Processos de criação e juventudes no cotidiano escolar
Vanessa de Andrade Lira dos Santos
Professora de Artes Visuais da Faetec e da Seeduc-RJ, mestranda em Educação, Cultura e Comunicação (FEBF/UERJ)
Um dos grandes desafios do professor de Artes diante de seus alunos é possibilitar uma experiência significativa com o fazer artístico. Essa dinâmica se apresenta como fundamental no processo de desvelar o que se entende como arte, em seu sentido mais pleno. Dimensionar essa experiência no universo juvenil implica compreender o que existe de transitório nessa tentativa. A solidão e a coletividade, elementos essenciais para o processo de produção de saberes, de reflexão e de criação, estão sempre em embate diante do que se põe como questão, como problema. Toda a subjetividade do processo artístico se materializa ainda mais intensamente quanto tratamos do universo juvenil. Essa consciência interrogante se apresenta no ato da dúvida, se reconhece e tenta se afirmar e reafirmar como possibilidade de singularidade. Assim se apresenta o principal objetivo das propostas artísticas voltadas para estas “consciências interrogantes”: partir de proposições iniciais que incitem perguntas e, seguindo além, que possibilitem questionar as perguntas numa espécie de descortinamento, como um ciclo que não finda em si mesmo.
As propostas a seguir não trazem em si nenhum teor categoricamente inovador, já que as atividades surgem como proposições iniciais para experiências que tendem ao desdobramento. Os alunos se encontram na faixa entre 13 e 15 anos, nos últimos anos do Ensino Fundamental de uma escola da rede pública do Rio de Janeiro. Os trabalhos citados são experiências iniciais e usam como suporte a bidimensionalidade do papel e materiais simples como lápis de cor, de cera, grafite, canetinha e tinta. As atividades partem de proposições que buscam na experiência motivos de desvelamento; logo, os resultados não sintetizam plenamente todo o teor das trocas. A última atividade, que utiliza como tema inicial o dadaísmo, desdobra-se como discurso e atividade dinâmica e reflexiva, não apresentando um trabalho final palpável.
Experiência gráfica – a linha como instrumento de produção
Partindo de um elemento importante na observação inicialmente formal de uma produção, foi proposto um trabalho de pesquisa das possibilidades de construção de textura visual. Por vezes, o uso dos elementos formais da linguagem visual (ponto, linha, forma), desdobrado em atividades, pode vir a causar desconforto para alguns pesquisadores do ensino de Arte, por se tratar de uma atividade já muito utilizada ou até mesmo considerada “limitada”, tratando-se de propostas criativas. No entanto, torna-se importante considerar que é possível, se coerentemente direcionado, partir de elementos simples e enveredar por uma experiência iniciadora e repleta de questões. O que é possível produzir com a linha e o que os olhos são capazes de enxergar e experienciar diante deste elemento arranjado e rearranjado de maneira particular são, no mínimo, relevantes. A proposta foi preencher a superfície da folha de maneira ainda figurativa, mas utilizando essas figuras simplesmente como motivações para trabalhar esse espaço fragmentado de maneira a construir diferentes sensações visuais e causar ao olhar a dúvida diante dos padrões diversos e dos segmentos desses fluxos de repetições e limitações no espaço.
O trabalho, apresentado como exemplo de produção a partir da proposta, tem sua base no uso de textura visual e da cor como suporte de experimentação, que carrega em si diferentes possibilidades de relações. A minúcia do trabalho exigiu um olhar cuidadoso e um ritmo que demandou concentração e, consequentemente, mais tempo de olhos atentos. Talvez tão observada quanto produção das diferentes texturas e das diferentes formas de experienciar o mesmo espaço, que a princípio é tão limitante, foi a questão do fazer quase artesanal dos trabalhos. Os alunos lançaram o olhar sobre os próprios trabalhos e sobre os trabalhos dos seus pares, entendendo neles o resultado de um empreendimento mental, físico e até emocional. O sentido do esforço, da tentativa de concluir um projeto minucioso, apesar do material simples utilizado, mostrou-se tão relevante quanto a experiência estética tão perseguida.
