Aspectos da primeira dimensão do livro ágrafo

Salmo Dansa

Mestre em Design, aluno do doutorado do PPGD (PUC-Rio), bolsista Capes

Prof. Dr. Luiz Antonio Luzio Coelho

Professor associado (PUC-Rio) no Departamento de Artes & Design. Diretor da Cátedra Unesco e do Instituto Interdisciplinar de Leitura

Introdução

Este trabalho representa o primeiro passo para o estudo de um grupo de imagens de livros, tendo as poéticas de Gaston Bachelard como referência principal para uma abordagem fenomenológica. A análise dessas imagens gráficas pela “fenomenologia da imagem falada” pretende ser o início de nossa metodologia de estudo das dimensões estéticas do livro ágrafo. Tomamos neste primeiro momento apenas imagens configuradas como desenho, privilegiando imagens mais caligráficas, em oposição às imagens mais geométricas.

A relevância dessas imagens para nós é o aspecto criativo que elas carregam. Elas são imagens iniciais, tanto porque poderiam ganhar complexidade quando acrescentadas cores ou preenchimentos pictóricos quanto por constituir aqui a primeira de uma série de quatro etapas baseadas na definição de Vilém Flusser (2002, p.7), que considera a imagem como o “resultado do esforço de abstrair duas das quatro dimensões de espaço-tempo, para que se conservem apenas as dimensões do plano”.

Uma questão fundamental sobre o desenho está na relação entre a imagem configurada e a imagem mental. Existe a imagem mental, que tende a ser parte ou um estágio do processo criativo do desenho, e existe a imagem configurada, ou seja, o próprio desenho no espaço bidimensional do papel. Quando se fala dos dois tipos de desenho presentes do âmbito desta pesquisa – ilustração e imagem linear[i] –, a diferença entre os dois conceitos (imagem configurada e imagem mental) tende a aumentar, embora a intimidade entre eles se faça mais inextrincável. Explico: o processo da ilustração e da imagem linear necessariamente suscita imagens mentais que vão se configurando por meio de esboços, tentativas que levam a novas imagens – e esse é o ponto em comum com a imagem configurada: a imaginação contínua, o ato de imaginar e formular imagens mentalmente sem dissociá-las da ação desenho. É essa concomitância entre o traço e o pensamento que permite ao desenho ser tanto um modo de conceber quanto construir e expressar ideias – e isso deve ser levado em conta na análise do desenho.

Como forma de fundamentação teórica, este estudo parte da crença de que há sintonia entre as imagens lineares e as imagens poéticas descritas no terceiro livro das poéticas de Bachelard, em que o autor busca uma fenomenologia do impulso criador ou, em suas palavras, o estudo sobre a “imaginação em sua ação sobre a linguagem”. Ele toma a imagem da fênix para percorrer a dialética entre nascimento e morte presente no pássaro mitológico que renasce das cinzas. Mas esses fragmentos reunidos no livro póstumo do autor abordam também outras polaridades existentes entre as construções conceituais e a imaginação poética, afirmando que o ser, “por sua participação imaginária na intensidade do fogo, vive intensamente as ‘contradições’ próprias do fogo que surge e recai, na ‘dialética’ do animus e da anima” (Bachelard, 1990, p. 10).

Animus e anima, origem latina das palavras espírito e alma, são descritas por Gilbert Durand como uma estrutura psíquica do imaginário, mas, nesse contexto, levam a uma livre analogia em busca de uma possível hermenêutica do livro de artista e serão tomadas aqui pela relação entre texto e imagem, já que é nessa relação dialética que as intensidades poéticas da maioria das imagens bibliográficas se encontram.

A relação entre imagem e texto decorre da visão e da audição, sentidos privilegiados pela arte. No mesmo sentido, a escrita aproxima-se formalmente do desenho, pois ambas são linguagens gráficas lineares que se aproximam também em termos do impulso criativo que a linha carrega. Bachelard afirma que “é um destino normal da palavra fluir em novas imagens” (Bachelard, 1990, p. 44). A invenção presente em alguns desses livros é inspiradora aos olhos de um ilustrador por não serem representações diretas de coisas do mundo, mas apenas desenhos ligados a uma ideia maior. Como diz Bachelard, referindo-se à fênix, são “lendas nas quais não se crê, que não ilustram na verdade nenhuma experiência”. Não são desenhos do mundo, mas desenhos no mundo.

