A contextualização dos direitos humanos na prática pedagógica
Fabiana Cavalcante Nascimento
Especialista em Educação e Direitos Humanos (UFPB)
Josué Barreto da Silva Júnior
Mestre em Recursos Naturais (UFCG), graduado em Geografia (UEPB)
Considerações iniciais
A história da Declaração dos Direitos humanos está vinculada aos filósofos cristãos que acreditavam existir direitos inerentes aos homens desde o seu nascimento. Os direitos humanos são, antes de tudo, direito naturais à sociedade existente, mas não são responsáveis por garantir absolutamente a igualdade e a liberdade do ser, e sim como ideologia que se propõe e se apresenta como organizadora da universalidade.
Em 1776, Thomas Jefferson escreveu a chamada Declaração de Independência dos Estados Unidos, que foi o documento que influenciou a política e serviu como ponto de partida nos direitos humanos. Em 1789, o marquês de Lafayette esboçou o documento da declaração francesa e, com a queda Bastilha, a demanda por uma declaração oficial acendeu a discussão na Assembleia Nacional e, posteriormente, chegou-se à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Historicamente, os Direitos Humanos ganharam força nos séculos XVII e XVIII, como direitos que olharam para o indivíduo sob diversas dimensões, entre elas a vertente da educação. Tratando-se de Educação dentro dos Direitos Humanos, é consolidar a prática política democrática, ou seja, estender a dimensão das relações sociais que constituem a sociedade. Para entender o que é o ato de educar, teremos que defini-lo; situação semelhante ocorre com os direitos humanos. É muito complexo definir educação tendo em vista todo o seu contexto. Ela não pode ser vista, tampouco entendida apenas como algo enraizado no seio escolar ou em unidades educacionais. A educação é uma vertente muito difundida, porém pouco apreciada na prática.
Nesse sentido, pretende-se entender a contextualização dos Direitos Humanos para a prática pedagógica observando o processo de endoculturação oriundo da educação. Para tanto, aborda temáticas que visem contemplar a discussão dos Direitos Humanos numa perspectiva ativa, convidando os educandos a fazer uma “leitura de mundo”, respeitando sua pluralidade e tornando a educação um mecanismo propulsor ao progresso humano.
Desenvolvimento
Paulo Freire propõe uma “leitura do mundo” através da educação, ou seja, uma educação libertadora, voltada para a reflexão, análise e crítica, rompendo os conceitos da educação tradicional, que reproduz modelos existentes, não estimula a participação dos estudantes e da comunidade e define o professor como o centro das atividades e propostas, negando o conhecimento de mundo dos educandos. Machado (2014, p.4) entende educação assim:
A Educação no mundo em que vivemos, pensada de forma concreta, tem que usar os mecanismos e ferramentas provenientes da ciência e do progresso humano; deve ser reflexiva, analítica e pensar o mundo e seus próprios processos com o apoio da filosofia e da história [...].
O mundo só pode pensar em ser mais justo, digno, fraterno e próspero se todos os países se empenharem em tornar a educação um real, efetivo e verdadeiro instrumento de emancipação individual, onde todos realmente aprendam a ler o mundo, se posicionar, participar de forma ativa, sem preconceitos, com inclusão e, acima de tudo, com ética e dignidade.
Com base nessas citações, não se trata apenas de definir o que é educação, mas de entender como se constituem as ferramentas e os sujeitos que a compõem.
O processo pedagógico é o entendimento do processo em que se transmite a experiência, as crenças e os valores. É, pois, nesse processo que devemos firmar a “visão de mundo” tal como almejada por Freire. Assim, esse processo de visão seria uma educação libertadora que rompe com focos tradicionalistas, tendo como aparato para a sua prática o processo pedagógico; é nesse processo que está a essência de todo o processo libertador.
Historicamente falando, o marco definitivo que reconhece universalmente os Direitos Humanos foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada e proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948.
