Realocação dos provérbios bíblicos: uma perspectiva possível
Márcia Lannes Sampaio
Professora regente do CE Professora Luíza Marinho, em Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro
Luciane Pelagio Costa de Melo
Mestre em Educação, Cultura e Comunicação, professora substituta na UERJ, em disciplinas ligadas ao Letramento e Ensino de Língua Portuguesa
Introdução
Diante da inclusão dos livros bíblicos no domínio religioso, surge uma dificuldade quanto à utilização desses textos em sala de aula. Este artigo se propõe a pesquisar a possibilidade de desconstrução dessa terminologia, por meio de uma desterritorialização e realocação feita do livro de Provérbios, num estudo em que seus textos passam a trilhar uma nova perspectiva epistemológica como gênero escolar, possibilidade encontrada nos referenciais teóricos deste artigo, que apontam para essa realidade maleável dos gêneros. Assim, mediante uma pesquisa exploratória com contornos de estudo de caso, buscou-se responder à pergunta básica desta pesquisa: como desconstruir o domínio religioso atribuído aos provérbios bíblicos? A partir dessa indagação, este artigo viabilizou o diálogo entre seus textos, o currículo escolar e os vários gêneros textuais, via intertextualidade, em propostas de redações com a ajuda de professores autores de suas aulas. Pelas respostas às principais questões deste artigo, evidenciaram-se possibilidades animadoras de como desconstruir, a princípio no livro de Provérbios, o domínio religioso que lhe é atribuído como livro bíblico.
O livro de Provérbios, constituinte de uma coletânea de origem milenar, por estar inserido na Bíblia, considerado um livro religioso, não tem seu conteúdo aproveitado na área educacional como material didático disponível ao aluno.
Provérbios, em geral, são conhecidos pelo caráter moralista e por tratar de assuntos que exaltam a sabedoria, destacando atitudes de bom senso, boas maneiras, hábitos cultivados por mestres israelitas, no caso dos bíblicos, e por outros sábios, no caso dos populares, que geralmente não têm autoria revelada. É um gênero textual que implica conselhos e máximas, exortando que se cultivem boas maneiras nas relações com o outro, ensinando o que a pessoa sábia deve fazer em certas situações. Os temas giram em torno da família, do comportamento nos negócios, da boa educação nas relações sociais e da necessidade de uma pessoa saber se controlar. Ensinam também valores como humildade, paciência, respeito pelos pobres e a lealdade para com os amigos.
A possibilidade de o livro de Provérbios, inserido na Bíblia, ser utilizado como fonte discursiva em sala de aula, estabelecendo uma interação dialógica tanto com os conteúdos curriculares quanto com textos variados por meio da intertextualidade, sem que agrida a laicidade da escola, tendo seu conteúdo arrolado nos mais variados gêneros textuais, é o tema de análise dessa pesquisa. Anabela Brito de Freitas Mimoso diz, em seu artigo Provérbios: uma fonte para a História da Educação, referindo-se aos provérbios de modo geral:
Dado que eles reflectem experiências de vida, que abordam aspectos fundamentais da vida, que veiculam a opinião geral (senso comum) e que aconselham, criticam, proíbem, admoestam, são também uma óptima fonte de conhecimento dos valores éticos, estéticos, sociais de um povo (2008, p. 157).
A partir da temática apontada, depara-se com uma problemática: o preconceito existente em relação aos textos bíblicos, no qual seu conteúdo é fixado como gênero religioso. Luiz Antonio Marcushi, renomado linguista, citado nos estudos de Vitória Wilson, sustenta essa classificação quando vê os gêneros em seu âmbito de referência, ou seja, no domínio religioso; por outro lado, a autora do texto Gêneros discursivos: conceitos e práticas, citada acima, em sua aula da disciplina Gêneros Discursivos, que integra a Especialização em Ensino de Leitura e Produção Textual oferecida pela UFRRJ em parceria com a Fundação Cecierj para professores da Língua Portuguesa da rede estadual do Rio de Janeiro, considera a desterritorialização deles quando retirados desse “habitat” inicial e transformados em gêneros escolares (Wilson, 2013). O próprio Marcushi vê essa possibilidade ao reconhecer a maleabilidade e o dinamismo dos gêneros.