A abordagem interpretativa a seguir será fruto do meu olhar de desenhista e ilustrador de livros, minhas imagens mentais e memórias, analisando imagens configuradas como desenhos lineares constantes em um grupo de cinco livros ágrafos de artista. Esses livros serão vistos aqui como uma tipologia, posto que imagens lineares trazem aspectos morfológicos específicos dentro de um escopo maior e diversificado de tipologias de imagens bibliográficas. Os livros foram fotografados em visita ao Studienzentrum für Künstlerpublikationen[ii] em 22/01/2014, e a essa primeira amostragem atribuiremos um caráter experimental, com destaque às imagens lineares mais caligráficas (em oposição às mais geométricas) e suas características morfológicas e conceituais.

A imagem linear

No século XVI, a principal qualidade do desenho era ser disegno, termo que se refere tanto ao processo de pensamento ou reconhecimento por meio do qual é criado quanto à sua corporificação de forma externalizada. Na teoria renascentista, portanto, o desenho é visto como origem do pensamento criativo, tendo precedência sobre a pintura e a escultura, e aqui é visto como modalidade artística de igual importância a essas duas. Como o desenho ainda mantém esse papel preparatório, usamos aqui o termo imagem linear para reforçar o conceito de unidimensionalidade que demarca uma tipologia em nossa metodologia de análise.

A simplicidade dos meios, a liberdade de elementos representacionais, a semelhança à escrita tornam o desenho uma forma pictórica na qual a afirmação e a negação são diretas, imediatas, ou seja a estética do desenho está sempre vinculada a uma urgência interna. O desenho pode propor combinar elementos aparentemente díspares e preservar a intimidade intelectual e visual entre artista e espectador, em aparente contradição com o curso da história das imagens. Inserida na estrutura do livro, essa intimidade é potencializada ao máximo e é esse sentido expressivo que queremos apresentar nos livros desta amostragem.


In octavo 12, de Nanne Meyer, 1993. Fonte: Studienzentrum für Küntlerpublikationen Bremen.

O livro In octavo 12 (Antuérpia: Guy Schraenen Éditeur, 1993) é de tamanho médio, preto e branco, capa fina no mesmo papel do miolo, com desenhos na forma dos desenhos do miolo e título e autor em caligrafia gestual. O miolo traz desenhos lineares, em sequência de transformação gradativa de um para o outro, em aproximadamente 12 linhas e ocupando toda a extensão das 12 páginas. A obra é uma abordagem direta e radical da relação entre os símbolos lineares da escrita e do desenho. Um mergulho lúdico nas afinidades entre as duas linguagens. São desenhos lineares, sem cor e de aspecto simbólico, a ponto de as palavras constantes na capa se camuflarem ‘misturadas’ às imagens.

Os desenhos são organizados horizontalmente e reforçam o sentido da fruição da escrita nos desenhos. A montagem das páginas assemelha-se a uma diagramação em que as imagens, organizadas em sequência, sofrem transformação gradativa, metamorfoseadas de uma para outra e aumentando a ligação entre elas, como a mistura de sons que a fala produz, fundindo inícios e finais das palavras quando verbalizadas.

Existe uma essência poética impulsiva nas imagens lineares. Imagens da imaginação literária decorrem desse grande imaginário e dele não se distinguem totalmente. Em seus “Fragmentos de uma poética do fogo”, Bachelard (1990, p. 32) fala sobre o lugar de sua estética da linguagem dentro de uma estética geral, mostrando as ligações que mantêm com a estética das artes visuais e da música da seguinte forma:

A palavra ‘imagem’ está tão firmemente enraizada no sentido de imagem que se vê, que se desenha, que se pinta, que é possível fazer grandes esforços para conquistar a nova realidade que a palavra imagem recebe pela adjunção do adjetivo literária.

