O pensamento de Marcel Gauchet
Heiberle Hirsgberg Horácio
Doutor em Ciências da Religião (UFJF), professor da rede pública estadual do Rio de Janeiro
No desenvolvimento das aulas de Filosofia e Sociologia, é frequente que alunos perguntem se o Estado é o destino “natural” e necessário do ser humano, sobretudo os alunos das turmas da 3ª série do Ensino Médio, que, seguindo o currículo mínimo da Seeduc-RJ, possuem aulas de “Filosofia Política” e “Poder, política e Estado” em Sociologia. Neste artigo, procuramos exibir uma possibilidade para a compreensão do nascimento do Estado que não vê seu surgimento como um fenômeno necessário da história humana. Assim, este artigo visa indicar uma alternativa para o diálogo com nossos alunos sobre o poder e o nascimento do Estado.
Vale destacar que a iniciativa de exibir para os alunos uma alternativa para a explicação do nascimento do Estado não é algo inédito. Para ficar em apenas um exemplo de material já existente, pode-se mencionar o livro Iniciação à Filosofia, da professora Marilena Chauí, adotado por algumas escolas da Seeduc-RJ. Nele, a pesquisadora já menciona a perspectiva adotada por Pierre Clastres, a despeito da Sociedade contra o Estado. Nesse livro, a autora destaca que estão na origem da Filosofia Política questões como: “Por que, afinal, os homens sucumbiram à necessidade de criar o Estado como poder de coerção social?” (CHAUÍ, 2010, p. 325).
É diante da importância de reflexões sobre o poder e o surgimento do Estado, não só para apresentação aos alunos mas também para os estudos sobre política, que este artigo busca fornecer apontamentos sobre o pensamento do filósofo francês Marcel Gauchet.
Vale mencionar que, para a compreensão do nascimento do Estado na perspectiva desse autor, torna-se necessária uma explanação sobre a origem do religioso e das religiões primeiras e seus atributos, uma vez que para Gauchet a causa do Estado está relacionada à descontinuidade do religioso ou da religião em estágio puro.
A origem do religioso e a religião primeira
Para Gauchet, o ser humano, na sua origem, tem a percepção de que a ordem do mundo em que vive está relacionada a forças diferentes das dele. Esse ser humano e a sociedade em que ele está inserido buscam fora dela seu princípio fundador e ordenador. De acordo com o filósofo, “não existe sociedade sem uma separação em relação ao seu princípio de existência”. A sociedade se faz de forma diferente dela e esse homem que pensa a si mesmo por meio dessas forças externas as sacraliza.
A religião nasce de uma “dívida de sentido com a alteridade”, isto é, de como a sociedade concebe seu significado por uma dívida de sentido e por meio desta (sendo o fundamento da dívida de sentido a necessidade da sociedade se pensar no outro), “ela se pensa pensando que um outro a pensa”. Assim, a religião é estabelecida mediante uma relação de “negatividade do homem consigo mesmo” (GAUCHET, 2005, p. 32).
Segundo o filósofo francês, as sociedades ditas primitivas atribuem seu sentido sempre ao outro e, assim, neutralizam “uma cisão originária que penetra a espécie humana”, funcionando como sociedades unas e indivisas, submetidas à dívida de sentido existente fora dela.
Gauchet aponta que a necessidade de a sociedade primitiva estabelecer que as leis e os saberes que a regem venham de um plano diferente dela leva a sociedade à submissão e aos princípios soberanos exteriores, “que falam de cima”. Logo, esses fatores constituintes das sociedades primitivas, como a exterioridade e a dívida, funcionam como mecanismos contra a divisão política de que todas as sociedades são portadoras.
Nas religiões primeiras, os princípios que movem a natureza ou a sociedade não são dominados pelo homem, pois existe uma relação de desapossamento, atribuindo essa ordenação aos antepassados, deuses e/ou heróis. Essa negação de si, essa crença no outro é a base da crença religiosa primitiva.
É essa religião primitiva, com seus atributos supramencionados, que Gauchet considera religião pura. O pensador inverte a ideia de que o monoteísmo seria o desenvolvimento de uma complexidade religiosa, considerando o período do surgimento dele como aquele em que reside uma redução na multiplicidade do visível e do invisível, já que está “unido” a “um principio fundador integral” (STEIL, 1994).
