Aspectos da terceira dimensão do livro ágrafo

José Salmo Dansa de Alencar

Mestre em Design, doutorando do PPGD PUC-Rio e bolsista Capes

Prof. Dr. Luiz Antonio Luzio Coelho

Professor associado no Departamento de Artes & Design (PUC-Rio),diretor da Cátedra Unesco e do Instituto Interdisciplinar de Leitura

Introdução

A abrangência do espaço-tempo na história do conhecimento humano e sua importância como fundamento no modo de apreender a realidade é apontada por Ernst Cassirer em seu livro Ensaios sobre o homem como a estrutura em que toda a realidade está contida. Portanto, “não podemos conceber qualquer coisa real exceto sob condições do espaço e do tempo” (Cassirer, 1994, p. 73).

Para melhor compreensão dessa formulação, buscamos na Crítica da razão pura (Kant, 1997), obra que inaugura essa teoria, mais elementos dessa posição filosófica considerada uma ‘revolução copernicana’ da filosofia. No capítulo intitulado Estética transcendental, Kant descreve o espaço não como um conceito, seja ele empírico, discursivo ou universal, mas como forma a priori da sensibilidade.

Entendemos que, sendo considerado forma a priori, o espaço para Kant é condição de possibilidade para o conhecimento. E como partimos da consideração de Cassirer de que a realidade (a coisa em si) não pode ser conhecida, o espaço é entendido então como condição de possibilidade para o conhecimento dos fenômenos. Cassirer se alinha ao que Kant inaugura. “O espaço é uma representação necessária a priori, que serve de fundamento a todas as intuições externas” (Kant, 1997, p. 64).

Kant exemplifica o aspecto não conceptual do espaço pela relação dos conceitos da Geometria com o espaço. “A Geometria é uma ciência que determina sinteticamente e, contudo a priori, as propriedades do espaço (...); o espaço não tem mais que três dimensões; tais proposições, porém, não podem ser nem derivar de juízos empíricos ou da experiência” (Pascal, 1999, p. 54).

Este estudo toma essa noção para aplicar como base metodológica para o estudo das dimensões do livro, lançando aqui luzes sobre o códice, comportando diálogos entre a estrutura material e o sistema organizado. Acreditamos que nos livros ágrafos as imagens são signos incompletos, ou seja, elas ganham sentido pelo agrupamento e sequencialidade, sendo parte de um sistema complexo sempre em diálogo com o objeto. Para Ulises Carrión, “o livro é uma sequência de espaço-tempo” (2011, p. 12).

Este breve aporte retirado da densa obra kantiana pretende ser uma base de análise fenomenológica e demarca uma introdução teórica à dimensão do objeto. A seguir, buscamos apontar especificidades do nosso objeto em relação à Fenomenologia do objeto apresentada na teoria de Abraham Moles como forma de nos apropriarmos de suas ideias para uma análise do objeto livro dentro da cultura material.

Em seu livro Teoria do conhecimento (Martins Fontes, 2012), Johannes Hessen afirma que o mundo no qual vivemos é modelado por nossa consciência e que jamais seremos capazes de saber como o mundo é em si mesmo, pois “tão logo tento conhecer as coisas, já lhes imponho as formas de minha consciência. O que tenho diante de mim, portanto, não é mais a coisa-em-si, mas a aparência da coisa, a coisa tal como me aparece”.

Trataremos dos aspectos da materialidade e da forma do objeto livro na sua relação com sujeito e o ambiente como parte do trabalho de análise fenomenológica de livros ágrafos . Nesse sentido, levamos também em conta que as especificidades morfológicas de cada tipologia trazem em si diferentes predominâncias entre essas dimensões para descrever como a terceira dimensão da estrutura espaço-temporal do livro influi na sua fruição, como um jogo no contato do sujeito com a sequência de imagens e estrutura do livro pelos sentidos da visão e tato.

O livro na teoria dos objetos

No livro A obra de arte. (Difel, 2000), Michel Haar afirma que para Kant o centro da criação ou da fruição é o sujeito. Para Heidegger, esse centro é a obra. Sobre a questão: “o que é uma obra de arte?”, este responde: “uma obra de arte é, antes de mais nada, uma coisa”. Essa definição aponta uma relativização da validade do termo ‘objeto’ quando se trata de livros artísticos estabelecendo polarização com os livros infantis.