Percebe-se, entre os cerca de trinta livros desta amostragem, que as publicações onde os desenhos representam todo o conteúdo imagético possuem também grande variação de tipos de estrutura. Essa variedade, que inclui paródias de categorias como quadrinhos e livros de imagem, linguagens experimentais, interatividade, narrativas atreladas à encadernação etc., vai ao encontro de um experimentalismo que na verdade é uma qualidade própria da atividade de desenhar. Como o desenho é ferramenta de processo criativo, muitos artistas preferem transformar seus processos em conteúdo da forma mais fiel possível, sem maquiá-los. Frequentemente, é na subversão às regras da ilustração que o jogo da linguagem se reafirma e o trabalho ganha força estética.


Detour, de Jan Voss, 1989. Fonte: Studienzentrum für Küntlerpublikationen Bremen.

O livro Detour (Stuttgart/London, Mayer; Amsterdã: Boekie Woekie, 1989) traz uma narrativa visual configurada por meio de um desenho linear que vai, ininterrupto, do começo ao fim do livro. Esse desenho é combinado ao objeto por uma forma oriental de encadernação, em que as folhas são dobradas em toda a sequência, como uma combinação de formato sanfonado e códice que, mesmo tendo as folhas fixadas pela costura do lado esquerdo, ainda mantêm as dobras no lado direito do livro. O início (1ª capa) e o fim (4ª capa) têm, cada um, uma figura segurando a linha onde um ‘equilibrista’ caminha durante toda a narrativa interna.

Aqui percebemos certa afinidade no tipo de desenho com os desenhos de livros infantis. Essa característica não é tão explícita devido a algumas características, como ausência de cor e de capas tradicionais que protejam, intitulem e anunciem o conteúdo do miolo. Além disso, o tipo de encadernação atribui materialidade diferenciada que dialoga com um certo sentido de ‘infinitude’ presente nos desenhos, pois a cena que percorre todo o livro acontece no ‘céu’.

Nos dois casos citados, as capas não têm papéis diferenciados do miolo nem cores ou quaisquer artifícios hierarquizantes comuns em livros ‘não artísticos’. As imagens não têm cor nem preenchimento e toda a aparência é crua, deixando a imagem exposta no seu estado inicial, talvez tentando evitar que elementos decorativos exteriores desviem a atenção da motivação principal. Detour foi publicado pela editora holandesa de livros de artista Boekie Woekie com 1.000 exemplares numerados e assinados, em formato grande[iii].


COM.MIX, Die welt der Schrift - und Zeichennsprache. Ferdinand Kriwet, 1984. Fonte: Studienzentrum für Kunstlerpublikationen Bremen.

O livro COM.MIX (Ostfildern: DuMont Reiseverlag, 1984), de Ferdinand Kriwet, enfatiza a tend ência das publicações de baixo custo, com foco no conceito visual que prioriza o conteúdo imagético em relação à estrutura material, evidente na capa fina, em duas cores, com imagem gráfica, título e editora e a encadernação tipo brochura. O miolo traz, em 28 páginas, alguns exemplos significantes de coleção iconográfica de códigos visuais, agrupados e organizados por semelhança, analogia visual e significado, em que estão presentes os símbolos visuais de diversas linguagens, objetos, fotos, desenhos e grafismos.

Esse aspecto de inventário à conversão da diversidade de imagens presentes no mundo urbano, criando um vasto inventário de formas, o que resulta, ao mesmo tempo, em uma enciclopédia visual e um sofisticado livro de artista. A coleção de elementos do mundo da linguagem gráfica é transformada neste livro em um discurso coeso e bem articulado em termos fronteiriços entre o unidimensional e o bidimensional.

Ainda que a diversidade propicie uma leitura ambígua a respeito da prevalência entre as dimensões na configuração do livro, dois aspectos justificam a inclusão da obra nesta seção: por um lado, a priorização da imagem sobre o objeto e a ação do design na organização do conteúdo como um tipo de “desenho” da identidade do livro. Por outro lado, a ausência de elementos tridimensionais do objeto livro, da cor e a escassez dessa tridimensionalidade nas imagens tendem a enfatizar a fronteira dessas imagens mais para o lado estrutural do desenho do que com a representação do mundo tridimensional.