Diante da problemática apontada e da possibilidade encontrada, este artigo se propôs a investigar o livro de Provérbios em sala de aula, apontando o gênero textual predominante nele e como este poderia convergir para a realização de atividades didáticas, pesquisando propostas de redação em nove turmas de séries distintas de diferentes escolas (das redes municipal, estadual e particular) do município do Rio de Janeiro, a fim de verificar: em que porcentagem os alunos identificaram os valores presentes nos Provérbios; se construíram seus textos possibilitando o surgimento de novos gêneros textuais; se de fato foi possível não relacionar os Provérbios a aspectos ligados à religião, expandindo seus textos para novas possibilidades, como produções textuais de cartas, crônicas e dissertações argumentativas.
Embasando as hipóteses com estudos de renomados pensadores, mestres em Educação e com especialistas no ramo das linguagens, e extraindo experiências dos profissionais em sala de aula, este trabalho pretendeu incentivar o pensamento de que inovar é deixar que o lúdico assuma “corpo e consistência suficientes para transformar-se em autêntica vontade inovadora, encontrando os meios de inovação” (Abbagnano, 2000 apud Vitkowski, 2004, p. 21).
Por entender a Bíblia como um livro que apresenta uma variedade de narrativas construídas por meio de gêneros textuais diversos, investiga-se aqui a possibilidade de tornar a utopia realidade, ou seja, abrir as portas da escola para os referidos textos numa nova perspectiva epistemológica.
Metodologia
O fenômeno da desconstrução do gênero religioso atribuído à Bíblia em sala de aula foi estudado com a utilização de provérbios bíblicos em redações realizadas pelos discentes, a fim de constatar numa abordagem quali-quantitativa, a incidência ou não da associação à religião dos textos criados e ainda se houve êxito na atividade em si, ou seja, se os alunos conseguiram relacionar os provérbios a princípios dignificantes.
Assim, foi realizada uma pesquisa exploratória com contornos de estudo de caso com levantamento de dados significativos para esta pesquisa, na qual alunos foram submetidos a propostas de redações de diferentes gêneros, de acordo com o ano/série em que estão inseridos, numa aula de leitura e produção textual, com duração de aproximadamente dois tempos de aula (1h40min), em que o gênero, retirado do seu âmbito de origem (Provérbios/Bíblia), assumiu uma reclassificação, passando a inserir-se num novo contexto, expandindo-se, atingindo os objetivos pragmáticos ligados ao currículo escolar.
Ao trabalhar com os gêneros, todo um conjunto de saberes converge para a realização das atividades didáticas; várias ações são realizadas, e os gêneros, retirados de seu “habitat” de origem (“âmbito de referência”), transformam-se, até mesmo se expandem (Wilson, 2013, p. 10).
Os profissionais participantes da pesquisa aceitaram ter seus primeiros nomes mencionados; apenas uma professora preferiu que se colocasse nome fictício, Estela, por sugestão própria. Todos esses docentes trabalharam com a hipótese de que não importa a origem de referência do gênero, mas as possibilidades transformadoras em sala de aula, sabendo que a sua atuação seria de máxima importância para a execução da atividade. As professoras Flávia (Projeto Autonomia – escola municipal), Josenira (5º ano do Ensino Fundamental – escola municipal), Mônica (5º ano do Ensino Fundamental – escola municipal), Denise (7º e 8º anos do Ensino Fundamental – escola municipal), Marcia (5º ano do Ensino Fundamental – escola particular) e Estela (2º ano do Ensino Médio - colégio estadual) aceitaram participar da investigação, seguindo as instruções para a execução das propostas. Trabalharam, portanto, comossibilidades de desterritorialização do gênero e sua realocação no espaço-tempo escolar, expandindo-o para novas situações: gênero “carta” para as turmas de Autonomia e 5º ano do Ensino Fundamental (EF), utilizando a proposta inserida abaixo, confeccionada para este estudo; gênero “crônica”, para o 7º e o 8º anos do EF, com reflexões e aplicações em fatos inusitados do cotidiano; e o gênero “dissertação argumentativa” para três turmas do 2º ano do Ensino Médio, em que o provérbio deveria estabelecer diálogo com o curta-metragem Ilha das Flores para o surgimento de tese e argumentações para seu embasamento.
Na proposta a seguir, é possível observar a realocação para o gênero “carta”. Partindo de uma conversa com a turma sobre os princípios e os valores contidos nos provérbios e sobre a temática da tirinha, as professoras Flávia, Mônica, Márcia e Josenira, sem mencionar o livro de origem – a Bíblia – para não sugerir religião, encaminharam a sua aula de forma a levar os alunos a realizar a tarefa com segurança e criatividade. Outras propostas poderiam ser feitas; essa era apenas uma sugestão.
