Aspectos da quarta dimensão do livro ágrafo
José Salmo Dansa de Alencar
Mestre em Design, doutorando do PPGD PUC-Rio e bolsista Capes
Prof. Dr. Luiz Antonio Luzio Coelho
Professor associado no Departamento de Artes & Design (PUC-Rio),diretor da Cátedra Unesco e do Instituto Interdisciplinar de Leitura
Introdução
Começo e fim são pontos opostos no espaço e no tempo, estrutura que contém toda a realidade. Nascimento e morte trazem o aspecto mais humano dessa polaridade e estão manifestados nas mitologias, no ritual e no inconsciente. A analogia presente no conceito de ciclo de vida dos objetos é uma adaptação desse aspecto humano presente desde as narrativas ancestrais até as formas narrativas da contemporaneidade, como formas de representar a passagem do tempo no mundo e nas suas representações.
O tempo existe pelo e para o sujeito e é por ele que percebemos todas as coisas. Os objetos aparecem no espaço, mas toda tomada de consciência deles situa-se no tempo; “O tempo, nada mais é que a forma do sentido interno, isto é, da percepção de nós mesmos e do nosso estado interior”. Sendo o espaço e o tempo formas da sensibilidade, a diferença se encontra na relação de exterioridade e interioridade que essas formas a priori possibilitam ao sujeito de conhecimento.
Como citado anteriormente, o tempo é passível de análise similar às feitas por Kant sobre o espaço. No entanto, assim como ele demonstra que a Geometria repousa na intuição do espaço, a Mecânica e a Física repousam na intuição do tempo, ou seja, os conceitos de movimento e de mudança não são possíveis senão na representação do tempo a priori e através dela. “O tempo tem apenas uma dimensão; tempos diferentes não são simultâneos, mas sucessivos (tal como espaços diferentes não são sucessivos, mas simultâneos)” (Pascal, 1999, p. 54).
Grande parte da análise estética tem na crítica literária uma referência primeira, e nesse sentido a narrativa visual se torna uma linha de fronteira capaz de dialogar, mimetizando a verbalidade e se alimentando de suas qualidades e atributos. Esse tipo de analogia, no entanto, não é unilateral. Há um trânsito constante entre o verbal e visual com raiz primeira no imaginário, mas que vai materializar-se como conceito na verbalidade.
Dessa relação decorre uma livre associação em que o espaço estaria relacionado à visualidade, enquanto o tempo teria uma natureza mais verbal, o que nos faz relacionar a quarta dimensão do espaço/tempo às qualidades narrativas do livro. Os livros analisados nesta etapa trazem em suas contradições, evidências, sutilezas, negações elementos que vão sempre tocar de forma especial diversos aspectos da narrativa visual, como demonstramos a seguir.
A narrativa por imagens
As narrativas visuais em livros ágrafos têm diferentes possibilidades de configuração relacionadas ao suporte, ao tipo de imagem, à influência de estruturas narrativas vindas de outros meios e à relação estabelecida entre essas dimensões pelo autor. Nesse sentido, concordamos com Jacques Aumont quando considera a narrativa como um “conjunto organizado de significantes, cujos significados constituem uma história” (2009, p. 255)[1].
De modo geral, os recursos narrativos estão relacionados aos limites da linguagem que rege cada gênero, assim como o repertório é algo específico desenvolvido por cada autor na vivência de sua práxis. Por trás de estruturas narrativas extremamente sintéticas ou muito elaboradas, sempre haverá relações com a tradição de contar histórias de uma região e seu momento histórico.