A ambiguidade é uma qualidade das imagens que também deve ser levada em conta tanto no âmbito bidimensional da superfície quanto na espacialidade do volume, e aí reside o aspecto subjetivo e a necessidade de interpretação. Para o escultor minimalista Donald Judd, duas cores postas lado a lado eram suficientes para que uma ‘avançasse’ e a outra ‘recuasse’, desencadeando um jogo de ilusionismo espacial. “Duas cores sobre a mesma superfície se encontram quase sempre em profundidades diferentes” (Judd apud Didi-Huberman, 2010, p. 52).

A interpretação que surge a partir do século XIX é resultante da contribuição de Nietzsche, Freud e Marx na cultura ocidental e vai além das concepções de interpretação existentes até então. Os “mestres da suspeita” reformularam a própria natureza do signo; segundo Foucault, eles “modificaram a maneira pela qual o signo em geral podia ser interpretado”.

Sobretudo em livros narrativos, penso que o sentido é revelado quando o intérprete busca “ir até o fundo, como um escavador”. Ele é restituído pelo sentido de interpretação na passagem pela sequência das páginas “até restituir a exterioridade cintilante que estava soterrada”. Será preciso “ler” o livro em todas as suas dimensões, percorrê-lo com os olhos e as mãos, visão e tato para apreendê-lo, “como segredo absolutamente superficial” (Foucault, 2000, p. 44).

O livro é um objeto de superfícies que ocultam sua profundidade. A percepção e o entendimento sobre o objeto livro, na sua dialética comunicativa entre interior e exterior, dá acesso ao seu valor estético pelo aspecto individual e intimista da fruição. Para entender essa relação entre o interior e o exterior do objeto, tomemos um parágrafo de Bachelard trocando a palavra “cofre” pela palavra “livro”.

No momento em que o cofre se abre não há mais dialética, o exterior é riscado com um traço; tudo é novidade, tudo é surpresa, tudo é desconhecido. O exterior já nada significa. E até, supremo paradoxo, as dimensões do volume não têm mais sentido porque uma nova dimensão acaba de se abrir: a dimensão da intimidade (Bachelard, 2008, p. 98).

A fruição dessas imagens lineares abrange a relação do sujeito com a página e com o objeto. Acessar a profundidade do objeto livro é interagir com suas interfaces, e a interpretação é um percurso por essas dimensões. Nessa passagem, a estrutura física dialoga com a estrutura narrativa por um fio condutor representado aqui pelo desenho.

Algumas imagens ganham sentido pela sequencialidade e complementaridade dentro de um conjunto. Nesse sentido, podemos entender a ênfase na narratividade: por um lado como aspecto mais comunicativo de sua formulação; por outro lado, os desenhos estariam de acordo com a contradição saussuriana entre língua e fala. Essa ideia parte do princípio de que cada um desses desenhos faz parte dessa massa ‘aparentemente heteróclita’ de imagens gráficas, da mesma forma que “a fala (...) seria a mensagem de uma língua geral da narrativa” (Barthes, 1987, p. 209).

Outro modo de olhar para nossas imagens seria pelo princípio de pluralidade, em que não procuramos estabelecer “um” sentido aos desenhos, mas traçar aquilo que Barthes chama de “o lugar dos sentidos” aplicado aos desenhos. “Do mesmo modo que uma língua é um possível de falas”, assim também o que esta análise pretende estabelecer é “o lugar possível dos sentidos, ou ainda, o plural dos sentidos ou o sentido do plural” (Barthes, 1987, p. 209).


CS – VI Bildroman, de Alexander Roob, 1998. Fonte: Studienzentrum für Küntlerpublikationen Bremen.

Deslocamentos, aproximações e modificações por acréscimo ou subtração gradativa de elementos ou partes da imagem. Assim os desenhos de CS-VI Bildroman (Darmstadt: Verlag Jürgen Häusser, 1998) compõem uma longa narrativa visual, combinando documentação, composição gráfica e sequencialidade. O conteúdo é bastante dinâmico e composto de cenas em espaços determinados de uma história relativamente verossímil.