Em sua Teoria dos objetos (Moles, 1981), Abraham Moles apresenta diversos aspectos do objeto em sua relação com o ambiente e com o usuário. Duas definições iniciais nos interessam: a primeira se baseia na etimologia, com origem na palavra latina objectum, que tem caráter material e sentido de resistência ao indivíduo, consonante com a definição de Vilém Flusser, que acentua o sentido de obstrução do objeto; para ele, “um objeto é algo que está no meio, lançado no meio do caminho (em latim, ob-iectum; em grego, problema)” (Flusser, 2007, p. 194). A segunda definição estabelece polaridade entre ‘objetos’ e ‘coisas’ Aqui nos deteremos somente nas características dos objetos, que para ele “constituem na sociedade industrial, o conjunto de parentesco, atribuindo ao objeto a ideia de produto específico do homem” (Moles, 1981, p. 25).

Moles mostra duas categorias fundamentais: a de objetos de consumo, feitos para consumo direto (como jornais, alimentos) e objetos duráveis, não consumíveis na sua essência (como livros e eletrodomésticos), que se apresentam para ter durabilidade longa, “mesmo se durarem apenas por algum tempo”. O autor lembra que, neste segundo caso, “o tempo aparece como dimensão suplementar da variância das formas, introduzindo pelo grau de desgaste uma memória que os objetos trazem à percepção do mundo” (Moles, 1981, p. 26).

Para distinguir o objeto por sua escala (tamanho), Moles começa por afirmar que o objeto está na escala humana ou “ligeiramente inferior a ela”, para em seguida subdividir esse domínio em “níveis de percepção baseados no conhecimento tátil”, quais sejam:

  1. objetos nos quais se pode entrar (maxiobjetos);
  2. objetos da nossa dimensão (esfera do gesto);
  3. objetos que se pode segurar nas mãos;
  4. objetos que se seguram entre os dedos (micro-objetos).

Finalmente, o autor sintetiza objetos em função da sua mobilidade, afirmando que o objeto tem um caráter “senão passivo, pelo menos submisso à vontade do homem”.

A questão da escala do objeto é estendida ao limite por Paul Virilio. O autor apresenta uma polarização entre ciberespaço e suas possibilidades em escala universal e os ‘tecnoimplantes’, atuando no microespaço interno ao corpo, sendo a mistura do técnico e do vivente (Virilio, 1996, p. 94).

Mas a questão da escala e mobilidade dos objetos terá abordagem diferenciada pelo geógrafo Milton Santos, quando se refere “ao conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ação que formam o espaço”, reafirmando a distinção em relação às coisas, mas acrescentando o conceito de “objetos geográficos”, que abrange objetos fixos como pontes, casas, cidades etc., divergindo da definição de Moles que limita o objeto a “algo independente e móvel” (Moles, 1981 apud Santos, 2008, p. 66).

Para entendermos a extensão e pertinência dessa estrutura espaço-temporal em nossa análise, partimos de um ponto de vista macroscópico para agora adentrarmos a especificidade da relação estética específica ao objeto livro. Nesse sentido, a fruição das dimensões internas (desenhos, páginas, narrativas) é precedida pela dimensão externa (tridimensional), em que o volume, a matéria e a forma se manifestam ao primeiro olhar e toque e que tem nas capas a interface de acesso às qualidades do objeto.

Livros são objetos que têm a escala das mãos, escala relativa também à distância dos olhos que os leem, são transportados adaptados ao corpo por bolsos do vestuário ou bolsas, mas também acompanham deslocamentos maiores do sujeito, por sua característica portátil. Essa proximidade física entre o leitor e o livro reflete o aspecto estético na sua dimensão afetiva, que acontece pelo tato e visão. Os livros apresentados e analisados a seguir exemplificam pontos da teoria de Abraham Moles, alguns aspectos materiais e relações conceituais dessas aplicações na configuração, seja pelo efeito direto na fruição, seja na permeabilidade com outras categorias de livros e objetos, seja por lidar com elementos comuns ao objeto livro.