Trabalho realizado em 2014 por um aluno do 8º ano do Ensino Fundamental da rede pública estadual do Rio de Janeiro
Linha e espaço: aleatório e intencionalidade
A primeira proposição do trabalho foi preencher todo o espaço com linhas “aleatórias”. Esse aleatório se apresenta como barreira ainda mais complexa do que o construído propositalmente, já que o primeiro exige desprendimento do que se caracteriza como intenção, algo formulado previamente. Por incrível que possa parecer, o que se entende como partir do ponto zero, mesmo considerando essa possibilidade nula, é encarado como uma tentativa de esvaziamento assustadora. Nessa atividade foi possível perceber que, para os adolescentes envolvidos, tentar “zerar” suas influências externas quase transcendeu ao que eles entendem como proposta relevante; o desejo “seguro” era representar coisas reconhecíveis. Foi muito interessante observar esses alunos em uma espécie de deriva diante de tal desafio, o desafio de não partir de formas previamente elaboradas mentalmente. Foi evidente a relação direta com as formas figurativas logo no primeiro momento da atividade. Alguns repetiram o processo por até três vezes até afirmar o que para eles parecia o limite. Na segunda etapa foi pedido que, dentro do espaço construído, a princípio de maneira supostamente aleatória, se trabalhasse com a intencionalidade, surgindo naturalmente formas simples e reconhecíveis dentro dos tantos emaranhados produzidos. Por fim, os alunos preencheram os espaços, tornando-os espaços de cor e dotando a imagem de uma nova visualidade.
Trabalho realizado em 2014 por um aluno do 9º ano do Ensino Fundamental da rede pública do Rio de Janeiro
Composição e objetos do cotidiano
A proposta era partir do universo cotidiano. Esse cotidiano foi entendido como espaço de circulação, como atividades do dia a dia, como elementos escolhidos dentro de uma variedade de opções, enfim, como parte da vida individual e coletiva dos alunos. As referências surgiram e foram citadas e “justificadas” pelos alunos. Partindo desse primeiro momento, foi proposta uma composição partindo desses elementos escolhidos como impregnados de sentidos, observando a limitação da materialidade e da superfície do papel. Muitas foram as leituras feitas diante da proposta; os tratamentos das representações a partir dos objetos e dos espaços ao redor deles foram variados, surgindo inclusive padrões de formas abstratas no lugar que alguns encararam como o pano de fundo de sua produção. Os alunos dotaram a representação e o espaço de tantos significados que quase conseguiram compor um retrato do que sentiam e viviam na convivência social. Objetos ligados à comunicação (celular, computador, televisão) surgiram em muitos trabalhos, além de fones, pequenas memórias como cordões, brincos, recados escritos nos cadernos, doces ganhos de amigos e pequenos bibelôs. O fone de ouvido foi um objeto que surgiu em muitos trabalhos, e os comentários sobre tal escolha foram quase consensuais. Ao mesmo tempo que muitos equipamentos são utilizados para um dos principais anseios dos adolescentes; a comunicação, o fone surgiu como um mecanismo de fuga usado pela maioria desses mesmos jovens.