Livro médio, capa fina com ilustração, título e autor. Miolo traz sequência de desenhos lineares combinando documentação, composição gráfica e sequencialidade. Organizados em colunas verticais, esses desenhos aparentam resultar de um processo de desenho de observação, desenvolvido em lugares específicos onde as cenas ganham forte aspecto narrativo pelos deslocamentos, aproximações e sequencialidade atribuídos por acréscimo ou subtração gradativa de elementos ou partes dos desenhos. Os desenhos também flertam com as histórias em quadrinhos pela característica linear do traçado, por estarem inseridas em quadros que as destacam do papel e seguirem uma sequência linear pelas páginas. Essa analogia com as HQs vem da tendência de alguns trabalhos artísticos serem comentários visuais sobre outros gêneros bibliográficos.

São abordagens (ou paródias) da forma ou tipo de narrativa, além de tocarem o lado lúdico e o onírico dos quadrinhos e da literatura infantil e juvenil. A Pop Art ampliou caminhos para hibridizações com esse universo nos anos 1960[iv]. Mas o mundo do devaneio da infância é grande, maior que o mundo oferecido ao devaneio nas fases da adolescência e da idade adulta. Gulliver, Alice, Narizinho, muitas são as imagens miniaturizadas ou agigantadas que enfatizam imensidades, desde Charles Perrault, irmãos Grimm, Andersen e todas as decorrências na literatura infantil contemporânea.


3rd place, de Richard Prince, 2008. Fonte: Studienzentrum für Küntlerpublikationen Bremen.

Nosso último livro, 3rd place, é também um exemplo de comentário visual sobre um tipo de livro infantil, os livros para pintar. A inversão está no uso de traço caligráfico de aparência infantil feita por um artista adulto, em analogia aos livros infantis para pintar, o que lembra a afirmação de Bachelard de que a representação é dominada pela imaginação e que, “na linha de uma filosofia que aceita a imaginação como faculdade básica, pode-se dizer, como Schopenhauer: ‘o mundo é minha imaginação’” (Bachelard, 2008, p. 159).

Numa relação imaginada entre o livro de Prince com a infância é possível imaginar cores; cada um pode imaginar suas próprias cores sobre os desenhos do livro. Um olhar de ilustrador de livros reconhece a inversão presente neste trabalho, em que em geral os desenhos são feitos pelo ilustrador e a pintura é feita pela criança. Quando o artista usa desenhos infantis ou produz desenhos que parecem desenhos de criança ele evoca a imaginação do leitor, pois “toda grande imagem simples revela um estado de alma”. O aspecto autoral é relativizado, subjugado à poética do livro.

Bachelard, no capítulo “Devaneios voltados para a infância”, da sua Poética do devaneio, dá uma pista dessa visualidade colorida da infância e das revivescências que trazemos dessa fase da vida da seguinte forma:

A infância vê o mundo ilustrado, o mundo com suas cores primeiras, suas cores verdadeiras. O grande outrora que revivemos ao sonhar nossas lembranças de infância é o mundo da primeira vez. Todos os verões da nossa infância testemunham o eterno verão (Bachelard, 2009, p. 112).

Considerações finais

O discurso visual das imagens na maioria dos livros apresentados aqui remete a um universo lúdico, imaginativo; mesmo carregando temas, conceitos e proposições claras, nota-se certa liberdade na configuração das imagens. Neste grupo de livros, observamos aspectos das imagens lineares em livros de caráter narrativo, interativo, semiótico e documental, com imagens trazendo abordagens visuais dos quadrinhos, como o livro CS-VI Bildroman. O aspecto principal dessa relação é a forma sequencial com que as imagens foram organizadas, a compartimentação das cenas em quadros e o traçado linear dos desenhos. Ainda assim, o trabalho escapa da estilização fácil e dos ícones dessa linguagem.