Louis Dument chama de holista essa religião em estado puro, em que os princípios coletivos extrapolam as vontades individuais:
O modelo holista corresponde exatamente, na história, ao tempo das sociedades que podemos chamar religiosas, em função não tanto das crenças de seus membros quanto de sua articulação efetiva em torno do primado do religioso, i.e., o prevalecer absoluto de um passado fundador e de uma tradição soberana, em que pré-existem as preferências pessoais e impõe irresistivelmente como lei geral a regra comum válida para todos desde sempre. Em outro sentido (voltaremos sobre isso), a entrada de um tempo individualista é, no mais profundo, saída do tempo do religioso; a dependência do conjunto e da dívida com o outro desfazem de maneira ajustada (GAUCHET, 2005, p. 41).
De acordo com Gauchet, nas sociedades primitivas não há separação institucionalizável entre a norma e o ser, característica cultural inerente à religião primitiva, que, para além disso, compreende as razões de sua organização para fora da sociedade, isto é, “a exterioridade simbólica do fundamento social contra a separação efetiva da autoridade política: tal é a filosofia da religião primitiva” (GAUCHET, 2005).
A dinâmica mencionada da sociedade/religião primitiva objetiva o impedimento de qualquer homem de falar em grau de superioridade no coletivo, ou seja, de exercer o poder. Assim, observamos nas palavras do autor uma “despossessão radical como meio de uma igualdade política última”, impedindo qualquer coação dos homens pelos homens, na medida em que estão submetidos à vontade dos deuses e regidos pelos mitos e antepassados em tempos sagrados:
Ela não é simples tempo antigo no prolongamento do qual se situaria o presente social, ela é de um tempo em que sucedeu qualquer coisa que não tem lugar no tempo atual dos homens, a saber, uma instauração; nada existe entre o tempo de origem e o tempo presente, eles estão colados um ao outro, como o original do estado do mundo e a sua réplica forçosamente fiel em todos os aspectos. Como não ver que do que se trata rigorosamente de banir é a ideia de uma intervenção criadora dos homens no campo da sua vida social? (GAUCHET, 2005, p. 79).
Para o filósofo, nesse processo a lei “externa” possui caráter neutro, pois na sua formulação se afasta daqueles que se interessam em utilizá-la para exercício do poder. Todo o dispositivo social dirige-se para impedir que um homem passe para o lado da verdade dos deuses e assuma papel distinto especial. Nesse caso, pode-se indagar pela presença dos xamãs. Todavia, para Gauchet, apesar do prestígio que o xamã possui, ele é visto de forma comum, pois sua passagem ao invisível não altera a estruturação ordenadora. Assim,
o xamã segue sendo um manipulador dotado de uma faculdade privilegiada de movimentar-se entre os vivos e os mortos, entre as almas e os poderes mágicos... pois há uma viagem possível ao outro lado da realidade, mas não uma passagem concebível do outro lado do passado fundador e da lei instauradora, cujo ciclo ritual está aí para assegurar a perpetuação impessoal (GAUCHET, 2005, p. 46).
Essa “atividade” preventiva, em que “uma sociedade em que a subtração religiosa do princípio instaurador previne e desarma a separação de uma autoridade legitimante e coercitiva” (GAUCHET, 2005, p. 38) pode ser vista nos termos do que Pierre Clastres chama de sociedade contra o Estado.
Sendo nosso objetivo a compreensão do fundamento do Estado, e que para isso precisamos entender o religioso primitivo, a primeira tarefa nos parece cumprida. Tratando de Estado, seu fundamento está no mesmo cerne que o religioso, já que para Gauchet compreender porque os homens se tornaram devedores e porque as sociedades se projetaram além delas próprias, é “compreender por que foi possível o Estado num dado momento do devir humano-social”. Há o Estado porque houve a primeira separação estabelecida pela religião.