Há muitas semelhanças entre os tipos de livros ágrafos, e quando se trata de qualidades narrativas as semelhanças parecem sobressair às diferenças, principalmente devido à função de sequencialidade que o códice propicia. Uma delas é a noção de que o espectador dos livros de imagem é estimulado a imaginar, atribuir sentido e a criar textos verbais ou narrativas durante a fruição. No mesmo sentido, Paulo Silveira, nas conclusões de sua tese sobre as existências de narrativas nos livros de artista, afirma que
Como muitos teóricos ou artistas, o autor desta pesquisa confessa sua incapacidade em olhar a fonte de R. Mutt e aceitá-la seca e silenciosa, mas sim projetar o acontecimento, fazer desenrolar o evento, vê-la com os olhos da fantasia, enfim funcionando em profusão, devolvendo com vigor todo o líquido dourado que teria recebido se não se tornasse um objeto de arte (2008, p. 306).
Silveira reconhece a existência de narrativas “tradicionais e lineares ou não” em livros de artista. Na maior parte dos casos, condicionada à própria estrutura do códice e à sequência de páginas; ainda segundo esse autor, a narrativa está diretamente relacionada à oposição entre os livros de artista impressos em série e as obras únicas categorizadas como livros-objeto, ou seja, “quase se poderia estabelecer uma equação na qual arte serial é igual à arte narrativa (essa é uma verdade para a maioria dos trabalhos)” (Silveira, 2008, p. 305).
Autobiography, Sol LeWitt, 1980. Fonte: Studienzentrum für Küntlerpublikationen Bremen.
O livro Autobiography, de Sol LeWitt (New York: Multiples & Torf, 1980), tem formato grande, quadrado, encadernado com capas impressas em cartolina branca e envolto em uma sobrecapa de papel duro ilustrado em preto e branco. Composto por mais de 1.000 fotografias de coisas presumivelmente do entorno do estúdio de LeWitt em Manhattan, incluindo encanamento, luminárias, tomadas de parede, frascos de geleia vazios trazendo muitas vezes as marcas de desgaste, como sinais da passagem do tempo. A introdução do livro diz que “cada objeto em seu espaço, com tamanhos iguais e organização simétrica propõe igual importância e valor na biografia”.
O livro parece contemplar dois lados de Sol LeWitt: o artista e o colecionador. O modo de dividir a página como módulos de nove quadrados proporcionais ao formato total da página, a consequente simetria entre as páginas, o preto e branco das fotos reafirmado nas molduras que subdividem as páginas mostram o rigor do artista em contraste com a variedade e o ecletismo das fotos do colecionador. Há um discurso das imagens conduzido pela organização das imagens que sugere tanto a estrutura quanto a linearidade, tanto o todo da página quanto a sequência tradicional a partir do canto superior esquerdo, como a linguagem verbal escrita. O título evocando o gênero literário reafirma a característica narrativa e essencialmente bibliográfica da obra.
Sol LeWitt foi integrante da arte minimalista e conceitual e constituiu uma extensa coleção de obras de seus contemporâneos, além de objetos e imagens coletadas em outras áreas, incluindo xilogravuras japonesas, fotografias turísticas coloridas à mão, fotografia modernista e partituras de compositores como Steve Reich e Philip Glass. Curiosamente, em sentido oposto ao rigor conceitual de sua obra, todo seu acervo era formado com uma abordagem não hierárquica, seguindo um padrão eclético e o valor afetivo, talvez essa seja a maior marca minimalista em seu esforço em negar a representação do mundo e a narrativa.
Seja por analogia à tradição de contar histórias, seja pelos traços deixados por essa tradição nos meios que assumiram essa função, a narrativa continua perpetuando-se de diversas maneiras, inclusive na forma gráfica. Por exemplo, a gestação e o desenvolvimento na contemporaneidade da narrativa na forma “hipermídia” ou daquilo que viria a se tornar o cinema no início do século passado fez surgir grande diversidade de formas narrativas e certamente continuará a gerar decorrências e a influenciar outras formas da contar histórias.
