A importância da Cartografia na Geografia Humana: o desvelamento do subjetivo

Karina Arroyo Cruz Gomes de Meneses

Socióloga e pedagoga, mestre e doutoranda em Geografia Humana (UERJ)

O mapa ressignifica e carrega a possibilidade de conhecer a subjetividade. A princípio, por desconhecimento ou incongruência na compreensão da função cartográfica, parece-nos difícil mapear e transcrever em escalas exatas elementos subjetivos ou simbólicos. Instrumentalizar a Cartografia traz uma utilidade imensurável à ciência geográfica, especialmente à Geografia Física e suas subdisciplinas. No entanto, o uso do mapa na Geografia Humana e sobremaneira na Geografia Cultural pós-1980 trouxe revitalização à Cartografia como método, instrumento e aporte teórico.

No entanto, nem sempre foi dessa maneira. O uso da Cartografia foi comumente utilizado na Europa no século XVIII, que dá o tom da crescente instrumentalização cartográfica dos Estados nacionais europeus. As amplas disputas territoriais entre as principais potências da época reforçavam a necessidade do controle, por parte do Estado, da produção e da utilização de mapas. Nesse ínterim, foram criadas as agências nacionais de serviços geocartográficos, que estavam atrelados ao poder militar. Estabeleceu-se, a partir de então e até mesmo nos dias de hoje, em alguma medida, a relação entre a Cartografia e os exércitos.

Conhecedores da importância geopolítica dos mapas, os Estados europeus iniciaram a partir de 1750 a realização de levantamentos topográficos com vistas ao controle territorial. A primeira nação a quem coube esse mapeamento estratégico foi a França, que, em 1744, apresentou resultados cartográficos. Esse dado talvez tenha sido o mais expoente de um uso tácito e indispensável da Cartografia para o homem moderno; no entanto, mesmo a partir dos descobrimentos do século XV os mapas já se fizeram indispensáveis e evoluíram sobremaneira com o avanço nas técnicas de gravação e o surgimento da imprensa.

Conclui-se, portanto, que o mapeamento sempre foi uma atividade estritamente humana e necessária como suporte instrumental para delimitar espaços, como se pode observar.

Os mapas sempre estiveram, ou, pelo menos, o desejo de balizar o espaço sempre esteve presente na mente humana. A apresentação do meio ambiente e a elaboração de estruturas abstratas para representá-lo foram uma constante da vida em sociedade, desde os primórdios da humanidade até os nossos dias (HARLEY, apud MATIAS, 1996, p. 31).

Sob uma perspectiva de ordenamento cronológico, analisando a história do pensamento geográfico mais recente e representativa, se partirmos dessas correntes que se desenvolvem e se difundem a partir da década de 1950, denominada Nova Geografia, e sob os auspícios da denominada revolução quantitativa e teorética dessa ciência, começamos a observar as transformações nas concepções teórico-metodológicas que trouxeram uma visão mais crítica à organização do espaço, pois puderam abarcar a complexidade nos processos envolvidos na reprodução do espaço até culminar no momento histórico atual. Abandonou-se terminantemente a visão classificatória e descritiva da Geografia Tradicional com as obras de Alexandre von Humboldt e Karl Ritter. De acordo com Moraes (1989, p. 15),

Humboldt e Ritter são, sem dúvida, os pensadores que dão o impulso inicial à sistematização geográfica; são eles que fornecem os primeiros delineamentos claros do domínio dessa disciplina em sua acepção moderna, que elaboram as primeiras tentativas de lhe definir o objeto, que realizam as primeiras padronizações conceituais.

Apesar da tentativa de trazer rigor positivista para a Geografia, frente à necessidade de operacionalizá-la e difundi-la como ciência, por muitas décadas a Geografia Tradicional caracterizou-se por ser uma ciência de síntese cujo objeto de estudo é focado na distribuição pela superfície terrestre dos fenômenos físicos, biológicos e humanos.

Elencar as causas dessa distribuição e as inter-relações desses fenômenos em seus aspectos locais ou globais foi um objetivo fulcral; portanto, a análise desses geógrafos fundamentava-se, grosso modo, em uma visão empirista e naturalista baseada apenas na observação, comparação, classificação e descrição detalhada dos conteúdos apreendidos pelos sentidos, tendo como função ser uma ciência preditiva preocupando-se em isolar os fatos de seus juízos de valor.

Esse cenário permitiu o aprofundamento no uso e valorização dos métodos estatísticos e matemáticos, com uma abordagem sistêmica e de franca utilização de modelos que dessem conta de estruturar a distribuição e arranjo espacial dos fenômenos.

Muito embora a ciência geográfica tenha, de fato, se consolidado com essa roupagem hermética, a conjuntura dos desdobramentos sociais e políticos que sucessivamente se apresentaram instigaram uma mudança significativa e uma necessidade de conceber a Geografia de uma maneira mais flexível. Ainda dentro dessa perspectiva sistemática, dentre os problemas presentes nessa concepção do pensamento geográfico merece destaque a elucidação colocada por Santos (apud MATIAS, 1996, p. 21):

a aplicação corrente das Matemáticas à Geografia permite trabalhar com estágios sucessivos da evolução espacial, mas é incapaz de dizer alguma coisa sobre o que se encontra entre um estágio e outro. Temos, assim, uma reprodução de estágios em sucessão, mas nunca a própria sucessão. Em outras palavras, trabalha-se com resultados, mas os processos são omitidos, o que equivale a dizer que os resultados podem ser objeto não propriamente de interpretação, mas de mistificação.