A literatura infantil também é tematizada no livro 3rd place, que joga com a inversão de papéis entre autor e público em um livro para pintar, uma das primeiras tipologias de livro de imagem interativo. Pelo traçado infantil das figuras, o autor estabelece uma inversão ou subversão a priori: o livro deve ser pintado por adultos. Importante ressaltar que a onda de livros para colorir para adultos eclodiu anos depois, com Secret Garden, de Johanna Basford (2013).

Detour apresenta recursos originais que combinam encadernação e desenho em uma narrativa extremamente linear produzida com uma linha que inicia a narrativa a partir da capa, atravessa as 358 páginas até a quarta capa. Com o livro fechado, vê-se um desenho curto e contínuo, indo da capa pela lombada e margens frontais até a contracapa. Em seguida, a obra COM.MIX, Die welt der Schrift - und Zeichennsprache traz um amplo inventário do mundo da linguagem gráfica transformado em um discurso coeso e bem articulado em termos fronteiriços entre o unidimensional e o bidimensional e tendo, de certa forma, caráter documental.

Vimos também que os desenhos lineares, mesmo quando ocupam as páginas de livros ágrafos, trazem aspectos relacionados à palavra escrita, como em In octavo 12. Os desenhos de Nanne Meyer – por sua semelhança processual e formal com o símbolo verbal e sua característica peculiar de ser, ao mesmo tempo, ferramenta e produto da criação artística – tematizam o próprio livro como meio em pelo menos dois aspectos: a preponderância da linguagem escrita sobre a visual no ambiente bibliográfico e a relação entre linguagem visual (ícone gráfico) e linguagem verbal escrita (símbolo gráfico), trabalhada em sua ambiguidade.

Portanto, podemos reconhecer por analogia que as poéticas dos livros em questão trazem aspectos relacionados à contribuição estruturalista na linguagem. Essa analogia está presente inicialmente nos desenhos como forma estrutural análoga à escrita, em que vale a máxima estruturalista de que o todo é maior que a soma das partes. Esse conceito norteador ganha força na sequencialidade e na predominante coesão de cada uma das obras em torno de um conceito próprio. Por fim, consideramos que “o autor, a expressão do autor, as representações do mundo e as circunstâncias históricas ou políticas” são minimizadas nas formulações das obras em favor do signo linguístico, da linguagem ou, no nosso caso, da ‘língua gráfica’, que são os desenhos, seus elementos, camadas, sistemas e jogos.

Bibliografia

BACHELARD, G. Poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

______. Poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

______. Fragmentos de uma poética do fogo. São Paulo: Brasiliense, 1990.

BARTHES, R. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2011.

______. A aventura semiológica. Lisboa: Edições 70, 1987.

DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. Campinas: Editora 34, 2010.

DURAND, Gilbert. O imaginário. Rio de Janeiro: Difel, 1994.

FLUSSER, V. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Relume Dumará, 2005.

FOUCALT, M. Nietzsche, Freud, Marx. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

SILVEIRA, P. As existências da narrativa no livro de artista. Tese de doutorado, UFRGS, 2008.

[i] Cabe aqui a distinção entre a ilustração e o que chamo de imagem linear: no primeiro caso, a imagem gráfica é muitas vezes elaborada ou produzida através do desenho, mas estará sempre se referindo a um texto. No segundo caso, especificamente no estudo de livros de artista, a imagem linear é o conteúdo artístico configurado como desenho, mas se sustenta como linguagem independente.

[ii] Centro de pesquisa sobre publicações de artista situado em Bremen, Alemanha. Constitui uma seção independente do Weserburg – Museum for Modern Art e é compartilhado também pela University of Bremen. Abrange aspectos de arquivo, biblioteca, centro de documentação e centro de mídias.

[iii] Consideramos grandes os formatos acima de A4; pequenos aqueles abaixo de A5.

[iv] Além da pintura de Roy Lichtenstein tendo cenas das HQs como tema, Andy Warhol fez trabalhos que tematizavam os livros infantis, cujo mais específico foi Andy Warhol's Children's Book, de 1984.

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Publicado em 10 de maio de 2016

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