Corpo, mídia e Educação Física
Marlene Vitória Biscaro
Mestranda em Metodologias para o Ensino de Linguagens e suas Tecnologias (Unopar)
Fábio Luiz da Silva
Doutor em História (Unopar)
Introdução
O indivíduo age no mundo por meio de seu corpo e nele está marcada toda a sua trajetória de experiências vividas. Dentre elas, destacam-se aquelas fornecidas pela educação formal. Assim, ao corpo biológico, originado na concepção, soma-se um corpo social, constituído pelas representações presentes na sociedade e que iniciam sua influência sobre o indivíduo mesmo antes do nascimento. A partir daí todos somos pensados como membros de uma cultura. A sociedade moderna instituiu um espaço privilegiado para a transmissão dessa cultura àqueles que acabaram de chegar ao mundo: a escola. Dentre os muitos conhecimentos que os alunos devem adquirir ali estão aqueles relacionados ao corpo. Por isso, há uma disciplina particularmente destinada a essa tarefa: a Educação Física. Considerando que a escola está inserida na sociedade e na cultura daqueles que a frequentam, admite-se que ela participa dos problemas, das contradições e das virtudes dessa mesma sociedade.
Assim, a disciplina Educação Física, como as demais, inspira questionamentos a respeito de sua presença na escola e sua contribuição para os indivíduos e para a sociedade. A história da Educação Física no âmbito escolar tem demonstrado que os objetivos de sua inclusão na escola já passaram por diversas mudanças ao longo do seu percurso como componente do currículo. Desde a educação corporal disciplinadora, nos moldes higiênicos e militares, passando pela perspectiva esportiva, que valorizava a aptidão física competitiva, até a sua utilização como meio de aquisição da saúde e da beleza.
Nesse sentido, percebe-se que o desenvolvimento da Educação Física brasileira colaborou para reforçar as visões atuais ligadas ao corpo, tão difundidas nos discursos sobre saúde, como estereótipo do corpo saudável e que, atualmente, circula pela mídia, defendendo uma aparência sintonizada com a moda de cada momento e estimulada pelo “advento da ‘modernidade fluida’” (Bauman, 2001, p. 15). Uma reconfiguração do corpo foi sendo estabelecida ao longo do tempo; por isso considera-se que a cultura midiática influencia a construção da representação do corpo. O corpo que foi sendo moldado para a sociedade industrial, o corpo do trabalhador, transformou-se hoje no corpo do consumidor, inserido na lógica da sociedade líquida, conforme proposto por Bauman (2008).
Desenvolvimento
Entre os muitos aspectos que poderiam ser objeto de reflexão, optou-se por investigar as relações entre as representações do corpo (preocupação essencial da Educação Física) e a cultura midiática (aspecto marcante da contemporaneidade). O pressuposto é que as representações presentes, sejam alimentadas ou questionadas, durante a formação inicial dos professores podem contribuir para a continuidade ou melhoria das práticas pedagógicas efetivamente concretizadas na Educação Básica.
A pesquisa se fundamentou na abordagem qualitativa, cuja natureza exploratória envolve o levantamento realizado por meio da pesquisa de campo amparada pela pesquisa bibliográfica. Um questionário on-line foi respondido por 70 acadêmicos do curso de Educação Física de uma instituição de Ensino Superior do interior do Estado do Paraná. Esse instrumento possuía perguntas abertas e fechadas para coleta de dados. Com base no levantamento de referências teóricas analisadas e publicadas por meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos e páginas de websites, de autores como Soares (2001), Bauman (2001), Santaella (2008), Darido e Rangel (2005), Neira e Nunes (2008), entre outros, foi realizada a análise dos resultados.
Pensando em corpo e sucesso, apresentou-se aos acadêmicos a seguinte questão: “Você acredita que a aparência do corpo contribui para alcançar sucesso?”. A isso, 61,4% dos acadêmicos responderam que “sim”, enquanto 38,6% dos acadêmicos disseram “não”. Nessa perspectiva, observa-se um percentual alargado de acadêmicos que responderam que a aparência física é responsável pelo “sucesso”, o que corresponde à posição de Witt e Schneider (2011): as propagandas, principalmente as estampadas nas capas das revistas, permitem conferir as imagens, a ilusão de bem-estar, com possibilidade de projeção e sucesso. Desse modo, “um corpo lançado na mídia, sobretudo na mídia especializada em famosos, é considerado um produto venal” (Garcia, 2005, p. 72).