Mirror box
, Ulises Carrión, 1979. Fonte: Studienzentrum für Küntlerpublikationen Bremen.

Carrión publicou, na década de 1970, importante livro intitulado A nova arte de fazer livros, traduzido por Amir Brito Cadôr (C/Arte, 2011), em que discorre sobre conceitos e características do livro como objeto de arte.

O livro Mirror box, de Ulises Carrión , oferece uma representação visual que parece concebida sob o conceito de oposição complementar. O livro tem capa tipográfica com título e autor no mesmo material do miolo. Confeccionado artesanalmente em feltro artificial, possui doze páginas não numeradas, cortadas em formato quadrado de forma ligeiramente irregular e encadernadas por grampos metálicos em dois pontos externos. Sobre cada página, o livro apresenta duas figuras de boxeadores impressas manualmente com carimbo. Cada uma das figuras é de uma cor diferente: uma é azul e a outra é vermelha, e estão posicionadas de tal forma que a transparência das páginas duplique as imagens, colocando-as em posição de confronto e se repetindo com ligeiras variações ao longo de todas as páginas.

O sentido tátil da leitura que temos no contato das mãos com o feltro do livro, reconhecer sua maciez, contrasta com a imagem do confronto, a energia e o impacto dos golpes contidos na ideia de uma luta de boxe. As páginas translúcidas fazem alusão à espacialidade interna e a combinação da imagem do lutador invertida completa o espelhamento que dá sentido ao título e que também pode ser interpretada em analogia à oposição e complementaridade existente entre sujeitos autor/leitor.

Abraham Moles descreve os objetos quanto à complexidade como um sistema de elementos ligados por relações funcionais e apresenta dois tipos de complexidade: a complexidade funcional, sintetizada como “uma dimensão estatística dos usos” e ligada às necessidades do usuário e suas decorrências teleológicas. A complexidade estrutural está ligada ao conjunto de peças, elementos que compõem o objeto, reunidas pelo fabricante, e se relaciona à “variedade do repertório de elementos”, não se diferenciando da ‘informação’, no sentido da teoria do mesmo nome. A respeito dessa relação, Santos reafirma a ideia de Moles, explicando que “a complexidade estrutural de um objeto é sua informação porque é a forma como pode comunicar-se com outro objeto” (Santos, 2008, p. 69).

Os espaços onde os objetos se agrupam são descritos por Moles em uma série de categorizações que demarcam os campos de pesquisa do objeto, como: o apartamento, o local de trabalho, o magazine, o estoque, o sótão ou antiquário e o museu. Nesses campos o autor define esferas de acesso ao objeto como pontos de espaço-tempo onde a ‘linha do universo do indivíduo’ tem maior ou menor densidade de objetos. Os livros habitam todos esses campos em densidades e funções diferentes, e a variação dessa densidade é relativa à predominância maior do objeto em determinados estágios do seu ‘ciclo de vida’.

A ação do tempo sobre os objetos pode em certos casos resultar numa ‘subversão do ciclo’, que segue uma lógica que parte da produção ao estoque, seguindo daí à loja e, com a compra, para o apartamento ou local de trabalho. O desgaste resultante do uso e da ação do tempo conduz o usuário à substituição e ao descarte desses objetos. No entanto, alguns deles sobrevivem à ação do tempo, atingindo assim um novo status que propicia sua revalorização e reaquisição por seu valor afetivo, histórico ou museológico.

Livros infantis, por se destinarem a faixas etárias específicas, têm tempo de utilização relativamente curto. Essa característica junto ao valor afetivo que carregam faz com que tenham tendência a permanecer mais tempo em instâncias de espera (sótão), podendo se revalorizar lentamente e voltar ao ciclo como objeto de colecionismo (museu), revenda em sebos (antiquário) ou seguir para o descarte definitivo. Outra característica da ação do tempo em livros infantis seria o interesse do usuário e sua interação com o objeto, que aparece nas marcas, interferências gestuais e diálogos entre as ilustrações e as garatujas deixadas pela criança, comparáveis às glosas ou marginálias deixadas pelo leitor adulto em um livro de estudos.