No caso do cinema, houve uma intensa troca entre os meios gráficos e suas imagens, seja na busca de representação do movimento pela arte futurista, seja pelos cartazes, no processo criativo pelos storyboards, ou ainda a reconhecida influência sobre as tiras de humor publicadas nos jornais que viriam a se tornar os quadrinhos como conhecemos hoje. Das manifestações estéticas influenciadas pelo cinema podemos apontar dois tipos distintos de imagem narrativa em livros que assumiram estruturas bem definidas: os flip books, que poderíamos de antemão qualificar como imagem pré-cinema, e os quadrinhos, que podemos considerar imagem pós-cinema[2].
Zorro, John Balderassi, 1998. Fonte: Studienzentrum für Küntlerpublikationen Bremen.
Pequeno Flip book de formato horizontal, Zorro, de John Balderassi (Köln: Oktagon, 1998) traz três séries de fotos em preto e branco: a primeira série traz o personagem sugerindo um apresentador; na segunda, vemos o personagem Zorro marcando o “Z” com a ponta da espada numa parede e, na terceira sequência, temos o ator Humphrey Bogart sorrindo. Todas as imagens são sangradas nas páginas.
Um flip book é um pequeno livro que traz uma sequência de imagens organizadas de modo que, ao tomá-lo em uma das mãos, podemos passar suas páginas com o polegar da outra mão, produzindo a ilusão de movimento. Com uma média ideal de trinta páginas, mas podendo chegar a uma centena, para que o movimento tenha boa visualização e represente uma forte ligação entre o objeto livro, a série de desenhos e a imagem animada, também é considerado um antepassado do cinematógrafo. Devido a essas características e ligações, eles tiveram muitos nomes ao longo do tempo, como “Cinema de dedo”[3].
A sua especificidade e a natureza breve de sua imagem explicam sua fragilidade como gênero e inconstância como objeto. Existindo desde o século XIX, nunca se quis dedicar esses livros às crianças, ainda que sejam, muitas vezes, considerados um tipo de brinquedo, sendo, assim como os quadrinhos e os livros de imagem, um gênero desvalorizado a priori. A historiografia dos livros raramente aborda os flip books, podemos, no entanto, vinculá-los também ao livro objeto ou ao livro de artista, por aparecerem eventualmente em publicações como The Century of Artist Books, de Johanna Drucker (2004).
Somam-se a esses dois tipos de livros, neste estudo, outros dois tipos de influência estética e narrativa já percorridos nas dimensões anteriores: os livros infantis e os catálogos e suas trocas de influência com as manifestações da arte sequencial[4].
Kaddish, Christian Boltansky, 1998. Fonte: Studienzentrum für Küntlerpublikationen Bremen.
O livro/catálogo Kaddish[5], de Christian Boltansky (München, London, New York: Gina Kehayoff Verlag, 1998), tem formato grande, capa dura e sobrecapa e consiste em 1.138 imagens fotográficas advindas de fotógrafos amadores, catálogos de escolas, esquecidas dentro de livros e de álbuns de família. O livro é impresso em offset sobre papel bíblia (papel fino e resistente usado em obras extensas como bíblias e enciclopédias).
Kaddish possui quatro subtítulos que determinam a divisão do conteúdo em quatro séries de imagens ao longo de sua extensa narrativa visual. O primeiro chama-se Menschlich (Humanidade), que é o título de uma exposição realizada em 1994, no Kunstmuseum Liechtenstein. À primeira vista, Menschlich se parece com o livro de Boltansky intitulado Monument, produzido a partir da exposição homônima cuja instalação trazia fotografias de vítimas do Holocausto. Os outros subtítulos aparecem na seguinte ordenação: Örtlich (localidade), Sterblich (mortalidade) e Sachlich (materialidade).
Os livros/catálogos têm estrutura predominantemente descritiva, mas com seu potencial narrativo ligado à sequencialidade. No caso dessa magnífica obra, as imagens ganham reverberação por meio da translucidez das páginas, que, junto à escala e à posição de figuras e objetos nas sequências de cada seção, parece criar uma analogia à memória pela possibilidade de quase antever a próxima imagem na transparência das folhas. Para Marcia Rosa[6], o trabalho de Boltansky “possui um forte caráter obsessivo por uma realidade humana em particular: sua efemeridade” (Rosa, 2014).
