arruda, 2001). As gerações atuais não querem valorizar e aprender com os mais velhos, pois eles devem ser valorizados pelos seus conhecimentos e pela história de vida, que encerram costumes, hábitos e que são perpetuados única e exclusivamente pela oralidade e pela demonstração; os que estão próximos e convivem com esses especialistas e mestres do saber tradicional podem levar sua história, tradições, costumes, saberes e cultura para as próximas gerações e perpetuá-los ao longo do tempo e da vida (Nascimento; Nascimento; Córdula, 2014).
As escolas podem, nesse terreno fecundo da etnociência, buscar desenvolver em suas disciplinas de forma multi, inter e transdisciplinares (Córdula, 2013), projetos pedagógicos que contextualizem todo esse conhecimento nas matrizes curriculares das disciplinas, como meio de preservação e valorização da cultura e dos remanescentes detentores dos costumes, saberes e práticas em suas comunidades (Toledo; Barrera-Bassols, 2008).
Considerações finais
Algumas comunidades, como os assentamentos, são áreas onde podem ser encontrados especialistas e mestres, porém nem todos o são, pois essas áreas não são consideradas comunidades tradicionais (Córdula, 2015). Pode-se verificar, porém, que há pessoas que são fecundas de saberes remanescentes e em vias de extinção; quando identificamos e encontramos especialistas de tradições e de histórias de vida e trabalho, necessitamos valorizar e divulgar essa essência antes que o tempo os leve e se percam. Cabe a nós, educadores, buscar nossa história em outras histórias, das gerações presentes que carregam a herança das gerações passadas, para que construamos um futuro de tradições e raízes para resgatar a identidade de nosso povo brasileiro.
Referências
AGROSINO, M. Etnografia e observação participante. Porto Alegre: Artmed, 2009.
ALBUQUERQUE, U. P.; LUCENA, R. F. P.; CUNHA, L. V. F. C. (orgs.). Métodos e técnicas na pesquisa etnobotânica e etnoecológica. Recife: NUPPEA, 2010.
ALBUQUERQUE, U. P.; LUCENA, R. F. P.; LINS NETO, E. M. F. Seleção dos participantes da pesquisa. In: ALBUQUERQUE, U. P.; LUCENA, R. F. P.; CUNHA, L. V. F. C. (orgs.). Métodos e técnicas na pesquisa etnobotânica e etnoecológica. Recife: NUPPEA, 2010, p.21-38.
BRASIL. Resolução n° 466, de 12 de dezembro de 2012. Brasília: Conselho Nacional de Saúde, 2012. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf. Acesso em: 19 dez. 2013.
CÓRDULA, E. B. L. O simbolismo na transdisciplinaridade: para uma nova percepção socioambiental. Revista Meio Ambiente e Sustentabilidade, Curitiba, v. 3, nº 2, p.188-201, 2013.
______. Educação Ambiental e sensibilização para conservação dos recursos naturais em um assentamento agrícola em Lucena-PB. 198 f. Dissertação (mestrado). Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema/UFPB). João Pessoa, 2015.
DIEGUES, A. C.; ARRUDA, R. S. V. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília: MMA; São Paulo: USP, 2001.
NASCIMENTO, M. E. C.; NASCIMENTO, G. C. C.; CÓRDULA, E. B. L. Cultura e a oralidade nos contos tradicionais. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, nº 20, 03 jun. 2014. Disponível em: http://www.educacaopublica.rj.gov.br/cultura/folclore/0022_1.htm. Acesso em: 2014.
SOARES, A. R; SILVA, F. S.; ARANTES, M. S.; PESSOA, R. E. N. M.; CARVALHO, H. J. M. Caracterização da área urbana do município de Lucena - sede: mapas de caracterização do uso e ocupação. In: Congresso Norte-Nordeste de Pesquisa e Inovação, 7, Palmas-TO, 19 a 21 out. 2012. Anais... Palmas: IFTO, 2012. Disponível em: http://propi.ifto.edu.br/ocs/index.php/connepi/vii/paper/viewFile/4021/1465. Acesso em: 07 ago. 2015.
TOLEDO, Víctor M.; BARRRERA-BASSOLS; Narciso. La memoria biocultural: la importância ecológica de las sabidurías tradicionales. Barcelona: Icaria, 2008.
Agradecimentos aos assentados do Assentamento Oiteiro de Miranda, em Lucena, Paraíba, que me permitiram estar ali e conviver com eles, aprender o que é a vida árdua, a luta pela terra, as dificuldades da vida de agricultor, os segredos do cultivo e da relação deles com a natureza, seu entendimento e pensamentos sobre as coisas e o mundo que os rodeiam, suas crenças, sua cultura, seus hábitos de vida; especial agradecimento a Seu Chau, por contar sua trajetória de vida, por ter atentado às mudanças sociais, políticas e econômicas por que o país passou e por repassar sua história, que registrei e de que relato aqui uma pequena parcela.
Publicado em 13 de outubro de 2015
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