Livros de artista tendem a ter ciclos de vida mais extensos devido à aura de objeto de arte que carregam. As marcas do tempo são também aqui reveladoras de maior ou menor interesse do usuário e da proposição mais interativa ou documental da obra. A categoria de livros artísticos contempla uma gama diversificada de tipos, dentre as quais aparecem livros em que a fruição decorre do manuseio, conjugando visão e tato do sujeito em interação com a forma e o material do livro, mas também a tendência de catálogos de exposições que se propõem não só como documentação, mas como obras em si.


Nella nutella, Gelatin, 2001. Fonte: Studienzentrum für Küntlerpublikationen Bremen.

Nella nutella (Köln: König, 2001), do coletivo artístico Gelatin, é um livro colorido de formato horizontal, com 160 páginas encadernadas em espiral, com imagens sempre na página direita e publicado por ocasião da 49ª Bienal de Veneza. Traz série de fotos, algumas em sequência passo a passo, de cenas de integrantes do coletivo que assina a obra mergulhando/caindo na água, nadando ou saindo da água nos canais de Veneza e fotos de uma performance feita com pombos na Praça San Marco na ocasião. As duas últimas páginas trazem informações editoriais e na quarta capa a frase: Flying is the art of throwing yourself at ground and missing em inglês, alemão e italiano.

Esse pequeno livro tem uma característica peculiar que parece inicialmente conformar os registros fotográficos em uma cidade turística às páginas de uma estrutura de álbum. No entanto, um segundo olhar pode atentar para o exagero de imagens que não prezam pela estetização, mas que tomam a bela paisagem veneziana como cenário de uma ópera bufa. Assim, o formato reduzido remete aos libretos (libretti), livrinhos produzidos especialmente para acompanhamento de uma ópera, enquanto o tipo de encadernação barata e o espiral metálico protuberante, desproporcional ao formato, são elementos caricaturais que parecem por um lado lidar com o traço humorístico da cultura operística italiana e por outro brincar com o status da arte bibliográfica no universo da arte contemporânea durante o maior evento mundial do setor.

Comparativamente, o que diferencia livros de artista dos chamados livros de imagem seria mais os aspectos da complexidade funcional: por um lado, o aspecto sociológico (demografia e ecologia dos objetos) mostrando “como objetos vivem em conjunto e se organizam numa população”. Por outro lado, o aspecto psicológico, que trata do modo “como os seres humanos se exprimem através dos objetos, como estão ligados a ele” (Moles, 1981, p. 46).

Um exemplo significativo na categoria dos livros de imagem seriam os chamados livros-brinquedo, que se destinam prioritariamente às crianças iletradas ou em fase de alfabetização, não somente interagindo com os brinquedos como um (eco)sistema de ‘objetos infantis’. Assim, concordamos com Sophie van der Linden quando afirma que estes assumem aspectos de “objetos híbridos, situados frequentemente entre o livro e o brinquedo, que apresentam elementos associados ao livro, ou livros que contêm elementos em três dimensões (pelúcia, figuras de plástico etc.)” (Linden, 2011, p. 25).


Graf Tüpo, Manfred Bofinger, 2006. Fonte: Studienzentrum für Küntlerpublikationen Bremen.

El Lissitzky foi um pioneiro do design de livros moderno e que, como artista participante do suprematismo de Kazimir Malevich, estava à procura de uma arte internacional, coletiva e transformadora.

O livro Graf Tüpo (Leipzig: Verlag Faber & Faber, 2006) é uma homenagem do cartunista e ilustrador berlinense Manfred Bofinger  ao arquiteto, tipógrafo, ensaísta, educador e cofundador do construtivismo russo El Lissitzky, que publicou em 1922 o revolucionário “História de dois quadrados”. O livro tem formato grande, capa dura, plastificada e impressa em duas cores, vermelho e preto, e a folha de rosto traz dedicatória (“Für El Lissitzky zum 100 um Luise zum 2 Geburtstag”).