Trabalho realizado em 2014 por um aluno no 9º ano do Ensino Fundamental da rede pública do Rio de Janeiro
Surrealismo – fragmentação e reconstrução
Primeiramente buscamos o sentido ou os sentidos para o termo consciência. Capacidade de compreender e reconhecer, relacionar e dotar a realidade de significados claramente definidos. Realidade esta definida por padrões preestabelecidos. O que seria então o surreal? A ideia foi sendo elaborada gradativamente, chegando a ponto de evidenciar esse movimento como a capacidade de reorganizar de maneira ou de maneiras não necessariamente compreensíveis seguindo limitações de significados. Os elementos reais são desconectados da sua realidade “inicial”, descolados de seus contextos e rearranjados sem o intuito de fornecer uma leitura narrativa, sem o desejo simplista de coerência fixa. É pedido aos alunos que se desprendam da necessidade latente de dotar de sentido um todo; é pedido que desconstruam as partes das tantas realidades e que reengendrem de maneira a não possibilitar uma leitura da imagem de forma “sequencial”. Os alunos relacionaram a atividade a um quebra-cabeça desorganizado, relacionaram o desconforto à incapacidade de fazer uma leitura “à maneira ocidental”, seguindo uma linearidade. Desconstruir essa linearidade de pensamento se tornou o foco e a possibilidade de novas construções imagéticas e críticas. Dessa forma, eles buscaram em seu universo de imagens referências diversas, partindo delas para produzir uma nova organização no espaço, organização que não possibilitaria uma leitura seguidora de padrões. Imagens interessantes surgiram, e o olhar duvidoso e questionador que os alunos lançaram sobre elas deu sentido pleno à atividade. As contradições eram constantes, e a busca de sentidos, dentro dessa dinâmica não linear de raciocínio, possibilitou novos posicionamentos. Imagens referenciais (a flor, a montanha, a cruz, o mar...) se misturaram com formas não definidas figurativamente e com cores nem sempre relacionadas ao que a realidade formal apresenta. Partindo de uma referência inicial, os alunos foram construindo inusitadas relações. Na primeira imagem, a cruz e o coração partido foram elementos reconectados para discutir o sentido das crenças, das paixões – um olhar cultural –, ao mesmo tempo que foi percebida a desconstrução da ideia de profundidade, postura que desprendeu a imagem dos aspectos da imitação, lançando um olhar mais livre aos trabalhos.
Trabalhos realizados em 2014 por alunos do 8º ano do Ensino Fundamental da rede pública do Rio de Janeiro
Máscara – o que representa sua personalidade?
A proposta surge da latente necessidade de expressar uma individualidade. Mais do que isso, de construir e legitimar essa individualidade. A máscara foi escolhida como forma inicial por possuir caráter metafórico em relação ao que se constrói como imagem externa de uma dinâmica interior. A tentativa foi dotar essa experiência de envolvimento intimista, trazendo à tona sínteses internas das diversas realidades vivenciadas e digeridas diariamente. Muitas produções apresentaram a dualidade observada neste trabalho tomado como exemplo. A necessidade dessa divisão foi percebida em várias construções, uma tentativa de descrever e discriminar uma dinâmica interna indissolúvel. A dicotomia entre certo e errado, bem e mal, positivo e negativo, é uma presença ainda mais intensa para a realidade dos jovens. Perceber a relatividade dos fatos e posturas não é um apontamento da maioria das pessoas, pois requer a habilidade de desconstruir para reconstruir, a não generalização e a abertura para um olhar menos estanque diante da realidade. A própria natureza da juventude está exatamente nesse ponto de trânsito entre os paradigmas já formulados e o novo que se busca no escuro.
Trabalho realizado em 2014 por um aluno no 9º ano do Ensino Fundamental da rede pública do Rio de Janeiro
Releituras e suas significações
Olhar, compreender e ressignificar. Partindo de obras tradicionais da história da arte brasileira, buscamos produzir novas relações, lançar novos olhares. A contextualização e a maneira própria de articular a produção da forma e o preenchimento dos espaços de cor foram a tônica do trabalho apresentado a seguir; partindo da imagem referência, buscaram-se novos desafios visuais. A atividade da releitura se tornou usual nas últimas décadas e, nas experiências tidas com os alunos ao longo do percurso de sua formação, é possível observar que o abarcar de sua real dimensão é vislumbrado num processo progressivo. O amadurecimento em relação à leitura e à releitura de imagens só acontece no ato repetitivo de olhar e buscar compreender os outros tempos e o nosso tempo, um fazer que se apropria de referências diferenciais e redefine possibilidades visuais.