PROVÉRBIOS
“Aquele que quer aprender gosta que lhe digam quando estão errados; só o tolo não gosta de ser corrigido.”
“O tolo pensa que sempre está certo, mas os sábios aceitam conselhos.”
“Quem despreza os bons conselhos acaba mal, mas quem os segue será recompensado.”
PROPOSTA DE REDAÇÃO
Acima estão registrados alguns Provérbios escritos por um sábio do passado. Logo abaixo, uma tirinha de Calvin mostra como o seu pai fica furioso com algo errado que o menino revela ter feito. Escolha um dos provérbios apresentados e escreva uma carta para o personagem mostrando-lhe como seguir um caminho de sabedoria.
TIRINHA - CALVIN
Fonte: As autoras, 2014
A professora Denise, que leciona para 7º e 8º anos, escolheu trabalhar com seus alunos o gênero “crônicas” e, a partir de conversa com a turma, procurou estimulá-la a aproveitar um acontecimento inusitado do dia a dia, em que encontrariam alguém vivendo uma situação conflituosa; o provérbio entraria como uma palavra de ânimo, de conforto, num diálogo entre as personagens, sugerindo um narrador em primeira pessoa. A partir daí, os alunos teriam a oportunidade de usar um dos sete provérbios escritos no quadro a fim de verificar o que melhor se encaixaria na situação ocorrida, fazendo uma associação dele com a problemática, tirando então lições de sabedoria, ou seja, valores dignificantes. Cabe aqui mencionar que houve um diferencial nas turmas dessa professora quanto à informação do âmbito de origem. Nas turmas do 8º ano, a professora, durante a conversa, revelou a origem dos provérbios expostos no quadro, inclusive sua autoria atribuída a Salomão. Essa ação não inviabilizou a tarefa, já que o resultado foi útil à pesquisa para verificar até que ponto essa informação é prejudicial como dado recolhido para este estudo. Os sete provérbios utilizados pela professora foram os seguintes: “Todos os dias são difíceis para os que estão aflitos, mas a vida é sempre agradável para as pessoas que têm o coração alegre”; “O homem sábio pensa antes de falar, por isso o que ele diz convence mais”; “Os maus provocam discussões, e quem fala mal dos outros separa os maiores amigos”; “O amigo ama sempre e na desgraça ele se torna um irmão”; “A vontade de viver mantém a vida de um doente, mas se ele desanima não existe mais esperança”; “A alegria embeleza o rosto, mas a tristeza deixa a pessoa abatida”; “As preocupações roubam a felicidade da gente, mas as palavras amáveis nos alegram” (2010, p. 336, 337, 338).
A professora Estela utilizou um filme (documentário), Ilha das Flores, para inserir conteúdos curriculares sobre Realismo/Naturalismo e, expondo provérbios em cartazes, solicitou uma dissertação argumentativa em que a citação fosse um dos provérbios a serem utilizados como argumento para embasar a tese sobre a qual os alunos se propuseram dissertar. Os provérbios expostos nos cartazes foram: “Os planos dos bons trazem felicidade; o que os maus planejam produz ódio”; “Quem é generoso progride na vida; quem ajuda será ajudado”; “Aquele que confia nas suas riquezas cairá, porém os honestos prosperarão como as folhagens” (2010, p. 335). Como na atividade aplicada pela professora Denise, nessas três turmas a tarefa foi diferenciada para dois grupos de alunos. Num primeiro momento, os alunos solicitados a realizar a produção escrita receberam informações sobre o gênero “provérbio” de modo geral, sem indicação do âmbito de referência; num segundo momento, os alunos ausentes anteriormente tiveram a oportunidade de redigir os seus textos, que receberam, além das informações quanto à definição do gênero provérbio, a indicação de que os textos tinham procedência bíblica. Esse diferencial foi proposital, a fim de verificar se tal informação alteraria os dados finais da pesquisa, considerando que o professor orientaria a turma a se deter nos princípios e valores presentes nos textos que fazem referência à prudência, à decência, à moral e à ética.