O miolo traz, em 32 páginas, uma história que personaliza as formas geométricas, revivescendo a ideia de humanizar um quadrado e seus “amigos”: retângulo, círculo, semicírculo, linha, triângulo, um total de dez formas puras, combinadas entre si e com nomes enigmáticos, como Lina Tschornaja, a linha vermelha. Uma “turma geométrica” em um contexto poético, ao mesmo tempo ingênuo e excepcionalmente bem construído. A sensação de um brinquedo percebida no contato com a obra nada tem a ver com os chamados ‘livros-brinquedo’ da literatura infantil, mas talvez essa geometrização radical das imagens em consonância com o bloco branco plastificado e com arestas bem marcadas na forma de paralelogramo seja a chave estética desta publicação. Sem dúvida a alma de Graf Tüpo é a geometria.

O exemplo de Graf Tüpo representa, de certo modo, uma exceção, já que é considerado (citado, criticado, vendido etc.) como livro infantil. O autor é largamente reconhecido como ilustrador de livros para crianças, contudo pode-se ver o livro em ambientes de livros de artista, como o acervo do Studienzentrum für Kunstlerpublikationem Bremen. O mais comum é que os livros artísticos tematizem os livros infantis, mas tenham aspecto sociológico bastante diverso destes, interagindo muito com outras tipologias, mas pouco com outros objetos.

Em 2012, Amir Brito Cadôr publicou artigo intitulado O signo infantil em livros de artista (Revista da Pós, EBA UFMG, v. 2, nº 3, p. 59-72). Ali aponta diferenças e semelhanças entre livros infantis e livros de artista em busca de signos compartilhados pelos dois universos.

Por exemplo: mesmo sendo obras de arte, a presença de livros de artista em galerias e grandes exposições é bastante escassa. No Brasil, a presença desses livros é ainda restrita a poucos canais de circulação. Por outro lado, o crescimento da produção e do estudo acadêmico do livro de artista pode ser notado na ampliação e frequência de feiras especializadas e no interesse dos autores e editores de livros infantis pelas possibilidades criativas emergentes de trabalhos de caráter mais experimental na área dos livros artísticos, assim como uma crescente relativização das fronteiras entre as duas categorias.


Children’s book, Andy Warhol, 1983. Fonte: Studienzentrum für Küntlerpublikationen Bremen.

Um exemplo dessa relativização é o título Children’s book, do livro de Andy Warhol (Zürich: Bruno Bischfberger, 1983). A publicação tem capas e páginas do miolo em cartão, tipo papel paraná plastificado e com bordas arredondadas, imitando livros infantis e trazendo série de 12 imagens coloridas, ocupando desde a primeira capa até a quarta capa. O trabalho foi produzido como catálogo para uma exposição de Warhol com motivos infantis e retrata imagens de embalagens de brinquedos na galeria Bruno Bischfberger, na Suíça. O livro/catálogo marca perfeitamente a apropriação de um aspecto material dos livros ilustrados para crianças pequenas, aparentemente surgido no clássico alemão Struwelpeter, de Heinrich Hoffmann, mas também como um retorno de Warhol às origens de ilustrador.

Nas décadas de 1950 e 60, além das famosas capas de discos de jazz, Andy Warhol ilustrou historias da série “Best In Children's Books”, criou ilustrações e capas para livros de adultos. Esses freelances para o mercado editorial foram ignorados pelos críticos e biógrafos de Warhol durante décadas para somente virem à tona em 2009 no leilão das artes originais do livro infantil The little red hen. Naturalmente esses livros e ilustrações têm assumido outro patamar de classificação com o passar dos anos.

A classificação utilitária dos objetos e seu potencial comunicativo são questões que levam a um primeiro estágio de análise comparativa entre nossos diferentes tipos de livros. Moles apresenta distinções entre o aspecto semântico (denotativo), explicável à vontade por seu receptor e mais ligado à função, e o aspecto estético ou conotativo, constituído ele mesmo sobre as ‘harmonias do sentido’, que abre maior campo de significação e variadas interpretações, afirmando que parece “lógico situarem-se ao menos sumariamente as estruturas semânticas antes de se examinarem as estruturas estéticas” (Moles, 1981, p. 47).