O surgimento do Estado
O surgimento do Estado não significa um corte, uma criação radical na história da sociedade nem o surgimento de algo extremamente novo, mas uma possibilidade presente na história humana – possibilidade, e não necessidade. Portanto, é importante ressaltar que o estabelecimento do Estado também não está na raiz das sociedades anteriores. Não há uma passagem lógica de uma estrutura para a outra. Observamos, com o surgimento do Estado e da divisão da sociedade, uma nova maneira de reconhecimento dos indivíduos uns para com os outros, isto é, diferenciação em função da separação autoridade/obediência. Uma autoridade que é nova nas relações individuais já existia nas relações com o Outro radical, e com a modificação ou rompimento com o “além puro” haverá a justificativa para a divisão entre os homens:
A dinâmica interna (opressão) e externa (expansão) própria da ação do Estado criou condições para que o pensamento religioso pudesse romper com a economia primitiva do único fundamento. Com o Estado, efetua-se um processo de subjetivação do fundamento social. Os homens reunidos mediante a força centrípeta do Estado passam a se compreender como sujeitos frente ao outro sujeito, colocado fora do mundo. Com a emergência do Estado se dá também a emergência do indivíduo (GAUCHET, 2005, p. 57).
Observamos que o surgimento do Estado é o surgimento de “um representante do invisível”. Surge com o Estado um refluxo do dispositivo de diferença que antes impossibilitava a divisão na sociedade:
É sempre aos deuses que se deve o sentido, mas é aos deuses através de um intermediário e na pessoa de outros homens. O Estado surge fazendo refluir contra a sociedade o dispositivo de diferença destinado inicialmente a defender a sociedade contra o Estado. Mas é manifesto que não é o Estado que cria a exterioridade do fundamento pelo qual ele justifica a sua separação. Ele limita-se a explorar um reconhecimento, já imemoravelmente constituído, de que a lei das coisas está fora do domínio dos homens (GAUCHET, 1980, p. 68).
Para o filósofo, a passagem para uma outra economia de pensamento dada pelo Estado pode ser indicada quando “os deuses passam a ser socialmente discutidos” (GAUCHET, 2005, p. 53), e que é diferente das relações que os xamãs possuíam nas sociedades primitivas; nisso há o poder de alguns homens em nome dos deuses e sobre os decretos desses deuses.
O vácuo com o divino aumenta à medida que cresce a aplicação do poder dos homens sobre eles mesmos, uma vez que “quanto mais é pensado e reverenciado Deus, como completamente outro, menos é percebido e realizado por eles como outro aquele que governa a existência das criaturas” (GAUCHET, 2005, p. 50).
Para o pensador, o que prevenia a divisão entre os homens nas sociedades primitivas era a separação existente entre eles e suas origens de uma maneira que eles não podiam alterar. Com o surgimento de “um aparato de dominação”, surge também a divisão entre os que estão ao lado dos deuses e os que não estão:
As versões desse fenômeno são múltiplas: desde o déspota deus-vivente em que o Outro de que dependem os homens toma decisivamente figura humana até o tempo em que Deus em pessoa se faz presente, sem encarnação humana propriamente dita, porém com servidores e porta-vozes. Em todos os casos, de uma forma ou de outra, é esse o novo corte – o capital –, a refração da alteridade divina no interior do espaço social, concreção do extra-humano na economia do vinculo inter-humano (GAUCHET, 2005, p. 52).
Gauchet chama de Estado a divisão política que é um efeito da cisão do visível e do invisível, em que temos com o Estado a redução da alteridade e consequentemente um processo de descomplexização do religioso.
Efeitos das transformações do Estado
Segundo o esquema de compreensão proposto por Gauchet na obra O desencantamento do mundo, são vários os “efeitos” das transformações do Estado, isto é, determinações que passam a operar nas organizações sociais após o surgimento do Estado. São elas: o nascimento das lógicas do “elemento hierárquico; [do] outro da relação de poder (...) e da dinâmica da conquista” (GAUCHET, 2005, p. 54).
A propósito do elemento hierárquico, inicia-se com este a era do culto, da adoração, pois a hierarquia necessita de subsídios para manter a agregação do corpo social conjuntamente com suas normas, sendo a hierarquia estabelecida além das relações entre os homens, mas também dos homens com os deuses. O visível e o invisível estabelecem também relações de sujeição. Esse elemento hierárquico mantém a agregação da sociedade que antes se atrelava pela ação dos rituais:
Dito de outro modo, a hierarquia é a repetição, em todos os níveis da relação social, da relação seminal entre a sociedade e seu fundamento em função da interseção central do visível e do invisível que determina propriamente o lugar do poder (GAUCHET, 2005, p. 55).