Cada professor tornou-se mediador da tarefa e, ao final, após a leitura atenta de cada uma das redações, foi solicitado a responder às seguintes questões, de acordo com a atividade sugerida:
- No 5º ano e no Projeto Autonomia: quantos alunos realizaram a tarefa; quantos alunos relacionaram o provérbio à situação da tirinha; quantos alunos apenas citaram o provérbio e, finalmente, quantos alunos associaram o provérbio a aspectos ligados à religião;
- Nos 7º e 8º anos: os mesmos tópicos, com um diferencial no segundo, em que se questionou quantos alunos relacionaram o provérbio à situação inusitada na qual a personagem da sua crônica envolveu-se;
- No 2º ano do EM: da mesma forma, os quesitos se repetiram; o segundo tópico teve o questionamento centrado em quantos alunos citaram o provérbio escolhido, argumentando convenientemente, a fim de embasar sua tese. Os quantitativos foram colocados numa tabela, levando em conta o percentual alcançado para melhor interpretação dos dados.
Os professores foram questionados sobre como viram a possibilidade de trabalhar com o livro da Bíblia em questão, tendo em vista o currículo escolar e o diálogo com textos que exaltam a sabedoria, a prudência e o respeito.
Referencial teórico
Epistemologia e educação
vemos o conhecimento escolar como um tipo de conhecimento produzido pelo sistema escolar e pelo contexto social e econômico mais amplo, produção essa que se dá em meio a relações de poder estabelecidas no aparelho escolar e entre esse aparelho e a sociedade (Santos, 1995 apud Wilson, 2013, p. 7).
A sociedade de hoje é marcada pela violência e pela busca de seus próprios interesses, pouco interessada no senso comum e muito mais voltada para conquistas pessoais sem preocupações éticas ou morais e muito menos fraternais. A educação não tem, em sua totalidade, suprido esse vácuo existente nem encontrado caminhos de volta para o bom senso e os bons costumes. Vitkowski, mestre em Educação pela UEPG e professor da mesma universidade, afirma em sua pesquisa que
outros saberes e modos de conhecimento, como os valores sagrados e espirituais das grandes religiões que favorecem o desenvolvimento e o respeito da vida e da dignidade humana, devem ser acionados e revalorizados na educação (2004, p. 18).
Provérbios como gênero escolar
Mimoso (2008), em seu artigo “Provérbios: uma fonte para a História da Educação”, falando sobre a grandeza do gênero provérbio, tanto o popular quanto o bíblico, afirma que “a sua beleza é-lhe conferida pelo uso metafórico da linguagem, pelas aliterações, pelo virtuosismo da língua, pela elegância do estilo, pela agudeza do raciocínio (p. 157)”. A autora faz referência ao aspecto reflexivo dos textos, os quais, abordando aspectos inerentes a experiências de vida, “veiculam a opinião geral (senso comum)”, aconselhando, criticando, proibindo, admoestando, sendo fonte de conhecimento, contribuindo com valores “éticos, estéticos, sociais de um povo” (p. 157).
Fazendo um estudo da tipologia textual encontrada no livro bíblico em questão, pode-se dizer que os textos ali encontrados estão inseridos, na sua grande maioria, na tipologia textual injuntiva, com a utilização dos verbos no modo imperativo, aconselhando os leitores a seguir o caminho da sabedoria para que tenham uma vida feliz e plena ou ainda apresentando sentenças máximas para certas atitudes, com utilização de verbos no presente do indicativo.
Com relação aos gêneros propriamente ditos, e tendo como base o texto de Vitória Wilson já citado, “pode-se dizer que o gênero trabalhado na escola vê transformadas suas funções sociais e pragmáticas de origem” (2013, p. 11). Com base nos estudos de Marcushi, os livros encontrados na Bíblia estão inseridos no domínio “religioso”, associados a gêneros como epístola, evangelho, mito, novena, oração, parábola, salmo, provérbios etc. Longe de argumentar contra ou a favor da inegável contribuição do renomado linguista brasileiro, mas apenas lançando um olhar em outras direções que favorecem movimentos alternativos sem negar as origens, o que se pretende é “abraçar” o conceito de que “o gênero se desdobra, pois sofre uma variação ou uma mediação” (Wilson, 2013, p. 11). “Já não é mais o gênero de referência, mas sempre a variação do gênero de referência, uma vez que está sendo explorado para fins didáticos” (idem). Enxergar o livro em questão no domínio religioso seria apenas vê-lo no seu local de origem. Segundo Lopes (2008, p. 32 apud Wilson, 2013, p. 6), “os textos são desterritorializados, deslocados das questões que levaram à sua produção e relocalizados em novas questões, em novas finalidades educacionais”. Então “os gêneros chamados secundários perdem e/ou transformam os vínculos imediatos com a situação de comunicação de referência” (Wilson, 2013, p. 9).
De acordo com Marcushi, citado por Victoria no estudo dos gêneros discursivos, “os gêneros são maleáveis, plásticos e dinâmicos. Logo, sua classificação deve compreender essa maleabilidade, plasticidade e dinamismo” (Wilson, 2013, p. 23).