Paulo Silveira, em sua tese acerca das narrativas em livros de artista, apresenta dois tipos de abordagem na análise estética: uma mais apropriada a livros narrativos (pela parte), outra mais adequada aos chamados livros-objeto (pelo todo), que podemos resumir nos seguintes termos:

Podemos fazer a aproximação crítica à obra por duas vias principais: pelo todo ou pela parte. O primeiro caminho parte do princípio de que o volume tem na sua própria totalidade física a concepção teórica e histórica que o define (...); o segundo caminho é o que enfatiza a importância e a indivisibilidade da página (Silveira, 2008, p. 111).


Him+ Her, Jan Voss, 1988. Fonte: Studienzentrum für Kunstlerpublikationen Bremen.

No livro Him + Her (Amsterdam: Boekie Woekie, 1988), Jan Voss não apresenta uma narrativa, mas uma forma absolutamente original de atribuir movimento ao desenho sem perder a dualidade entre ‘capa’ e ‘miolo’. O conteúdo desse pequeno livro-objeto é feito à mão, um tipo “bem-humorado” de desenho que toca claramente um tipo de traçado das histórias em quadrinhos do século XX. A ideia parte de uma inversão morfológica, ou seja, a única imagem ocupa a contralombada, o título e nome do autor ocupam a lombada, enquanto o que seriam as ‘capas’ e o ‘miolo’ têm a espessura de apenas um centímetro. Quando tentamos folhear, o objeto se ondula de forma flexível, simulando o movimento da imagem, como um vaivém.

Segundo Moles, devemos levar em conta dois fatores que coexistem na classificação de objetos: o vínculo à função e a herança das tradições; esses fatores estão ligados a ‘superfunções’ como comer, dormir, descansar etc. Os conteúdos dos livros de imagem são predominantemente narrativos e trazem aspectos mais semânticos, enquanto os livros de artista, do modo geral, trazem aspectos mais estéticos, podendo, como em Him + Her desprezar os aspectos narrativos.

No entanto, nos dois casos, essas qualidades se expressam fundamentalmente dentro de uma gradação entre inteligibilidade e originalidade, que leva em conta a subjetividade dos autores e do público em função da dinâmica dos ambientes. Ainda segundo esse autor, “há tanto mais inteligibilidade quanto mais previsível são as recorrências dos elementos, noção que a Teoria da Informação expressa por meio da redundância” (Moles, 1974, p. 56). Os conceitos de originalidade e inteligibilidade são expressos dialeticamente, determinando linguagens, tendências e estereótipos das imagens e dos objetos, pois, segundo o autor,

Assim, estabelece-se uma dialética, um jogo entre dois extremos igualmente paradoxais, o da mensagem, perfeitamente banal, totalmente inteligível que, qualquer que seja o número de seus símbolos, é integralmente apreendida por serem seus símbolos conhecidos ou cognoscíveis a priori, e, no outro polo, a mensagem perfeitamente original, possuindo a maior densidade de informação, a mais rica em possibilidades, que seria totalmente ininteligível ao receptor (Moles, 1974, p. 108).

Inicialmente essa distinção leva aos dois principais grupos de livros ágrafos que tomamos como objeto de pesquisa, os livros de artista e os livros de imagem. Comparativamente, o primeiro grupo tende a ter maior complexidade e, portanto, menor legibilidade. O segundo grupo, no entanto, tem maior extensão histórica, tendo por isso acumulado relações e camadas de significado em diferentes momentos. Por fim, a questão que se estabelece é se a maior inteligibilidade é resultado de relações temporais presentes na história do objeto e na faixa etária do sujeito da fruição. Há uma curiosa inversão entre sujeitos e objetos de livros de artista e livros de imagem. Livros de artista são objetos jovens direcionados a adultos, enquanto livros de imagem são objetos antigos direcionados às crianças.

As relações temporais do objeto são descritas por Moles como as suas manifestações no ser em função da recordação e dos “mecanismos de presença e impregnação do objeto no indivíduo” (Moles, 1981, p. 94) e envolve etapas distintas da relação do sujeito com o objeto. A primeira fase seria a do desejo, descrita como ‘época pré-natal do imaginário’, tomando três aspectos de extensões variadas: o projeto ou desejo longo, a necessidade e o desejo impulsivo.