Outro fator importante de transformação no elemento divino se dá por meio da dominação, dado relacionado à “dimensão subjetiva inerente à relação de poder” (GAUCHET, 2005, p. 57). A dominação estabelece uma tensão coercitiva que mantém a sociedade estruturada de acordo com a lei seguida por essa dominação. Esse dado se articula ao elemento invisível e o utiliza como complemento para manutenção da sua ordem por meio das simbologias que sustentam a coesão social. Assim:
Através de uma tensão coercitiva com o resto da sociedade a mantém fiel à sua lei e em harmonia com as forças do universo. Relação cujo jogo interno, nos títulos complementares, é por natureza suscetível de desembocar em uma dinâmica subjetiva que põe em questão, de raiz, o imutável estabelecido, seja do ponto de vista da instância do poder, já desde o ponto de sua garantia sobrenatural (GAUCHET, 2005, p. 58).
Por fim, na dinâmica das transformações oriundas do surgimento do Estado, Gauchet menciona também a guerra de “conquista” como nova ação do Estado. Com o advento do Estado, suas formas e sentidos são modificados, uma vez que o significado da guerra para o Estado será distinto do significado da guerra primitiva que seguia uma lógica de diferenciação, levando à aniquilação da comunidade derrotada.
A guerra primitiva sustenta a diferenciação das comunidades que vivem “dessa confrontação potencial que a opõe a todas as outras” (GAUCHET, 2005, p. 59). Assim, não existirá a agregação de grupos, mas expulsão, aniquilação. Na guerra primitiva temos expulsões, destruições, mas nunca inclusões de um grupo por outro grupo:
Na lógica primitiva da oposição (virtual) da cada grupo com os outros não se trata, como observamos, de assegurar permanentemente sua indivisível identidade, pois tão pouco da certeza socialmente encarnada, de certa maneira, de ocupar o centro do mundo. O etnocentrismo radical forma parte integrante do dispositivo: a única boa maneira de ser é a nossa; os únicos seres verdadeiramente dignos do nome dos homens somos nós (GAUCHET, 2005, p. 61).
Com o advento do Estado e com a redução da lógica da alteridade, o Estado passa a se interessar pela expansão e assimilação. Desse modo, podemos observar o elemento da subordinação, que surge da divisão de poderes entre os homens. Esta subordinação do outro grupo passa a ser integral: “O verdadeiro rei é o rei dos reis, segundo a obsessiva fórmula dos titulares imperiais” (GAUCHET, 2005, p. 60). Agora o que determina a unificação dos homens é a lei verdadeira, aplicada pelo conquistador.
Gauchet considera que, com o surgimento do Estado e com os efeitos que esse surgimento cria, no caso os efeitos apontados acima por nós, abre-se uma metamorfose na relação com a alteridade que constituíra o fundo do surgimento do período axial (800 a 200a.C), período esse que, de acordo com o filósofo Karl Jaspers, foi fundamental para o surgimento do “homem com que até hoje vivemos” (GAUCHET, 2005, p. 63).
Em que pese a importância das reflexões sobre esse período para a compreensão do ser humano e da política contemporânea, não as faremos aqui, uma vez que nem o espaço, tampouco o tipo de texto permitem. Por ora, esperamos que este tipo de texto sirva pelo menos para possibilitar uma abertura à obra de Gauchet e uma alternativa para a compreensão do surgimento do Estado.
Referências
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CATROGA, Fernando. A religião civil do Estado-Nação: os casos dos EUA e da
França. Revista da História das Ideias, Coimbra, v. 26, 2005.
CHAUI, Marilena. Iniciação à Filosofia. Ensino Médio. São Paulo: Ática, 2010.
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. 2ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
GAUCHET, Marcel. O desencantamento do mundo. Madrid: Trota/Universidade de Granada, 2005.
______. A dívida do sentido e as raízes do Estado. In: CLASTRES, Pierre et al. Guerra, religião, poder. Trad. João Afonso dos Santos. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 51-89.
JASPERS, Karl. Iniciação filosófica. Lisboa: Guimarães Editores, 1987.
RÉMOND, René. Do político. In: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996.
STEIL, Carlos Alberto. Para ler Gauchet. Religião e Sociedade. Rio de Janeiro, v. 16, nº 3, p. 24-49, 1994.
Publicado em 10 de março de 2015
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