Gesammelte werk - band 7, Dieter Roth, 1974. Fonte: Studienzentrum für Küntlerpublikationen Bremen.
O livro Gesammelte werke, de Dieter Roth (Stuttgart, London: Hansjörg Mayer, 1974), é dividido em duas partes: 3b e 3d, a primeira com partes de HQs coloridas e a segunda com partes de livro infantil preto e branco, do tipo livro para colorir e ligue os pontos, ambas as partes com recortes circulares em tamanhos diferentes, deixando partes circulares da páginas anteriores e posteriores à mostra.
Roth fez uma série de livros agrupando material de diferentes tipos, unificados pelo corte para um tamanho uniforme e fixando-os na encadernação. Esses livros foram produzidos a partir de folhas de acerto utilizadas por impressoras comerciais para preparar e alinhar as cores antes de imprimir e das matrizes de corte de páginas de quadrinhos infantis e livros para colorir. Esses livros foram publicados em pequenas edições, mas cada volume é único, pois o conteúdo foi ditado pela disponibilidade do material que estava disponível na gráfica naquele momento.
O trabalho preserva o clima experimental presente em muitos livros de Dieter Roth e a luminosidade e o tom lúdico do material usado, acrescentando um contraste das formas pelas intervenções circulares que contrastam com a forma angular dos quadrinhos e deixa ver partes das páginas seguintes. A princípio, a narrativa é subvertida pela força do objeto e das imagens; no entanto, o que se percebe é a reformulação das narrativas mais longas para trechos fragmentados, em que a visualidade predomina sobre a verbalidade.
Eisner cunhou o termo arte sequencial para se referir ao encadeamento de imagens em sequência para contar histórias ou transmitir informações graficamente. Nesse sentido, a essência da arte sequencial existe há milênios, mas somente com a publicação de seu livro em 1985 ela se tornou também um termo relacionado aos estudos da linguagem narrativa gráfica, sendo nos dias de hoje aplicado também a outros meios, como livros infantis, filmes de animação, storyboards e flip books, ainda que seu melhor exemplo ainda sejam as histórias em quadrinhos.
A princípio, os quadrinhos seguem uma estrutura própria em que a sequência de imagens é organizada em quadros dentro do espaço bidimensional da página e com um repertório específico cunhado em sua origem nas páginas dos jornais. Essa estrutura tem sido largamente explorada pelos meios de comunicação gráfica de massa, ao mesmo tempo que continua sempre atraente aos novos artistas e ilustradores. Uma mostra desse potencial é a intensa produção de revistas por pequenas editoras, mesmo sendo o Brasil um mercado tradicionalmente limitado – ainda que tenhamos aqui grandes nomes como Ziraldo e Maurício de Sousa.
A estrutura presente no desenho é um ponto de partida recorrente para a criação de uma história, como vigas e pilastras de um prédio que, de acordo com o tipo de projeto arquitetônico, podem ser ocultas ou expostas aos nossos olhos. No caso específico das ilustrações, podemos fazer uma analogia entre o primeiro tipo e o corpo humano, em que o desenho seria o esqueleto, uma estrutura mais ou menos encoberta pela pintura. Assim, podemos estender esta analogia a todas as dimensões do livro: a pintura seria análoga à pele, cabelos e toda parte externa ao corpo; o códice seria o corpo, sua mecanicidade, sua massa, todo o aspecto material, tridimensional, que nada mais é do que a organização de uma pilha de folhas em uma estrutura sequencial[7].
As relações e intercâmbios entre formas de narrativas visuais bibliográficas em diferentes tipos de livros produzem permutações entre suas poéticas ao mesmo tempo que desprogramam alguns limites morfológicos de cada tipologia. Podemos perceber também que a imagem e o suporte são pontos de interseção entre tipologias de livros ágrafos e que as identidades se misturam, não havendo categorização definitiva.