Por outro lado, a polarização vai também incidir como uma gradação na qualidade dos objetos, determinada pela ‘cumplicidade’ ou afinidade de repertórios entre autor e público, mediada por determinado mercado. No caso deste estudo, essa mediação vai muitas vezes determinar essa polarização entre os objetos, ou seja: de um lado o mercado de arte anseia pela originalidade das obras e caminha no sentido das obras únicas ou que se valham de signos incomuns, sejam eles materiais ou imagéticos. Por outro lado, o mercado de livros infantis segue, no sentido oposto, uma tendência à comunicação mais fácil, em que os signos são mais estereotipados e de assimilação imediata, em parte por sua relação com a tradição do uso de livros infantis na educação.

Artistas que ilustram livros infantis ou ilustradores que produzem arte bibliográfica: muitas vezes parece-nos que as diferenças entre arte e design são minimizadas nos livros. Giulio Carlo Argan distingue essas duas formas de produção estética como arte pura e arte aplicada, em seu livro Projeto e Destino, elaborando discussão esclarecedora a respeito dessa polarização e afirmando que “se a arte assim chamada pura transmite uma imagem do mundo, a arte assim chamada aplicada transmite uma imagem da sociedade e de seus graus e valores internos, e sobretudo das suas funções” (Argan, 2000, p. 117).

Abraham Moles estabelece que, após o desejo, vem a fase da aquisição (seguida da descoberta; gostar; habituar-se; conservar; e ver morrer o objeto), que é definida como “a passagem do objeto de um universo coletivo à esfera pessoal” (Moles, 1981, p. 96). O autor afirma que a maior parte do prazer que o objeto pode proporcionar ocorre sobretudo nas três primeiras fases, mas o ápice ocorre na segunda. Como citado, livros infantis têm nesta fase a particularidade do dual address, uma vez que em geral o sujeito da fruição não é o mesmo sujeito da aquisição. Aqui, como na fase anterior, o desejo da criança está subjugado à aprovação do adulto ‘mediador’, permanecendo no meio escolar ainda num universo parcialmente coletivo.

A terceira é a fase da descoberta. Descobrir o objeto traz euforia, apreensão cognitiva, experimentação exploratória pelo contato visual e tátil e a ‘tentativa como jogo e representação’. Em seguida vem a fase chamada gostar do objeto e depois a fase do habituar-se com ele, fases da estabilidade que, no caso dos livros, são posteriores à leitura ou à experimentação exploratória. O contato habitual produz uma espécie de depreciação cognitiva, fazendo-o neutro e de prazer decrescente.

As fases finais enumeradas por Moles são conservar e ver morrer o objeto. Desde a publicação da Teoria de Abraham Moles, a conservação de objetos tem se tornado cada vez menos presente no ciclo de vida dos objetos. Principalmente quando se trata de livros infantis, o restauro é cada vez menos usual e os profissionais cada vez mais escassos, o que muitas vezes conduz o objeto diretamente à última fase do ciclo. Mas a questão da vida útil do objeto de design está hoje em dia cada vez menos relacionada à durabilidade material e mais ao que Gilles Lipovetsky descreve por dois traços principais: “de um lado, o ‘déficit técnico’, que destina o objeto serial à mediocridade funcional; (...) por outro, o ‘déficit de estilo’, que condena o objeto para o grande público ao mau gosto” (Lipovetsky, 2009, p. 98).

Ainda que esses aspectos tivessem sido tematizados pela geração anterior por Jô Oliveira e Ciça Fittipaldi, foi o trabalho de ilustradores como Fernando Vilela, Marcelo Pimentel, Graça Lima e Roger Melo que trouxe maior reconhecimento à ‘brasilidade’ da nossa ilustração.

Um exemplo possível seriam as tendências recentes da ilustração brasileira, como, por exemplo: a assimilação da xilogravura de cordel e da pintura primitiva pelo imaginário de nossa cultura visual como valores cada vez mais utilizados na ilustração de livros infantis. Essa transição estilística, iniciada nos anos 90, tem influenciado as novas gerações e se tornado uma identidade visual do livro infantil brasileiro moderno em oposição à influência anterior, de tradição europeia.