Outra questão respondida pelos acadêmicos foi: “Na sua opinião, o professor de Educação Física precisa ter um corpo definido?”. O resultado mostra uma concepção de corpo a serviço do mercado do consumo, em uma sociedade que cultiva a cultura da imagem corporal. As respostas traduzem essa cultura da aparência física; verificou-se que 51,5% disseram que “sim”, o professor precisa ter um corpo definido, enquanto 48,5% responderam que não precisa. Os contornos de um corpo bonito revelam insígnias de uma nova ordem que se instaurou e que ganha evidência, ainda mais neste século: corpos fortes, torneados, magros e perfeitos (Witt; Schneider, 2011). A noção de corpo forte, magro e perfeito é sustentada especialmente pelo intenso discurso midiático, que, em última instância, influencia condutas e, de modo óbvio, os corpos dos próprios professores de Educação Física e os daqueles com os quais interagem.
Conclusão
As diversas representações do corpo corresponderam e correspondem às várias abordagens teóricas a respeito dos objetivos dessa disciplina no currículo escolar. Nesse sentido, a ideia de corpo foi objeto de refinamento e transformação, ou seja, ele foi controlado, moldado e constituído por diversos mecanismos baseados em princípios higiênicos, militares, esportivos e mais recentemente estéticos e de saúde, na perspectiva da sociedade de consumo.
Provavelmente, as forças determinantes da modernidade líquida tenham dificultado a difusão de práticas pedagógicas críticas no ambiente escolar. Sabendo que a vida social é impregnada por representações, e que elas alicerçam a ordem social tanto quanto as estruturas econômicas, podemos afirmar que na modernidade líquida as construções simbólicas a respeito do corpo recebem grande influência da mídia, que transforma a maneira coletiva de ver e viver o corpo.
Uma educação do corpo em sua integralidade, na Educação Física escolar, não foi ainda efetivada. Em geral, o corpo ainda continua a ser visto como sendo a parte menos importante do ser humano, mesmo que, contraditoriamente, o corpo apareça constantemente na mídia. Essa contradição origina-se do fato de o corpo apresentado pela mídia não ser o corpo real, mas um corpo imaginário, criado a partir de outros interesses que não aqueles vinculados à plena cidadania. As práticas pedagógicas deveriam ter como objetivo a educação do corpo que o compreendesse como uma unidade. Vive-se, na sociedade líquida, em busca da (re)construção do corpo. Desejo que é alimentado pelas imagens difundidas pela mídia e que ditam as regras de como se mostrar, de vestir, de ter sucesso e de seguir os famosos, as celebridades e os atletas.
Portanto, conclui-se que à Educação Física cabe um olhar mais apurado, um comprometimento maior com a educação integral do corpo. O papel dessa disciplina no currículo escolar deve ser pensado, pois é por meio dela que, necessariamente, se deveria compreender as formas de representação do corpo. Isso feito, a grande contribuição da Educação Física para a formação dos sujeitos na sociedade seria a humanização e a socialização do homem frente às determinações midiáticas.
A dimensão pedagógica do trabalho docente dos professores de Educação Física acerca do corpo deve ir muito além da realização e repetição de exercícios físicos em prol da qualidade de vida, que reduz o corpo à esfera biológica. Também deve superar a perspectiva puramente esportiva e competitiva, ou devem evitar aulas que priorizam apenas os movimentos que agradem aos alunos.
A educação do corpo, seja na escola, seja na universidade, deve promover e estabelecer a formação da corporeidade, uma compreensão das atitudes como um complexo de sensibilidades que não restringem o corpo a padrões estéticos, à visível onda do corpo banalizado e determinado pelo modelo midiático. Pressupomos que, a partir de uma contextualização reflexiva sobre os estereótipos que marcam a aparência corporal dos sujeitos, estes possam refletir sobre suas ações e comportamentos de modo que não se deixem impregnar completamente pelo discurso (in)visível imposto pela mídia, de que o corpo perfeito é o corpo magro e bem vestido.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
DARIDO, Suraya Cristina; RANGEL, Irene Conceição Andrade. Educação Física na escola: implicações para a prática pedagógica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005 (Educação Física no Ensino Superior).
GARCIA, Wilton. Corpo, mídia e representação: estudos contemporâneos. São Paulo: Thomson Learning, 2005.
NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mario Luiz Ferrari. Pedagogia da cultura corporal: crítica e alternativas. 2ª ed. São Paulo: Phorte, 2008.
SANTAELLA, Lucia. Corpo e comunicação: sintoma da cultura. São Paulo: Paulus, 2008.
SOARES, Carmen Lucia. Educação Física: raízes europeias e Brasil. 2ª ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2001.
WITT, Juliana da Silveira Gonçalves Zanini; SCHNEIDER, Aline Petter. Nutrição Estética: valorização do corpo e da beleza através do cuidado nutricional.Ciência & Saúde Coletiva [online], v. 16, nº 9, p. 3.909-3.916, 2011. Disponível em: http://www.scielosp.org/pdf/csc/v16n9/a27v16n9.pdf. Acesso em 3 nov. 2015.
Publicado em 10 de maio de 2016
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