Ainda assim, podemos considerar que a narrativa dos quadrinhos estaria relacionada a uma tendência estruturalista, enquanto nos flip books a narrativa estaria relacionada a uma tendência elementarista, em que imagens são organizadas página a página e a narrativa é regida por uma ordem cronológica. Essas narrativas por imagens sucessivas e com tendência para a organização dos fatos na forma de roteiro são as mais comuns em livros infantis.
Gucken, Anton Stankowski, 1979. Fonte: Studienzentrum für Küntlerpublikationen Bremen.
O livro Gucken, do artista visual e designer participante do construtivismo e concretismo alemão Anton Stankowski (Stuttgart: Deutscher Sparkassenverlag GmbH, 1979), tem formato quadrado, capa dura, com 70 páginas de miolo com imagens narrativas coloridas, baseadas em variações sobre o quadrado e trazendo algumas com aspectos conceituais. As imagens se referem a pequenas frases numeradas de acordo com as imagens, listadas no início do livro.
Gucken (olhando) tem como personagem um quadrado que vai atuar isoladamente ou em grupo; organizadamente ou no caos, na forma de escada ou em queda livre e ainda em um relação a um outro quadrado. Gucken é, a princípio, um livro interessante para o leitor infantil perspicaz e mostra em cada imagem o respeito do autor pela educação. As colagens feitas para crianças propõem tanto a sequencialidade quanto metáforas isoladas para um tipo de interpretação de correspondência com frases propostas como um jogo entre códigos verbais e visuais.
Assim, a narrativa é extremamente original e dinâmica para crianças, mas também plenamente estimulante para adultos. O livro tem uma estrutura narrativa bastante presente em livros de imagem: a estrutura espacial onde o encadeamento da sequência está circunscrito ao espaço interno do livro e, neste caso, relacionando a forma da personagem (quadrado) e o formato do livro (quadrado).
Elementos como a ambiguidade em uma obra sevem para fazer questionar os rótulos a que somos todos socialmente submetidos e tentados a submeter imagens e objetos e narrativas como representações de nossas vidas na cultura. Um livro infantil dentro do acervo de um museu de arte, uma história em quadrinhos sem sentido, um extenso agrupamento de fotos sobre papel bíblia, um flip book com três sequências ou uma coleção de objetos pessoais podem ser vistos como anomalias narrativas ou fazer repensar ideias, códigos e significados nas narrativas como formas de representação da passagem do tempo.
Considerações preliminares
A quarta dimensão ou dimensão temporal repercute o último tópico da fenomenologia do objeto de Abraham Moles, que trata do ciclo de vida dos objetos, como uma analogia à passagem do tempo e ao percurso de nossa existência, representado desde as narrativas ancestrais até as narrativas visuais.
Recordamos a abordagem kantiana do espaço/tempo como “formas a priori” especificando a percepção subjetiva do tempo ao reafirmar que este existe pelo e para o sujeito e que é pelo tempo que percebemos todas as coisas. Os conceitos de movimento e de mudança não são possíveis senão na representação do tempo a priori e através dela e que estes conceitos, fundamentais à criação e percepção das narrativas em suas representações visuais, tanto nas imagens quanto na estrutura material do códice, são parte de um repertório narrativo dos livros ágrafos.
Discutimos como as mudanças engendradas pelo estruturalismo viabilizou transformações na crítica literária e abriu caminho para a produção de livros como obras de arte visual visíveis na produção internacional, como no grupo Fluxus e na produção do neoconcretismo brasileiro. Assim, trouxemos à pauta questões da percepção e análise fenomenológica da narrativa visual, como o scanning e a intertextualidade, retomando pontos das “existências da narrativa no livro de artista” (Silveira, 2008).