A conjuntura sociopolítica do pós-guerra encaminha a ciência geográfica para novas reflexões sobre seu uso e poder. A divisão do mundo em blocos hegemônicos e diametralmente opostos lida muito mais com a questão ideológica do que com a econômica. As fronteiras então erigidas obedecem a uma dinâmica imposta de coesão e coação social e cultural. As fronteiras antes constituídas por Estados soberanos agora amalgamam-se em tipologias sociopolíticas que lidam com as questões morais, de pertencimento e identidade. Ora, esses mapas de agora em diante devem se preocupar com esses fluxos engendrados por questões prioritariamente subjetivas, que escapam de modelos estáveis e reprodutíveis. É o abandono definitivo da visão objetiva e preditiva da ciência geográfica.

Principalmente na década de 1970, os trabalhos do precursor da Geografia Humanista, Carl Sauer (1889-1975), permitiram considerar a dimensão do espaço vivido pelo homem como mais importante do que as premissas formal, funcional e genética.

O principal mérito dos trabalhos desse autor foi trazer novas premissas para a Geografia Cultural, que, sob a filiação da escola alemã e de pensadores como Richard Hartshorne, concebia a ideia de diferenciação das paisagens e das existências de diversas cosmologias que poderiam ser representadas. Sauer, por outro lado, valorizava as relações entre o homem e o ambiente, concebendo a paisagem como um habitat humanizado e contextualizado culturalmente. O espaço é concebido como espaço presente, diferente do espaço representativo da Geometria e da ciência. Seria o homem, portanto, que semiografando os espaços imprimiria sua cultura e relativizaria fronteiras.
Outra importante contribuição de Sauer é o estudo das relações entre o homem e o espaço a partir da comparação de diferentes expressões das paisagens, retomando para o cerne da Geografia os méritos da Corologia (ciência da distribuição geográfica dos organismos), premissa que foi abandonada pelo autor em seus últimos livros e publicações.

Em uma sucinta frase, Sauer afirma que “o último agente que modifica a superfície da Terra é o homem”. Assim, o ser humano passa a ser um “agente geomorfológico”, que intervém e ressignifica a topografia. Portanto, a Geografia Cultural, em sua concepção, se interessa por compreender e analisar as ações do homem sobre o espaço e a impressão delas sobre o meio. Essa concepção baseia-se na Antropologia de Alfred Kroeber (1876-1960), que concebe cultura como um fenômeno que se compreende à luz do tempo histórico, mas que é traçado a partir do espaço.

A questão da representação cartográfica, todavia, quando tomada em perspectiva crítica, não pode ser resumida unicamente à construção ou escolha de um determinado tipo de documento gráfico, pois a própria compreensão do conceito de espaço geográfico é transversal e perpassa a ideia da formulação de uma representação coerente desse conceito de espaço no intelecto, buscando traduzi-lo de forma inteligível ao pensamento e ao contexto cultural para posterior divulgação das idéias que ele pressupõe. Logo, a idéia de instrumentalização pura pode sofrer um reducionismo prejudicial, pois o mapeamento leva em consideração a cosmologia do espaço construído; ele extravasa a observação geomorfológica e considera plausível traçar e representar as fronteiras simbólicas, porosas e moldáveis, geralmente efêmeras. Assim, não é só durante a elaboração de um mapa ou qualquer outro tipo de documento gráfico que se faz uso da representação; a própria atividade teórica de construção de um conceito implica igualmente representá-lo.

Tudo é passível de ser representado; com isso, exclui-se o privilégio antiquado de representar apenas modelos naturais reprodutíveis cientificamente, como se observa nas Ciências Naturais. Em síntese, pensar sobre o espaço geográfico significa também, inextrincavelmente, fazer referência à sua representação – seja espacial ou simbolicamente construída.

Logo, cabe compactuar com aqueles que enxergam na linguagem visual uma das principais formas de expressão do saber e fazer geográfico. Como exemplo dessa expressão conceitual tem-se Jorn Seemann, expoente hodierno dessa apropriação da utilização dos mapas. Assim, a ciência cartográfica e seus múltiplos usos estão sempre à disposição da Geografia e das outras ciências humanas, pois instigam os sentidos no sentido da observação e compreensão dos espaços vividos e transformados culturalmente.

Conclui-se, sem sombra de dúvida, que os mapas sofrem flexibilizações visando seu aperfeiçoamento instrumental no que se refere à sua concepção, abrangência e competência.

Referências

HARLEY, J. B. A nova história da Cartografia. O Correio da Unesco, São Paulo, Unesco, ano 19, nº 8, p. 5, ago. 1991.

MATIAS, L. F. Por uma Cartografia Geográfica: uma análise da representação gráfica na Geografia. Dissertação (Mestrado em Geografia). USP, São Paulo, 1996.

MORAES, A. C. R. A gênese da Geografia Moderna. São Paulo: Hucitec/EdUSP, 1989.

SANTOS, M. M. D. dos. O uso do mapa no ensino-aprendizagem da Geografia. Geografia, Rio Claro, Ageteo, v. 16, p. 1-22, 1991.

ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, R. L. Apresentação. In: ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, R. L. (orgs.). Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999 (Série Geografia Cultural).

______. Geografia Cultural: introduzindo a temática, os textos e uma agenda. In: CORRÊA, R. L.; ROSENDAHL, Zeny (orgs.). Introdução à Geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 9-18.

SEEMANN, J. A aventura cartográfica: perspectivas, pesquisas e reflexões sobre a cartografia humana. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2005.

Publicado em 28 de abril de 2015

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