A morte do objeto impõe-se como uma metáfora a respeito do final da vida, “o indivíduo, portanto, está ligado finalmente a cada etapa”. Essa relação de dependência aos objetos é reforçada pela sociedade, que espera sua reafirmação em cada indivíduo por meio de impulsos dos meios de comunicação de massa. Nas palavras de Abraham Moles: “Assim, o filme norte-americano definirá como ‘marginal’ todo indivíduo que não possua nem televisão, nem congelador, nem automóvel” (Moles, 1981, p. 98).

Considerações finais

A partir de uma visão panorâmica, procuramos inicialmente descrever a estrutura espaço-temporal e sua relação com a análise fenomenológica dos livros tomados como objeto desta pesquisa, demarcando assim essa estrutura como formas a priori em que vai prevalecer o aspecto ‘exterior’ do espaço relacionado ao objeto e o aspecto ‘interior’ do tempo relacionado ao sujeito, apontando, assim, nosso interesse maior na aparência do objeto tal como nos aparece.

Tomando os aspectos próprios dos objetos em relação ao espaço-tempo, qualificamos livros como objetos duráveis na escala das mãos, adaptando-se ao corpo por meio de outros objetos. Livros habitam o ambiente próximo ao sujeito e em distância funcional em demografias e temporalidades diferentes e estão presentes em todos os campos de pesquisa do objeto.

O livro Mirror box, de Ulisses Carrión, mostra a complexidade atribuída à obra no sentido tátil da leitura perceptível no contato das mãos com o material do livro; a ilusão de espacialidade interna pelas páginas translúcidas; e a imagem invertida como um espelhamento presente no título. Já em Nella nutella,do grupo austríaco Gelatin, temos os aspectos do livro como documentação e paródia presentes na forma de um libreto que pode nos aproximar do traço humorístico da cultura operística italiana.

O livro Graf Tüpo, de Manfred Bofinger, traz a sensação de um brinquedo percebida no contato com a obra que evidencia a geometrização radical das imagens em consonância com o bloco branco plastificado de arestas bem marcadas na forma de paralelogramo. Em seguida trouxemos Children’s book, de Andy Warhol, que vai ser mais enfático nessa aproximação ao universo infantil, em um livro-catálogo que tematiza a criança nas imagens, cores e, sobretudo, na forma material de páginas e capas grossas, rígidas e arredondadas, típica dos livros de imagem.

Por fim, as inversões morfológicas do objeto e formas narrativas próprias atestam o caráter experimental dessas publicações, como no livro Him + Her, de Jan Voss, que traz uma longa sequencia de folhas de um centímetro em branco com uma figura desenhada à mão sobre a contralombada que parece se mover para frente e para trás quando manuseamos o livro. Nessa obra surpreendente há três aspectos que a caracterizam como um livro objeto: caráter artesanal, ausência de sequencialidade e predomínio do exterior sobre o interior.

Assim, demonstramos que a classificação utilitária e o potencial comunicativo dos livros ganha sentido como objetos de acordo com o diálogo entre as categorias da literatura e arte visual. Dessa distinção decorrem suas potencialidades estéticas e semânticas dentro de uma gradação entre inteligibilidade e originalidade que levam em conta a subjetividade dos autores e do público em função da dinâmica dos ambientes e mercados. Segundo Moles, a existência de potencial semântico (denotativo) ou estético (conotativo) nesses livros induz para uma priorização em examinarem-se primeiramente as estruturas semânticas e posteriormente as estruturas estéticas.

A análise fenomenológica do objeto livro nos levou a descrever por fim os aspectos psicológicos, os aspectos sociológicos e o ciclo de vida e do objeto, concluindo que a fase final de um livro pode ser entendida por gradações e variações entre o descarte e a reciclagem material do objeto. Essa analogia ao ciclo de vida do objeto livro remete à narrativa, elemento que relacionamos à quarta dimensão do espaço-tempo.

Referências

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Publicado em 07 de junho de 2016

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