Os livros analisados nesta última seção trouxeram à tona questões como o colecionismo, como organização de objetos numa sequencialidade coerente com o suporte livro e com características documentais na obra de Sol LeWitt. O livro com aspecto de catálogo retrata o ambiente em torno do artista, evidenciando a vida de uma personagem oculta nas imagens, mas extremamente presente em seus objetos, figuras e na estrutura formal que de alguma forma lembra que se trata de um dos maiores artistas do minimalismo e seu esforço em negar a narrativa.
Na obra Zorro, de John Balderassi, as particularidades da estrutura narrativa, a especificidade e a natureza breve de sua imagem explicam a fragilidade como gênero, inconstância como objeto e o fascínio na busca de representação do movimento nos flip books. O diálogo entre estrutura, sequencialidade e narrativa presente nos flip books está presente também no livro Kaddish, de Christian Boltansky. Essa obra extremamente densa, tanto como assunto quanto formalmente, se divide em quatro séries de imagens de origens diversas e possui uma longa extensão narrativa baseada no acúmulo de fotos com forte caráter obsessivo por uma realidade humana em particular: sua efemeridade.
A estrutura narrativa dos quadrinhos retorna nesta seção em uma obra lapidar de Dieter Roth, não para ser veículo de conteúdos, mas para ser subvertida ela mesma como “conteúdo”. As páginas seguem uma organização randômica e com interferências de incisões circulares que deixam à mostra trechos das páginas anteriores e posteriores do livro, o que preserva o clima experimental presente em muitos livros desse artista.
Gucken, de Anton Stankowski, demarca uma interessante interseção entre arte e design e entre livros de imagem e livros de artista, ao mesmo tempo questionando e enfatizando as fronteiras entre disciplinas e privilegiando elementos da representação e da linguagem visual como a síntese, a citação e o jogo dialético entre narração e metáfora dentro da obra.
Estes exemplos de livros de artista trazem técnicas e materiais diversos e as variações deste repertório na produção de obras dentro de uma vasta gama de tipologias, o que permite mais do que compreender, questionar os códigos do desenho, imagens, objetos e narrativas como dimensões de uma estrutura em constante mutação. Formas, belezas, estranhezas, gratuidades, pertinências, emoções e sentidos são percebidos de modos e em tempos diferentes por cada pessoa, mas parecem completar até aqui a proposição que motiva este estudo, demonstrando interseções entre categorias como possibilidade de ampliação dos códigos visuais na arte bibliográfica.
Referências
AUMONT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papirus, 2012.
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1980.
DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. Campinas: Editora 34, 2010.
EISNER, W. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
KANT, E. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
PASCAL, G. O pensamento de Kant, Petrópolis: Vozes, 1999.
SILVEIRA, Paulo. As existências da narrativa no livro de artista. Tese de doutorado. Porto Alegre: UFRGS, 2008.
Notas
[1] Jacques Aumont, em seu livro A imagem (São Paulo: Papirus, 2009), refere-se preferencialmente à narrativa do cinema, de modo que a definição citada não diz respeito à narrativa exclusivamente imagética, mas aproxima-se mais da narrativa visual do que as definições clássicas da análise narrativa de Isenberg (1968) ou Paul Larivaille (1988).
[2] Aqui nos deteremos nas publicações na forma de códice (livros e revistas), como as coletâneas de histórias ou do tipo graphic novels. Graphic novel foi uma definição estabelecida por Will Eisner para sua obra A contract with God (Um contrato com Deus), publicada em 1978.
[3] O curioso nome Daumenkino (Cinema de dedo) permanece até hoje no idioma alemão.
[4] O termo arte sequencial indica a influência da sequência fílmica que é perceptível no storyboard e que, nos quadrinhos que originalmente eram publicados somente como tiras de jornais.
[5] Kaddish é o nome de um canto fúnebre, uma oração judaica recitada na sinagoga, no final de seções mais importantes de adoração a Deus.
[6] Artista visual e doutoranda da Unicamp.
[7] A palavra estrutura, na sua origem latina “structura”, formou-se a partir de “struere” verbo que equivale ao nosso ‘empilhar’.
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Publicado em 27 de junho de 2016
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