Com base na compreensão do exposto, inclusive sobre a desterritorialização por que passam os gêneros como gêneros escolares, preserva-se a laicidade da escola, suscitando um deslocamento dos Provérbios bíblicos para a categoria de textos transmutáveis em gêneros diversificados e, portanto, passíveis de aplicação em atividades de produção textual, implicando a atuação do professor como autor de suas aulas, convergindo o conjunto de saberes nas atividades didáticas. Como diz Victoria, “Na escola, tudo se altera [...]. E é, nesse ponto, ou seja, na passagem ou conversão de uma a outra linguagem/gênero, que se instauram novas formas de dizer e conhecer” (2013, p. 11).
Resultados e discussão
Esta tabela visa servir de base para as constatações do estudo do caso realizado.
Professor | Josenira | Flávia | Márcia | Mônica | Denise | Estela | Total/Média |
Nº/% de alunos | 5º ano | Autonomia | 5º ano | 5º ano | 7º e 8º anos | 2º EM | |
Realizaram a tarefa | 29 | 11 | 17 | 23 | 38/40 | 38 | 196 |
Estabeleceram relação de valor intertextual | 76% | 73% | 94% | 73% | 76% | 77% | 78% |
Falaram de outro assunto | 7% | 18% | 0% | 17% | 9% | 3% | 9% |
Apenas citaram o provérbio | 17% | 9% | 6% | 10% | 3% | 20% | 10% |
Relacionaram o provérbio à religião | 0% | 0% | 0% | 0% | 12% | 0% | 2% |
Fonte: As autoras, 2014
A possibilidade do imediato reconhecimento de que os provérbios expostos foram retirados da Bíblia não foi constatada na maioria das turmas do quinto ano do EF e nem na turma do Projeto Autonomia, com exceção dos alunos da professora Mônica, pois, de acordo com seu relato, a turma tem 70% dos alunos evangélicos e estes comentaram, durante o diálogo com a professora, que reconheciam a origem bíblica dos textos. Não obstante, essa incidência não refletiu no resultado percentual referente à associação à religião nas redações dessas crianças, já que tal relação não foi estabelecida, o que evidenciou a descontextualização dos textos por terem sido transportados para situações do cotidiano, associados a gêneros como os provenientes de domínios variados, suscetíveis, dessa forma, de inclusão em diferentes gêneros propostos pelo já citado Marcuschi. “Na escola, o gênero torna-se escolar para fins pedagógicos, o que implica reavaliar a função e a importância que o professor assume como autor de suas aulas” (Wilson, 2013, p. 10). Para desconstruir o domínio religioso, uma possibilidade seria ter um professor consciente de sua função conciliadora e direcionadora, que, mesmo revelando aos alunos de pronto a ligação do provérbio ao “habitat” de origem, a Bíblia, assumisse uma postura inovadora diante do gênero escolar surgido naquele espaço/tempo, a fim de que os textos pudessem ser vistos da forma como deveria, prontos para serem trabalhados e transportados para as várias possibilidades.
A atividade deve convergir, portanto, para a construção de valores para a vida, como ocorreu com os alunos da professora Mônica, que viram o estabelecimento de pronto do gênero escolar, apesar de reconhecerem os textos como bíblicos, o que configurou a sua desterritorialização a partir das reflexões feitas no diálogo professor/alunos na pré-escrita. Para isso foi necessário que o professor entendesse a sua importância como orientador e direcionador da atividade.
Com relação às redações realizadas pelos alunos do 7º e 8º anos, os resultados apontaram que 12% dos alunos estabeleceram associações com aspectos ligados à religião. Levando em conta que em uma das turmas houve a indicação do âmbito de origem e observando as colunas da tabela, é fácil pensar na hipótese de que essa porcentagem tenha ocorrido nas turmas onde houve tal informação. Interrogada a respeito desse resultado, a professora Denise explicou que esses alunos pertencem à religião protestante e, por reconhecerem a origem dos provérbios, tal associação foi feita. Cabe aqui uma ressalva: esses alunos não se sentiram agredidos ao fazer tal associação; apenas referiram-se a aspectos do cotidiano vivido por eles que tem relação com as reflexões feitas sobre os valores presentes nos provérbios. Os demais alunos não fizeram essa referência. Por outro lado, os dados revelaram que 76% dos alunos realizaram a tarefa como pretendido, criando conexões entre os valores e princípios dos provérbios e as situações inusitadas ocorridas nos enredos. Esse percentual indica que a desterritorialização do gênero de origem ocorreu numa proporção considerada boa, já que os alunos que fizeram alusão à religião não foram contados nesse item (76%). A inferência ao âmbito de origem, para esses alunos, foi fundamental para que fizessem essa associação. Pode-se dizer que o fato em si não evidencia quebra da laicidade, já que a liberdade religiosa ocorreu e não uma agressão a ela.
