Em terra de surdo, 1,2,5-Trimetil benzeno é rei
Esteban Lopez Moreno
Fundação Cecierj e Programa HCTE-UFRJ
Algumas palavras parecem não resistir ao tempo. Tomando de empréstimo a teoria Darwiniana, há uma espécie de evolução natural que tolhe o uso de alguns vocábulos, passando-os aos poucos ao domínio de alguns raros eruditos até sua extinção completa. Uma vez ou outra são usados, como se um breve afago pudesse ressuscitar sua realeza esquecida. Na ciência linguística, é bem aceito que as línguas se modificam e evoluem com o passar do tempo, adaptando-se às novas demandas da sociedade.
Os caminhos que conduzem à não sobrevivência das palavras e até mesmo de línguas passam por várias vias. Podem, por exemplo, ser decorrentes da conquista de um povo por outro, como muitos dialetos indígenas que desapareceram por completo ante o domínio da cultura europeia, ou talvez, dentro de nossa própria língua, por existir um equivalente mais simples e direto ou, para ser sincero, sabe-se lá por que xongas desaparecem. É isso, não se fala mais “xongas”, tão comum em nossa infância, hoje nem mesmo o corretor do Word o reconhece. Ou “joia” como adjetivo; poucos o usam, parece ser coisa de velho, mas ainda teimo com essa palavra, com uma dose de orgulho vencido e mofado.
Entre todas, a palavra de que mais sinto falta é um verbo: “ensimesmar”. Aprendi com a Cecília Meirelles, que dizia ser sua palavra favorita; tornou-se a minha também. Entretanto, poucas vezes ela aparece; em uma poesia aqui, outra acolá, raramente falada, poucas vezes escrita. Penso que é um sintoma da falta de conjugação do verbo, ela some porque não se pratica, não?
Penso que todos deveriam ter sua palavra favorita, ao menos uma, mas há aquelas que poderiam sumir da boca e dos livros, ao menos de nossos alunos, que apenas as decoram e não veem qualquer sentido posterior. Fazem parte do cabedal de palavras que compõem a nomenclatura dos compostos da Química.
Durante o projeto de reforma curricular da Seeduc, em 2012, tivemos a oportunidade de conduzir a proposta do Currículo Mínimo de Química. O tempo era escasso, a tarefa, de enorme responsabilidade, e tínhamos algumas certezas; uma delas era o cuidado de remover seletivamente uma série de conteúdos relacionados à nomenclatura. Por exemplo, para que decorar sufixos como “oso”, “ito”, "ico", “ato” a partir de regras de nox?! Que relações fariam com o dia a dia? Para todos nós que conduzimos o trabalho, apenas determinados compostos eram imprescindíveis, eram os mais conhecidos e com nomes costumeiros, como ácido sulfúrico, hidróxido de sódio e alguns outros mais sofisticados, mas necessários, nem por isso escabrosos. Também removemos todo um aparato infernal de regras que cerca os nomes dos compostos orgânicos, com seus nomes pomposos e sem sentido prático. Mantivemos apenas a identificação de alguns mais básicos, além do reconhecimento da função orgânica, como álcool, éter ou cetona, que você encontra com facilidade em sua casa ou na farmácia. Não há sentido em ensinar muitas regras para alunos de Ensino Médio, tampouco tem sido cobrado em exames de larga escala, como o Saerj ou o Enem.
No entanto, para nossa surpresa, aquilo que deveria ser uma benesse libertária e literária, mostrou-se um atavismo ideológico. Não todos, mas muitos professores mostraram-se relutantes e afirmaram, com toda vontade, que iriam manter o ensino de nomenclatura de compostos orgânicos e inorgânicos. É de direito deles; o Currículo é, como diz, Mínimo, apesar de um dos principais motivos de reclamação ser a falta de tempo para ministrar “tanto conteúdo”. Este é outro ponto: o Currículo Mínimo tampouco relaciona diretamente conteúdos, mas habilidades e competências. O conteúdo de radioatividade, por exemplo, é muito amplo, mas em termos de habilidades pode ser bastante reduzido e direcionado aos interesses da disciplina.
Percebi-me, contudo, ensimesmado, especialmente após ajudar a filha de uma amiga em seus estudos de Química. A sua professora tinha-a adestrado (não há palavra melhor) a decorar (outra) uma série de termos e regras infames. A sua apostila era repleta de perguntas mecânicas sobre nomenclatura, sem qualquer contextualização. Pacientemente expliquei-lhe, senti-me como que enumerando os ossos de um corpo, sem pele ou carne ou olhos. A pergunta da jovem veio naturalmente, com a inocência do que move as perguntas autênticas:
— 1,2,5-Trimetil benzeno, para que serve?
Para nada, pensei; é uma forma de ocupar o tempo e não ensinar coisas mais úteis e interessantes. Mas não podia lhe dizer.
— Vamos pesquisar na Wikipédia, respondi.
Da forma como a nomenclatura tem sido apresentada, serve apenas para fortalecer a ojeriza dos jovens e da sociedade pela Química. Nem mesmo todas as regras de nomenclatura que estudaram serviam mais, foram modificadas em 2013 pela IUPAC. Mas o que importa, o que importa...
A nossa escrita é parcialmente fonética, porque cada vogal e cada consoante podem representar um som. Isso a tornou muito eficiente para simbolizar a linguagem oral corrente; ela tinha um significado prático, palpável, facilitando sobremaneira a sua difusão. Um surdo, por exemplo, tem muita dificuldade de aprender a escrever ou ler porque ele não consegue associar o som das palavras ao seu significado, ele não experiencia o seu som, simplesmente decora. Entendi que na Química, por vezes, estamos ensinando nossos alunos como se fossem surdos. E, em terra de surdo, 1,2,5-Trimetil benzeno é rei.
Publicado em 05 de julho de 2016
Como citar este artigo (ABNT)
MORENO, Esteban Lopez. Em terra de surdo, 1,2,5-Trimetil benzeno é rei. Revista Educação Pública, v. 16, nº 14, 5 de julho de 2016. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/16/14/em-terra-de-surdo-125-trimetil-benzeno-e-rei
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