A Educação para os Direitos Humanos (EDH) é uma educação construída historicamente, que tem seu pilar de sustentação na memória das violações do passado. Nesse sentido, é importante abordar a questão da cidadania na perspectiva de que ela seja efetivamente garantida e apropriada por todos os sujeitos educativos. Mas o que é cidadania? Segundo Pequeno, apud Lima (2014, p. 38),
Cidadania é definida como ‘a condição social que confere a uma pessoa o usufruto dos direitos que lhe permite participar da vida política e social da comunidade no interior da qual está inserida’. A cidadania é pressuposto da justiça social, que é sinônimo de equidade e igualdade, solidariedade humana e respeito. Por meio do exercício da cidadania ativa se busca a efetividade dos direitos políticos, econômicos, sociais e culturais, como instrumentos indispensáveis à realização da dignidade da pessoa humana, assegurada pelos direitos fundamentais, vale dizer, pelos Direitos Humanos positivados nas normas constitucionais e legais. Somente em um regime democrático participativo poderá existir a cidadania na sua plenitude; a cidadania democrática ou ativa.
Entende-se que a educação é, ao mesmo tempo, um dos direitos humanos fundamentais e condição para a garantia dos demais direitos. É papel do educador dar ênfase no que diz respeito aos Direitos Humanos na construção de uma sociedade justa e democrática e propor a transversalidade da educação em e para os Direitos Humanos, analisando também as experiências de cada sujeito social.
Historicamente, a educação sempre foi marcada pelas desigualdades. A escola por sua vez, se desenvolveu através das sociedades contemporâneas e surgiu em um contexto, como instituição, de divisão social do trabalho. Trata-se do espaço institucional pedagógico onde se codificam e se sistematizam os saberes. Não podemos esquecer que as relações de vida do cotidiano também se revelam como processos pedagógicos educativos.
No século XIX, a educação, pelo positivismo, exerce seu papel adestrador. Ela é uma extensão da estrutura de poder numa dada conjuntura política.
Na visão de Dornelles (1995, p. 2), a educação é “um dos principais mecanismos de introdução dos valores e ideias que compõem o padrão considerado ‘normal’ da sociedade, visando o consenso em relação à ordem vigente”.
Esse mesmo autor aponta ainda que, nas sociedades capitalistas, a educação, juntamente com a cultura, não colabora para formar uma consciência social democrática. Em plena Revolução Tecnológica, que papel essa escola tem frente a uma nova visão de mundo acompanhada de aparatos tecnológicos? Como as classes subalternas vivenciam e acompanham esse desenvolvimento? Tais questionamentos levantados por Dornelles (1995) estão mais atuais do que nunca, pois fazem parte do cotidiano escolar e se inserem no bojo da atual crise educacional.
De fato, a educação sofreu ao longo dos anos uma profunda metamorfose no seu sistema conjuntural. Ela por si só representa um dos principais mecanismos de introdução de valores da sociedade, isto é, compõe, junto com outras instituições, o aparelho ideológico de formação de uma consciência social visando ao consenso da ordem vigente.
O papel desempenhado pela educação reflete diretamente na sociedade contemporânea, a qual, por sua vez, é marcada por intensas e constantes mudanças sociais; a tecnologia e a comunicação vêm ocupando lugar de destaque dentre elas, pelo fato de ambas potencializarem oportunidades culturais e desafios na implantação e em suas organizações. Nesse contexto, a educação é visualizada como um processo contínuo, cabendo às instituições educacionais reinventar suas práticas cotidianamente.
Segundo Lück (2009, p. 32),
Planejar a educação e a sua gestão implica delinear e tornar clara e entendida em seus desdobramentos a sua intenção, os seus rumos, os seus objetivos, a sua abrangência e as perspectivas de sua atuação, além de organizar, de forma articulada, todos os aspectos necessários para a sua efetivação.
Na gestão democrática, um dos requisitos mais importantes e imprescindíveis são os recursos humanos. A gestão democrática é uma prática que contribui para uma interação coletiva em que há participação social de todos; contribui para tomadas de decisões, fiscalização de projetos, bem como recursos destinados à educação. Enfim, é por intermédio da gestão democrática que os espaços para o diálogo e para as decisões democráticas e, por vezes justas, se constituem e se perpetuam.