Os alunos da professora Elvira não demonstraram alterações nos dados, seguindo a mesma tendência dos alunos do 5º ano e do Autonomia, o que sugere maior amadurecimento desses alunos quanto ao que realmente importava na realização da tarefa.
Considerações finais
O que se viu na maioria das redações foi um Provérbio bíblico servindo a outro gênero totalmente desvinculado da sua origem, assumindo destinos variados de acordo com as orientações dos professores que direcionaram a aula para os objetivos estipulados por cada um, dependendo do que seria interessante para o cumprimento do currículo daquele ano escolar. A associação do provérbio a um princípio ou valor para a vida foi importante para as reflexões que antecederam a criação do texto no gênero pedido.
Pelo que foi exposto na tabela, e considerando os resultados apresentados em sala de aula e aqui analisados à luz dos argumentos apresentados nos referenciais teóricos que embasaram a tese de desconstrução do domínio religioso atribuído ao livro de Provérbios, a constatação é que, embora o livro esteja inserido, no quadro dos gêneros textuais, no domínio religioso, ao ser introduzido na sala de aula, em outra superfície, o texto transforma-se de imediato em um texto cujo gênero passa a ser o escolar.
A partir dessa nova disposição, novos gêneros surgem como cartas, dissertações, crônicas e outros mais para os quais o professor direcionar no momento da aula, já que é ele quem orienta o trabalho de produção. Sua atuação é imprescindível nessa desconstrução pretendida. A intertextualidade foi obtida numa boa porcentagem, o que evidencia uma receptividade animadora por parte dos alunos do material didático disponibilizado.
Os profissionais interrogados sobre a atividade revelaram estar satisfeitos com os resultados e afirmaram a plena cumplicidade com tal possibilidade em outros momentos, elogiando a iniciativa e admitindo o quão interessante é trabalhar com Provérbios bíblicos. Mônica, uma das docentes, após a contribuição com a atividade proposta e bastante entusiasmada com o resultado observado nas redações, afirmou:
Gostei muito de trabalhar o gênero carta utilizando provérbios bíblicos. Foi, sem dúvida, uma iniciativa bastante promissora. Estou trabalhando exatamente essa questão dos valores e meus alunos sentiram-se motivados ao poderem escolher o provérbio com o qual associariam a temática da tirinha, atribuindo um juízo de valor à situação. Com certeza, utilizarei outros provérbios em novas oportunidades.
Assim, estabeleceu-se de fato o que Santos afirmou em seu estudo: “não basta criar um novo conhecimento, é preciso que alguém se reconheça nele. De nada valerá inventar alternativas de realização pessoal e coletiva se elas não são apropriáveis por aqueles a quem se destina” (Santos, 1997 apud Vitkowski, p. 287).
Referências
BRITO, Edineide Ribeiro de. Em foco: classe de palavras - um estudo do uso adverbial em provérbios bíblicos. Ceduc, Centro de Educação, 2013.
CANDAU, Vera Maria; MOREIRA, Antonio Flavio. Currículo, conhecimento e cultura. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007.
Lopes, Alice Casimiro. Política de currículo: recontextualização e hibridismo. Currículo sem Fronteiras, v. 5, nº 2, p.50-64, jul/dez 2005.
MARCUSCHI, Luiz Antônio et al. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. Gêneros textuais e ensino, Rio de Janeiro, v. 20, 2002.
MIMOSO, Anabela Brito de Freitas. Provérbios: uma fonte para a História da Educação. Revista Lusófona de Educação, nº 12, p. 155-163, 2008.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisado. São Paulo: Cortez, 2004.
VITKOWSKI, José Rogério. Epistemologia e educação: conhecimento para uma vida decente. Analecta, Guarapuava, v. 5, nº 1, p. 9-22, 2004.
WILSON, Vitória. Gêneros discursivos: conceitos e práticas. Disponível em: http://especializacao.cecierj.edu.br/ava23/course/dar-indicação-exata-da-página. Acesso em 20 mar. 2014.
Publicado em 24 de novembro de 2015
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