Releitura (Felipe Camarão, obra de Victor Meirelles). Trabalho realizado em 2014 por um grupo de alunos do 9º ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede pública do Rio de Janeiro
A experiência dadaísta – desconstruindo e imprimindo novos sentidos
Vale observar que essa atividade não forneceu nenhum trabalho visualmente acabado, mas as proposições ocasionadas foram tão ricas quanto qualquer visualidade resultante. Partindo da explanação sobre os princípios que nortearam as pesquisas dadaístas, buscamos como foco a observação, dimensão e redimensão dos objetos. A atividade consistiu na seguinte proposição: recolher um objeto do ambiente da sala de aula e construir um discurso a respeito de sua função na sociedade, de suas características usuais e, num olhar mais aprofundado, das relações contidas na sua função ou nas suas funções. Até esse momento a proposta flui de maneira (mesmo que ainda constrangida) compreensível diante do fato do dificultoso “improviso”. Olhar o objeto, olhar novamente e em cada novo olhar buscar novas particularidades foi o enredo dessa primeira pesquisa, que, aos poucos, foi se aprimorando na própria medida das inúmeras tentativas. A segunda proposta, agora mais questionadora, se pautou nas tentativas de se desvencilhar dessas primeiras construções de significados, a partir das funções observáveis. Agora os alunos deveriam se desvencilhar dessas funções e passar a olhar para o objeto como um possível objeto de arte, desprendendo-o de seu sentido inicial. O mais difícil e mais enriquecedor desenrolar desse momento foi a busca cansativa de fugir de parâmetros e padrões, pois isso demanda desprendimento exaustivo. A caneta, que antes tinha a função delimitada na história, que tecnicamente nos servia e que, em certo ponto, possuía a metafórica relação com nossas memórias, agora deveria se tornar um objeto desprovido de sua função inicial. Vira agora flecha que aponta, linha que delimita, parte de um conjunto simulado. O que era a cor que confirmava a tinta agora vira reflexões acerca das suas mais íntimas simbologias. Essa busca de novos olhares, olhares que vão além do servir, possibilitou vislumbres estéticos descolados das óbvias funcionalidades.
Considerações finais
O que se formula no momento de uma produção intencional será reflexo de fragmentos do que foi vivenciado, parcial ou integralmente. É nesse momento que se torna fundamental pensar que os primeiros olhares, os primeiros rabiscos, as primeiras imagens surgidas do primeiro instante nunca foram completamente isentos de sugestões. Sugestões que recebemos a todo o momento, muitas vezes envolvidas em sonhos e papéis coloridos, sugestões que definem antes de nós mesmos o que podemos e o que devemos ser e o que as imagens, nossos espelhos mais ou menos embaçados, podem revelar de nós mesmos.
A imagem de si mesmo, do outro, de suas marcas, das marcas do outro, desse entrelaçar que nem sempre é desvendado num primeiro olhar, de como esses riscos e rabiscos são julgados, o que eles trazem de coletivo e de particular, o que se mostra e o que permanece escondido se apresenta como questões fundamentais para o entendimento, mesmo que parcial, dessa dinâmica que se desenrola a partir de propostas de criação.
Referencias
ALVES, Nilda; OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Imagens de escolas: espaçotempos de diferenças no cotidiano. Educação & Sociedade, Campinas, v. 25, n. 86, 2004.
ALVES, Nilda; OLIVEIRA, Inês Barbosa de (orgs.). Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas sobre redes de saberes. 3ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2008.
CERTEAU, Michel de. Cultura no plural. Trad. Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus, 1995.
MAFFESOLI, Michel. O conhecimento comum: introdução à sociologia compreensiva. Porto Alegre: Sulina, 2010.
VALLE, Lílian do. A escola imaginária. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.
Publicado em 07 de junho de 2016
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