As práticas educativas, por sua vez, trabalham com a reflexão, discussão, construção e inserção de conhecimentos em um determinado contexto e junto aos mais variados segmentos sociais, mas em especial na escola. Não queremos dizer que a escola representa o espaço exclusivo para trabalhar a EDH, mas seria o espaço certamente mais propício para tal prática. Uma gestão democrática, aliada a uma proposta pedagógica que contemple a abordagem da Educação em Direitos Humanos, é capaz de promover mudanças bem significativas tanto em relação às condutas dos educandos no cotidiano escolar e social quanto na prática pedagógica dos professores.
Sendo assim, amparada pelo texto da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) em seus Artigos 14 e 15, a gestão democrática se apresenta com as seguintes determinações:
Art. 14 - Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:
I. Participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;
II. Participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.
Art. 15 - Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observadas as normas de direito financeiro público.
No ambiente escolar, por seu turno, a gestão dispõe de muitos sujeitos que podem colaborar para a concretização de uma prática efetivamente democrática, tais como: conselhos escolares, profissionais da educação, alunos etc. Outra forma da gestão democrática está na fiscalização de verbas e programas, isto é, se existe transparência nesse tipo de fiscalização e prestação de conta por parte dos gestores escolares, eles estarão contribuindo para o processo de transparência de maneira geral. Vejamos o que assegura a nossa Carta Magna.
O regime democrático é que possibilita o reconhecimento dos direitos fundamentais da pessoa humana, assegurando aos cidadãos a concretização desses direitos. Não há como construir-se a democracia sem o desenvolvimento paralelo de uma cultura em/para os Direitos Humanos, formadora de sujeitos pensantes, reflexivos, críticos, ativos, dotados de ética e de consciência política, e sabedores e conhecedores da sua função social (CF, BRASIL, 2004).
A gestão democrática da Escola é a forma pela qual a escola organiza e sistematiza suas ações para solucionar problemas de ordem coletiva, ou seja, a noção de gestão democrática requer o envolvimento de todos os atores escolares nas atividades escolares, mas, sobretudo, nos planejamentos pedagógicos de modo a desenvolver um trabalho efetivamente coletivo. Somente atendendo a essas exigências é que poderemos constatar em que medida a essência da gestão democrática será ou não refletida no currículo escolar.
Falar de currículo é estender uma perspectiva do mundo, da sociedade e do próprio ser, mas deve ser visto de forma inovadora, com mudanças nas práticas pedagógicas e nos processos educativos, introduzindo a cultura em suas múltiplas formas.
Por essa razão, os Direitos Humanos, no âmbito escolar, devem adentrar os estudos curriculares, mas sabemos que essa não é uma tarefa fácil. Talvez a maior dificuldade esteja no fato de o docente não se sentir preparado inicialmente para essa cultura em Direitos Humanos.
Os estudos curriculares são constituídos pelos seguintes elementos: observação, reflexão, intervenção e dinâmica escolar. O currículo escolar é gerado por meio de debates; por eles se insere a prática (de fazeres e pensamentos) para uma formação humana em que as múltiplas dimensões constituem o ser. O currículo prima pela identidade social e corresponde a um processo sociocultural em que a escola apresenta-se como o principal veículo de compreensão e reprodução dos conhecimentos e aprendizagens formais e não formais.
A cultura em Direitos Humanos, juntamente com a educação, é capaz de formar uma consciência coletiva voltada para o respeito às diversidades; trata-se, pois, de um processo sistemático de formação de sujeitos que transforma a sociedade em um seio igualitário.
A universalidade desencadeou uma forma ampliada de ver os Direitos Humanos. Para tanto, protagonizou-se um cenário de múltiplas visões nos mais diversos campos de atividades humanas, intitulada por Rosa Maria Godoy, como “cosmovisão”. No entanto, para que essa multiplicidade de visões tenha respaldo é necessário utilizar a Educação como ferramenta extensória da cosmovisão capaz de reverter aspectos culturais enraizados. Concordamos com Godoy (2014, p. 43) quando afirma que se deve subjetivar a cultura de Direitos Humanos, uma vez que é uma extensão da própria ética, bem como seus aprimoramentos.
Considerações finais
O reconhecimento da nossa condição humana nos leva para caminhos onde existem muitas lutas, tanto coletivas como principalmente individuais. Quando somos privados de algo ou ainda de exercer nossos direitos mais elementares, nos sentimos motivados a exercitar nossa reflexão ética que colabora para a garantia de nossos direitos fundamentais.
Nesse sentido, para efetivar a EDH na escola é preciso entender o universo da diversidade e suas interfaces, garantir a universalidade dos direitos a cada pessoa, construir uma cultura de paz, justiça social, associar conhecimentos e memórias, entender valores, atitudes, comportamentos, práticas sociais cotidianas, promover o desenvolvimento social do ser humano, tudo por meio de articulação, da dialogicidade, visando a desconstrução de “padrões” culturais arraigados, remetendo a um olhar crítico sobre os eixos dos direitos humanos, formando educadores na perspectiva dos conceitos e vivências em EDH para convidar alunos e indivíduos a estabelecer uma reflexão complexa, porém conjunta e não fragmentada. A complexidade existe, porque nascemos em uma sociedade assentada em valores fragmentados, tratando os contextos sociais como fatos isolados. Em relação a essa questão, Godoy (2014) aponta que é necessário rever essa contextualização unificando os contextos, ao invés de separá-los; só assim poderemos compreender melhor o que nos cerca, os fatos, os valores, as atitudes, os comportamentos e principalmente os indivíduos.
A Educação em Direitos Humanos se ocupa de promover a emancipação humana construindo um novo modelo de pensar e agir dos indivíduos. Cabe à EDH desconstruir o conhecimento apenas pelo conhecimento e o ponto crucial do processo educativo é a formação.
Se a escola e seus docentes tiverem a consciência do seu trabalho no processo de socialização cultural, quanto a formar sujeitos participativos, formar consciência crítica, autonomia, etc., então ambos, escola e docente, e até a própria comunidade darão passos largos na construção da formação do conhecimento para a libertação. O primeiro passo para promover a Educação em Direitos humanos é o educador educar-se nessa cultura.
Referências
BRASIL. Direitos Humanos, Ética e Cidadania: construindo valores na escola e na sociedade. Módulo 3. Direitos Humanos. Programa de Desenvolvimento Profissional Continuado. Brasília: Ministério da Educação/Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, 2004.
DORNELLES, João Ricardo W. Educando para os Direitos Humanos: desafios para uma prática transformadora. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/br/pbunesco/v_01_educando.html. Acesso em 09 ago. 2014.
GODOY, Rosa Maria. Educação em Direitos Humanos e currículo. Coleção Direitos Humanos. Elio Chaves Flores; Lúcia de Fátima Guerra Ferreira; Vilma de Lourdes Barbosa de Melo (Orgs). Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/aidamonteiro/aida_praticas_cidadania_sala_aula.pdf. Acesso em 09 ago. 2014.
LIMA, Inácio Antônio Gomes de. Educação em Direitos Humanos na escola pública: uma abordagem teórica e das práticas pedagógicas vivenciadas a partir de um estudo de caso. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, nº 3.923, 29 mar. 2014. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/27225. Acesso em 8 ago. 2014.
LÜCK, Heloísa. Dimensões de gestão escolar e suas competências. Curitiba: Positivo, 2009.
MACHADO, João Luís Almeida. O que é Educação? Reflexões necessárias sobre essa nobre área de atuação. Disponível em: http://www.virtual.ufc.br/solar/aula_link/llesp/A_a_H/didatica_I/aula_01/imagens/01/o_que_e_educacao.pdf. Acesso 09 ago. 2014.
Publicado em 27 de outubro de 2015
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